ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

sexta-feira, 20 de março de 2015

Conto da esperança

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O ódio e a intolerância andam firmes por aí. Sentimentos sombrios. Mas eles não precisam perseverar. Naquele dia, eles perderam espaço para a esperança e a alegria. Era carnaval. Nos blocos do Rio de Janeiro, lotados de amizade, azaração e euforia, o ódio e a intolerância tentavam ganhar espaço.

Um Japa com sotaque e procedência dos pampas se divertia com algumas amigas cariocas e os demais parceiros gaúchos. Ele já havia evitado duas confusões. Queria ser feliz, não brigar. Na paz, seguiram para um bar na Gávea. Cerveja vai, cerveja vem, ele notou olhares enviesados de um sujeito bastante grande. Daqueles sujeitos que costumam ser chamados de Marreta, Muralha ou Montanha. Montanha, para os íntimos.

O Japa seguia na boa. Esperto, sentia o coração bater mais forte. Montanha se aproximava. Não parecia afeito a muitos amigos gaúchos. Montanha chegou, ali ao seu lado.

- Aí, vacilão?! Tô vendo que tu tá tirando alta onda nessa porra, mermão! Qual foi?!?!

O Japonês gaúcho gelou. Era a terceira confusão que se apresentava. Ele já não suportava mais. Estava no seu limite.

- Bah, cara. Foi mal. Eu não vou brigar. Tu é gigante, muito forte, tu vai me esmagar. Eu não vou brigar. Se tu quiser, pode me bater. Não vou reagir. Tô aqui serenão, curtindo com as gurias e com a gurizada. Pode me bater.

Montanha recuou, meio perplexo. Desistiu do massacre. O Japa dos pampas sorriu aliviado. Não queria confusão.

Quase uma hora depois, o clima era de tranquilidade. Até que outro rapaz, daqueles tipos que se acreditam malandros, mas são apenas uns manés, chegou perto do Japonês na fila do banheiro. O Japa suspirou. Chega. Dessa vez ia brigar. Foda-se. Ergueu a cabeça para ouvir o Mané.

- Aí, gaúcho arrombado?! Qual foi?! Tá me zoando?!

O Japonês enfrentou e chutou o balde.

- Zoando é o caralho, meu! Vai te foder!

No ínterim entre o pau começar a comer e a esperança evitar o ódio, Montanha tomou a cena outra vez. O Japa tremeu. Montanha olhou para o Mané e deu números finais ao confronto:

- Porra, brother... A parada é a seguinte: o gaúcho não briga. Ele tá na paz. Vaza. Você quer brigar. Eu também. Vamos brigar eu e você!

De cabeça baixa, o Mané caiu fora. Dali por diante, Montanha e Japa beberam juntos, sorriram e curtiram a noite numa boa.

Por vezes, seja assustadora, alta ou longínqua, agir com humildade pode fazer da montanha algo acessível. E afastar o ódio e a intolerância. Há esperança.

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segunda-feira, 16 de março de 2015

Por mais democracia

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Sobre os protestos de ontem: dirijo-me aos amigos e conhecidos que exerceram o seu direito democrático de criticar o governo, a corrupção e até pedir a saída da presidente eleita há poucos meses. Ponto para a democracia. Manifestar-se é legítimo.

Porém, peço licença para compartilhar convosco uma preocupação. Vocês dividiram espaço com coisas muito bizarras e lamentáveis, coisas que vocês certamente não concordam. Nos seus próximos atos, não caiam na armadilha de defender ditaduras militares, o machismo, a homofobia, o racismo, o ódio ou a agressão ao seu semelhante de camisa vermelha.

Não caiam na armadilha de acreditar que vivemos numa ditadura comunista/esquerdista, com um liberal ortodoxo no Ministério da Fazenda; com eleições financiadas por empreiteiras e construtoras capitalistas; com um atuante imaginário meritocrático, individualista e apologista da competição feroz; com tantos direitos trabalhistas desrespeitados diuturnamente em prol do enriquecimento de uns cada vez mais poucos cidadãos; com uma mídia hegemônica reacionária e cheia de contas secretas na Suíça. Não, definitivamente o Brasil não vive uma ditadura comunista/esquerdista.

Leiam Paulo Freire, não arrotem seu nome por aí. Ele é um dos intelectuais brasileiros mais respeitados no campo da educação em todo o planeta, sobretudo nos países que vocês mais admiram. É só verificar. Buscar conhecimento e informação. Não repitam que a educação brasileira é dominada pelo marxismo, pelo gayzismo ou qualquer ismo considerado de esquerda. Ela não é. Muito pelo contrário, a educação formal brasileira reproduz o arbitrário cultural dominante, na sua maioria. Um ideário do ter, não do ser; do eu, não do nós; da vitória contra a derrota.

Desculpem os meus receios e medos postos a público. É que eu não gostaria de vê-los bradando ao lado de fascistas de qualquer estirpe. Lotem as ruas. Preparem-se bem e critiquem o PT por aquilo que ele deve ser criticado. Por Belo Monte. Pela corrupção endêmica que o partido hoje faz parte. Pelo prosseguimento das políticas de drogas e segurança pública autoritárias em vários aspectos. Por se aliar com partidos escrotos como o PP e o PMDB. Enfim, pautas não vos faltam e faltarão.

Não se unam aos que desprezam a democracia. Usem o seu direito democrático de manifestação para aprofundar a democracia, não ajudar a corroê-la. Eu não estarei lá, mas espero que esteja vivendo, trabalhando, dialogando, tomando uma cerveja e abraçando vocês como sempre, dispostos que estaremos a achar um caminho negociado para as nossas diferenças.

Por fim, quero deixar claro: o meu campo político não é o que estava nas ruas ontem. De certo, cada vez menos tem a ver com o PT. O meu campo político eu não sei definir, mas ele pauta-se pela busca da redução da concentração de riquezas, pelo fim das opressões, pelo exercício profundo da democracia e dos direitos humanos, pelo fomento de políticas sociais contundentes e de várias coisas que provavelmente seriam escorraçadas das ruas por alguns no dia de ontem. Espero que vocês não venham a estar entre eles.

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terça-feira, 10 de março de 2015

Novas gentes

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Como professor, um email de um estudante pedindo ajuda para estudar temas sociológicos.

Como estudante, uma cadeira iniciada com horizontes de boas interações e muito aprendizado.

Coisas que me fazem pensar que a educação formal pode deixar de ser, na sua maioria, um depósito de gentes ou uma fábrica de certificados.

Sem ser panaceia, o remédio para todos os problemas humanos. Longe disso. Apenas, quem sabe, sendo uma das raízes para o crescimento de novas gentes. Novas gentes que se compreendam melhor. Novas gentes que compreendam melhor o mundo em que vivem.

Hoje, o caminho é longo. Hoje, sonhar é preciso.

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terça-feira, 3 de março de 2015

O governo e o tiro no pé

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O governo enredou-se nas próprias escolhas. A opção pelo ajuste fiscal, cujo foco bate mais nos de baixo, considerando a hierarquia da sociedade brasileira, funciona como um tiro no pé. Tanto no âmbito discursivo, quanto na esfera da política institucional.

Nas eleições, defendi que os projetos do PSDB e do PT eram muito semelhantes. Como semelhantes, havia diferenças. Ainda acho que elas existem, mas parece que o governo faz questão de fazê-las desaparecer. Apostei que aquele era o momento de o governo e o PT enfrentarem o que há de pior no país. Ledo engano. Equívoco sério. Não enfrentaram. Perderam, talvez, a última chance.

O atual Ministro da Fazenda faz exatamente o que pedia a oposição e o que o governo dizia que não deveria ser feito. O “engraçado” é que o governo, agora, apanha da oposição por fazer o que a oposição dizia para ser feito. Sem falar naqueles que batem em qualquer governo, somente por ser governo. Ou naqueles que só consideram problema a corrupção. É o ônus de ser governo. Nada anormal.

Como sempre, sofrem mais os mais de baixo. Sofrem os que dependem dos serviços públicos, cada vez com menos recursos, em função da escolha por fazer bastante caixa para pagar os juros da dívida pública (superávit primário). Isso torna cada vez mais difícil apoiar o governo. Ainda considero o impeachment fora de contexto, mas os governistas precisam ficar espertos. O aumento dos custos na vida das pessoas e a redução dos recursos em serviços públicos fundamentais afetam diretamente o cotidiano social. A oposição tenta se fazer passar por uma alternativa, pela solução dos problemas. Convenhamos, a experiência dos seus governos (FHC, décadas em São Paulo e etc.) mostra que não é solução pra coisa alguma.

Detalhe: nada justifica o apoio ao crescimento dos valores e discursos conservadores, que surfam na onda da revolta nacional, sobretudo ancorados na corrupção endêmica da Petrobras – endêmica mesmo, vigente desde a sua fundação, provavelmente. Intolerância, ódio, linchamentos, racismo, homofobia, misoginia e todas as suas variantes fascistas não configuram oposição ao governo, mas, sim, oposição a qualquer tentativa de fazer da democracia algo real. Aí não dá pra querer.

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