ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 1 (16)

América do Sul, Brasil,

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Cinco parágrafos em defesa do professor

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Este texto foi publicado também no
Observatório da Imprensa, edição 503


e também no sítio do CPERS

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Não foi possível ficarmos calados frente à coluna publicada no jornal Zero Hora de domingo (7/9 – Educação para quem?), cujo objetivo parecia ser, ao menos em algum nível, problematizar a educação brasileira. O economista Gustavo Ioschpe, já carimbado em ensaio pertinente ao especial da revista Veja sobre o ensino (22/8), disserta em cinco parágrafos aquilo que considera um viés equivocado de abordagem acerca de um conjunto de incompetências do sistema escolar, além de apontar o caminho mais correto de análise sobre os fenômenos congruentes.

A rigor, não estamos aqui tentando atuar numa espécie de “ombudsman” da mídia impressa gaúcha, apesar de cumprirmos, de certa forma, este papel de fundamental importância ao crescimento qualitativo dos nossos meios de comunicação de massa. Por outro lado, a motivação maior deste texto está centrada numa defesa da educação, laica, transformadora, na qual a produção e circulação de conhecimentos e saberes possam ser demarcadas em valiosos atributos. Para tanto, acreditamos necessária nessa trajetória engajada e complexa, desafiante, a defesa do professor enquanto profissional da educação, sujeito humano direcionado ao ensinar/aprender nos sentidos mais amplos; a defesa de quem sobrevive no mundo através da rotina de sala de aula.

Sendo um mecanismo de suma relevância na estrutura da educação de um Estado democrático, estes docentes merecem respeito, mais do que isso merecem que suas reivindicações sejam atendidas, negociadas, pensadas, ditas e re-ditas. A tarefa de empenhar uma reflexão nesse sentido será encarada logo adiante, prezados leitores. Seguem, portanto, cinco respostas aos argumentos de Ioschpe, posicionadas e assumidas, em favor de um protagonismo do professorado nacional.

Ioschpe, parágrafo 1 - Quando se fala em educação no Brasil, freqüentemente se ignora ou menospreza aquele que deveria ser o principal ator do processo, o objetivo de todas as políticas públicas e o foco de todas as nossas atenções: o aluno. Ouve-se repetidamente que devemos resgatar a dignidade do magistério, pagar melhor os professores, escolher melhores diretores, arrumar as escolas, disponibilizar computadores com banda larga a todos os alunos etc. É raro alguém falar que devemos resgatar a dignidade dos alunos, condenados a uma vida de ignorância e subempregos por conta de uma educação de péssima qualidade, ou questionar se a constante indisciplina e o desinteresse do alunado não são uma conseqüência das aulas chatas que ele recebe, ao invés de um defeito de caráter do próprio aluno ou da sociedade que o cerca.

Resposta, parágrafo 1 – No decorrer do curso de licenciatura em Ciências Sociais, pela UFRGS, poucas vezes presenciamos colegas ou professores menosprezando “aquele que deveria ser o principal ator do processo, o objetivo de todas as políticas públicas e o foco de todas as nossas atenções: o aluno”. De todo o modo, num sistema formado por diversos agentes conectados, como é o sistema escolar, com certeza o estudante é um foco primordial. No entanto, nem todas as políticas públicas, tampouco o único foco de nossas atenções deve estar voltado apenas e exclusivamente a um dos sujeitos do processo, importantíssimo, mas constituinte de um todo. Sem dúvidas, a formação de turmas de alunos legendadas pelo sucesso acadêmico é de imperativa preocupação, malgrado o intento final dependa de uma série de fatores emaranhados na construção desse resultado. Sem vontade alguma de sermos estruturalistas, ainda que nem a sua extrema oposição, quando investigamos um colégio e tentamos ser um pouco razoáveis em nossas perspectivas de qualidade, pensamos em: boas salas de aula, com utensílios capazes de tornar o clima agradável para um ambiente letivo, tanto em termos de temperatura e iluminação, quanto de recursos didáticos de áudio-visual, via de exemplo; uma biblioteca com alguns computadores, dotada de uma coleção de livros, pode ser mediana, com disponibilidade para retirada por mais de um usuário a cada obra, além de um funcionário atendente e um bibliotecário; banheiros limpos, dispondo de papel higiênico, sabonete e espelho, o que demanda uma equipe de funcionários para cumprir a função da limpeza; um setor pedagógico, no qual profissionais da área, juntamente com psicólogo(s), e quem sabe, numa utopia empolgante, um médico pediatra; professores qualificados, que pesquisem e não apenas lecionem, leiam, possam comprar livros, tenham acesso ao conhecimento espalhado pela web, estejam capacitados financeiramente a participar de congressos, seminários, simpósios, etc, mas que também saibam lecionar, gostem do que fazem, vejam nos seus alunos o seu motivo de ser enquanto profissional. Eis alguns tópicos que pensamos quando desenhamos, na imaginação repentina, uma boa escola. Concordo que devemos resgatar a dignidade dos nossos estudantes, mas como fazê-lo? Será que numa escola imaginária como a recém descrita a dignidade não seria um valor sobressalente, já que sobrepostas às dificuldades sistêmicas?

Ioschpe, Parágrafo 2Quero crer que esse direcionamento acontece, na maioria dos casos, não por maldade, mas por se acreditar em uma premissa equivocada: aquela segundo a qual tudo que é bom para o professor, para o diretor e para uma escola é bom para o aluno e que, portanto, aquilo que beneficia o professor, diretor ou escola acabará por indiretamente beneficiar o aluno. Talvez isso seja uma herança de uma visão paternalista da escola, que seria um segundo lar para a criança, e os professores seus pais temporários. A popularização, no Brasil, da chamada pedagogia do afeto contribui para esse sentimentalismo. Ocorre que desde o trabalho do biólogo Robert Trivers, na década de 70, se sabe que há interesses conflitantes entre os pais e sua prole, que já surgem mesmo antes do nascimento – o feto quer mais nutrientes do que seria saudável para a mãe oferecer, por exemplo. Depois do nascimento, os genes que a criança herda do pai ativam uma maior demanda pelo leite materno na criança. Quando um bebê tem uma rara alteração genética que lhe dá duas cópias maternas de uma parte do cromossomo 15 (síndrome Prader-Willi), ele mama menos e chora mais fraco quando está com fome. Se esse conflito é normal mesmo no seio familiar, não deveria causar espanto que professores, diretores e alunos tenham interesses divergentes.

Resposta, parágrafo 2 – Não se trata de identificar que tudo aquilo que é bom para o corpo docente vai, direto e reto, ser bom para o aluno. Não concebemos a relação tão simplória e maniqueísta. Entretanto, o indivíduo professor carrega um corpo humano, este repleto de necessidades biológicas, de obrigatória alimentação e de cuidados cotidianos. Ele precisa comer, beber, dormir, tomar banho, se vestir, pagar contas, se movimentar pela cidade, enfim, coisas que o cidadão normal deveria ter o direito de fazer com segurança e estabilidade no tempo. Não se esqueçam, caros leitores, aqui sempre estamos nos referindo ao aluno como peça chave na dinâmica do sistema escolar. Mas como os alunos, os professores também são seres humanos, e também possuem essencial papel na mesma dinâmica. Portanto, ouvir as reivindicações do professorado, negociá-las, melhorar a situação desses sujeitos, proporcioná-los dignidades não existentes no cenário atual... não há nada de absurdo nesse ponto de vista, pelo contrário. Sobre a referência ao especialista biólogo, nada falaremos com profundidade, pois desconhecemos a área. Não obstante, o fato de professores, discípulos, direção, faxineiros, e todas as demais partes envolvidas no sistema escolar demandarem interesses distintos pouco ou nada acrescenta. Sob a forma dos seus discursos próprios enquanto atores sociais inseridos em um campo[1] de disputa, ou sob a lente de uma própria compreensão investigativa exterior, razoavelmente problematizante, tal assertiva surge como base de averiguação pertinente, porém de rápida percepção. Mais uma frase apenas: não sabemos até que ponto depositar nas costas de uma teoria biológica a relação social derivada dos protagonistas envolvidos no campo escolar impulsiona tanta riqueza em significado comparativo, ou quiçá metafórico.

Ioschpe, parágrafo 3Muitos dos fatores que a literatura empírica revela serem importantes para o aprendizado de uma criança são desfavoráveis aos anseios comumente manifestados pelo magistério, e muitos dos itens pedidos constantemente por educadores não têm efeito sobre a aprendizagem dos alunos. O absenteísmo do professor e a utilização do tempo de aula para a realização de exercícios ou de cópia de textos do quadro-negro são fatores que facilitam a vida do professor e prejudicam o aprendizado da criança, por exemplo. O uso constante de dever de casa e avaliações para medir o conhecimento do aluno sobrecarrega o tempo do professor, mas é muito positivo para o aprendizado das crianças. Ao mesmo tempo, fatores que são usualmente apontados como benéficos – maior salário aos professores, salas de aulas menores, professores com mestrado – não se mostram positivos para o aprendizado dos alunos.

Resposta, parágrafo 3 – Estamos curiosos. Quais são os fatores que a literatura empírica aponta como desfavoráveis aos anseios do magistério. Desfavoráveis? Se os itens citados por educadores como necessários ao processo de aprendizagem não servem, quem estaria autorizado a dizer o que serve e o que não serve para o melhor desenvolvimento dessa dinâmica? Professores ganham pouco dinheiro, são pessoas, têm demandas, contas, etc. Não conseguimos encontrar o elo da afirmação que defende a idéia de que melhores salários para professores não ajudam numa satisfação dos mesmos, refletida de alguma forma no ambiente e no desempenho profissional. Pessoas com uma vida financeira estável e o mínimo de conforto não tenderiam a trabalhar melhor do que pessoas estressadas, sempre “correndo atrás da máquina”, com dificuldades de manutenção dos gastos básicos? Salas com menos estudantes, com um contato maior entre professores e alunos, conhecimento mútuo, mais atenção aos nossos filhos, tudo isso não é positivo ao ensino?

Ioschpe, parágrafo 4Uma das fontes do nosso atraso educacional é o fato de a maioria das nossas políticas públicas identificar como finalidade aquilo que na verdade é apenas um meio. Falamos de escolas bonitas, diretores treinados, professores diplomados como se isso fosse o objetivo do ensino. Não é. O objetivo é que o aluno aprenda. Se depois de todos os malabarismos e esforços o aluno continua patinando, então todo o trabalho não valeu nada. O aprendizado do aluno deveria ser o objetivo e o teste de toda ação do setor.

Resposta, parágrafo 4 – Sem responder ao questionamento sobre o objetivo do ensino, comentaremos apenas o fato de que, se os meios não correrem bem, se o percurso até alcançar o fim ideal não transcorrer de maneira qualificada, com pessoas qualificadas, o resultado não será positivo. Para seguir nos objetivos educacionais do senhor Ioschpe, o aluno só aprenderá se esse caminho for atravessado e entrecruzado por profissionais qualificados, motivados, satisfeitos, em todas as partes que constituem o “setor”. Observação final: lembramos que a educação pública não é uma mercadoria que está a venda no mercado financeiro, não é um produto a ser comprado ou vendido. A educação de qualidade para a concretização de uma República democrática tem de passar pelo conceito de direito da população, mesmo que oferecida por iniciativa de escolas particulares, senão não fará nenhum sentido. Portanto não adianta apenas importarmos teses e divagações do campo empresarial para a educação e sentarmos em nossas poltronas com um ar esperançoso: pronto, assinamos a fórmula do sucesso. Não, definitivamente não basta.

Ioschpe, Parágrafo 5O Ministério da Educação deu um passo positivo nesse sentido ao instituir, no seu Plano de Desenvolvimento da Educação, um sistema de metas de aprendizagem que devem ser cumpridas por cada município. Pecou, porém, ao não instituir punição nenhuma a quem não as alcançar. Como já escrevera Hobbes em 1651: os acordos, sem a espada, não são nada além de palavras.

Resposta, parágrafo 5 – Citar Hobbes, pensador contratualista, situado no contexto da queda do absolutismo europeu, nos parece, no mínimo, anacrônico. Na linha de Hobbes, o poder dos soberanos deveria ser absoluto, sem limites. O Estado não poderia ser contestado, “porque já foi mostrado que nada que o soberano representante faça a um súdito pode, sob qualquer pretexto, ser propriamente chamado de injustiça ou injúria”[2]. Hoje, depois de um período turbulento de muito sofrer, controlado pelos militares organizados no poder, vivemos sob uma democracia representativa (representação proporcional), as listas de ordenação interna dos partidos são abertas, e o voto é obrigatório a todos os cidadãos[3]. Enfim, uma República na sua acepção mais moderna, talvez – ou quem sabe um pouquinho disso apenas, o mínimo de democracia. Em realidade, Hobbes não figuraria na nossa lista adequada para interferir na problemática do campo educacional, visto o momento histórico vigente.


Autoria: Bernardo Caprara



[1] No sentido de campos para Pierre Bourdieu.
[2] HOBBES, Thomas. Leviatã. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1974. Páginas 134-135.
[3] Para mais informações sobre a dinâmica política do Brasil atual, sugiro o muito didático material do professor Jairo Nicolau, intitulado “Sistemas Eleitorais” (cf. NICOLAU, Jairo. Sistemas Eleitorais. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004).

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

A polêmica na UFRGS e a superficialidade do jornal Zero Hora

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A Universidade Federal do Rio Grande do Sul tem se caracterizado, através da sua história, como um espaço de debates e de permanente indagação relacionados aos rumos da sociedade contemporânea. Foi assim com a criação do Campus do Vale, próximo a cidade vizinha de Viamão, quando os militares que dirigiam o país – conforme contam alguns professores – destinaram para esta localidade de distância extremada naquele momento alguns dos cursos que mais argüiam contra a ditadura. Está sendo assim, nestes últimos anos, no que concerne às eleições para o Diretório Central dos Estudantes, às ações afirmativas, ao REUNI, etc.

Pois é nesse contexto que uma parede (sim, uma parede) toma conta das polêmicas que circundam, de tempos em tempos, nossa universidade. Ao entrar no Campus do Vale, aquele mesmo, próximo a Viamão, no qual estão alocados diversos departamentos de ensino e pesquisa, damos de cara com o prédio que abriga as salas de aula do curso de Letras. A parede frontal do edifício das Letras (recinto que outrora era dividido com o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) encontrava-se pichada, com algumas citações, descascada, além de servir de mural para cartazes políticos ou não. De fato, não se tratava de uma visão esteticamente bonita. Não era, todavia, desagradável para os olhos alheios; tratava-se apenas de uma parede.

Há cerca de três ou quatro meses, um grupo de alunos ligado ao Diretório Central dos Estudantes tomou uma iniciativa própria, sem autorização prévia da direção universitária, e reformulou a mencionada parede que dá acesso ao Campus do Vale. No lugar da tinta descascada, das frases soltas e perdidas, dos cartazes e do fundo “branco”, os estudantes pintaram um grande painel, no estilo graffiti, ostentando os seguintes dizeres: “Para que(m) serve o teu conhecimento?”. Estaria por vir a mais nova polêmica.

Pano de fundo: debate ideológico

Outro grupo de estudantes tratou de acionar a Secretaria de Assuntos Estudantis para reclamar o fato de a pintura não ter sido autorizada, e portanto constituir crime de depredação do patrimônio público. De imediato, a SAE arquivou o processo, justificando que aquele espaço estava historicamente ligado às reivindicações e proposições filosóficas dos graduandos, o que de certa forma representa a realidade.

Olhando de fora, sem muita profundidade, parece que estamos diante de um crime e de uma falta de respeito às autoridades, um atentado à autonomia da Universidade Pública. Sob os aspectos legais, sem dúvidas, trata-se de uma atitude pouco aconselhável, na medida em que poderia gerar (e acabou gerando) represálias por parte de quem se sentisse agredido (?) pelo acontecimento. Mas a história não é tão simples assim, tampouco somente de aspectos legais pulsa a vida acadêmica na UFRGS, muito pelo contrário.

O papel do conhecimento científico está na berlinda, digamos assim, há bastante tempo. Inúmeros pensadores fixaram suas atenções naquilo que poderíamos chamar de “conhecimento do conhecimento”, ou epistemologia. A professora do Departamento de Sociologia da UFRGS, Eva Machado Barbosa, conta um pouco dessa trajetória:

A questão do conhecimento de segunda ordem, ou do conhecimento do conhecimento, na expressão de Morin (1987), se fez presente no ocidente, de maneira explícita, pelo menos a partir da lógica aristotélica [...] Com o surgimento da ciência na Idade Moderna, ou melhor, com a diferenciação do conhecimento científico a partir da matriz filosófica original, a questão do conhecimento de segunda ordem, como lógica, gnoseologia, teoria do conhecimento, filosofia da ciência, epistemologia – ou que outro nome ainda se queira dar a esse domínio – tornou-se cada vez mais central, alcançando momentos de auge em obras de pensadores como Descartes, Locke, Hume, Kant e Hegel [BARBOSA, Eva Machado. Conhecendo o conhecimento: questões lógicas e teóricas na crítica da ciência e da razão. In: Cadernos de Sociologia, Porto Alegre, vol. 10 (Teoria Social: Desafios de uma Nova Era), p. 11].

Podemos observar, nesse sentido, que não é de hoje que os sujeitos humanos se debruçam sobre as questões que envolvem o conhecimento. Desde Karl Popper e os critérios de refutação e/ou testabilidade; passando por Gaston Bachelard e sua tentativa de psicanalisar o conhecimento; até chegar em Pierre Bourdieu e a necessidade da chamada vigilância epistemológica, perdura um caminho tortuoso, de rupturas e continuidades, de muitas discussões e interpretações distintas.

No episódio que polariza a universidade, o que está por trás de toda a discussão acerca da pintura da parede são diferentes posições ideológicas, posturas políticas frente ao papel do conhecimento científico construído nas suas entranhas. Para que ou para quem ele deve servir? Para nada, para alguns, para todos, para ninguém? Devemos nos questionar sobre isso?

Mesmo que alguns teóricos pós-modernos tenham decretado o fim das ideologias, do trabalho e da verdade enquanto conceito, na prática, a disputa política e ideológica está presente na rotina diária, visível ou disfarçada, mas presente. Os autores do painel que originou a polêmica defendem sem ruídos um projeto de ensino superior mais popular, voltado para a aproximação com a comunidade e que não apenas privilegie o mercado e o empreendedorismo, mas também procure democratizar o acesso ao saber e a crítica social, fatos ainda muito distantes no que tange à nossa instituição. Por outro lado, seria bastante ingenuidade, amigos leitores, pensarmos que a motivação da pessoa que moveu o processo para a retirada do graffiti em voga esteja vinculada apenas a uma espécie de “legalismo patriótico”, ainda mais se atentarmos para o fato de que tal indivíduo é membro de um movimento específico de atuação contrária às cotas raciais, via de exemplo. Não esqueçamos, porém, que nada impede que optemos pela ingenuidade, desde que possamos identificá-la...

Zero Hora e a desinformação

Tudo o que foi relatado até agora ganhou destaque no maior veículo de comunicação impresso do Rio Grande do Sul. Façamos uma pergunta clara: qual seria o papel deste jornal, para que pudesse cumprir uma função informativa de qualidade?

Independente da possível resposta, Zero Hora trabalhou sua cobertura até o momento em que escrevemos (sábado, 30 de agosto) enfatizando a questão legal dos acontecimentos. Para nosso juízo, é imperativo que tal cobertura abordasse esse viés, na medida em que não devemos esquecer, num piscar de olhos, a existência das legislações vigentes. Neste primeiro comentário, ponto para Zero Hora e seus jornalistas.

No entanto, com o intuito de situar seus consumidores de maneira mais inteligente, Zero Hora investigaria profundamente o pano de fundo citado acima, isto é, o debate ideológico que a própria inscrição polêmica levanta. Ao contrário disso, até agora o impresso mantém uma postura “legalista”, sem explicar o teor dos movimentos políticos que disputam a supremacia nesse conflito, seus projetos e perspectivas.

Ao saber da pintura, o estudante de Ciências Contábeis Anderson Gonçalves, 35 anos, integrante do Movimento Estudantil Liberdade (MEL), abriu processo administrativo junto à universidade para saber se a parede havia sido cedida aos alunos. No documento, ele classificou o ato como vandalismo, identificou um dos responsáveis e pediu a punição do grupo [Zero Hora, 26 de agosto de 2008, p. 44].

Nesse caso, para que a mídia pudesse ser minimamente isenta, comprometida com a sociedade, Zero Hora arcaria com sua responsabilidade e esboçaria uma tentativa (pelo menos) de contextualizar a “questão quente” movimentada por detrás de uma pendência estéril. Para fugir dos grilhões de um assunto vago, qual seja, a legalidade ou não da pintura, a retomada sintética das concepções políticas daqueles que pintaram o painel e daqueles que se opuseram a ele, mas também os respectivos significados que ambos os grupos atribuem ao conhecimento científico e suas “utilidades” promoveriam um nível de qualidade superior ao tradicional periódico.

Numa época em que o jornalismo consiste, ao fim e ao cabo, em um tipo de indústria que fabrica a desinformação, a busca pela profundidade poderia ajudar a salvá-lo do pior. Entretanto, talvez seja mais fácil vender informações superficiais, ao passo em que a profundidade aqui requisitada poderia desestabilizar alguns pilares edificantes na atualidade daquilo que Gramsci [Cf. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Volume 2. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.] alcunhou “aparelhos privados de hegemonia”.

Anexos (endereços para visitar as matérias de Zero Hora, realizadas até o dia 30/08/08, disponíveis durante 30 dias na internet)

26 de agosto de 2008, “Parede pintada gera processo na UFRGS”

27 de agosto de 2008, “Diretor critica decisão da UFRGS que liberou grafite”

27 de agosto de 2008, “’Fui muito ingênua’, diz autora”

28 de agosto de 2008, “Mais tinta na parede da controvérsia”

Autoria: Bernardo Caprara