ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

O tempo

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Bebia um café e escutei: "Tão jovem e só tem mais seis meses de vida".

Com Legião Urbana na cabeça, toquei nos meus vazios, erros e naquilo que poderia ter sido e feito diferente até aqui. O tempo é precioso demais... e se o meu acabar amanhã?

Ao me observar, também achei amor. Olhei para o céu e voei, como um pássaro, até a lua e seus encantos. Li os discos que tenho ouvido, dancei com os livros que tenho lido, apreciei aromas e sabores prediletos.

Sorri à vida, ao Sol e ao mar. Agradeci às boas conversas, aos carinhos e afetos de quem, sabendo minhas imperfeições, escolhe dividir seu tempo comigo.

Não temos tempo a perder. Porque se o mundo tá repleto de tretas, umbigos e indiferenças, o fato é que o "nosso suor sagrado, é bem mais belo que esse sangue amargo. E selvagem!".

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quinta-feira, 7 de novembro de 2019

A educação e seus reais problemas

 Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Mais uma vez, acompanhamos uma galera rindo dos atrasados do ENEM. A "piada", por si sem graça, tira o foco de assuntos mais importantes. A ausência de qualquer referência à ditadura civil-militar na prova de Humanas, por exemplo.

Além disso, os dados do ENEM, como a vasta literatura científica, mostram que estudantes de classes sociais vulneráveis raramente alcançam os melhores desempenhos educacionais. Sabe-se, também cientificamente, que boas escolas, pedagogias diversas e condições de aprendizagem adequadas podem reverter desvantagens sociais.

Hoje, uma visão autoritária e atrasada, somada ao abandono do Estado no financiamento da Educação, esconde e aprofunda nossos principais problemas - renegando, ainda, as alternativas existentes e aquelas a fazer.
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terça-feira, 15 de outubro de 2019

Ler o mundo, ser você mesmo

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Uma vez, uma aluna me perguntou, durante um conflito em sala de aula: "Ah, então me diz, professor serve pra quê?" Fiquei desconcertado.

De dentro, respondi meio estilo Paulo Freire: "Por aí a gente vê professor doutrinando as coisas de sempre; pregando moral; ensinando coisas úteis pra tarefas diversas; mas, pra mim, o professor serve pra ajudar a ler o mundo, e pra ajudar a gente a ser a gente mesmo".

Ela ficou me olhando e silenciou. E eu, que tenho tantas dúvidas, que por vezes tenho dificuldades pra ler o mundo, acabei me dando conta: é exatamente a resposta que dei o que me motiva a continuar.
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domingo, 25 de agosto de 2019

Ciência e tecnologia na modernidade


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor


O tema da ciência e da tecnologia na modernidade possui uma ampla gama de abordagens nas Ciências Sociais. As discussões envolvem, pelo menos, as dimensões epistemológicas, ontológicas e sociológicas. Este texto apresenta um conjunto de autores indispensáveis para aprofundar tais questões, constituindo uma espécie de “mapeamento breve” acerca da temática.

É possível começar discorrendo sobre o positivismo de Augusto Comte. Nessa ótica, as Ciências Sociais se assemelham às Ciências Naturais, sendo a realidade social uma entidade externa ao pesquisador. A realidade social é cognoscível na sua totalidade, cabendo ao pesquisador descrevê-la e analisá-la. Como cientista e objeto de pesquisa são diferentes, a ciência pode ser feita com “neutralidade”, sem que o cientista afete o objeto de pesquisa ou os resultados dela. Buscam-se leis e regularidades, além de relações causais.

O pós-positivismo tem em Karl Popper um nome importante. Para o autor, a ciência é sempre conjectural e provisória. As teorias científicas seriam apenas teorias, até que sejam “falseadas” pelos fatos. O que as Ciências devem fazer é procurar provas da falsidade das teorias em questão. O processo de confronto das teorias com as observações e experimentações pode provar a falsidade ou não das teorias analisadas. As Ciências devem sempre se aproximar da verdade, mesmo que seu estado atual seja sempre provisório.

Também importa falar de Thomas Kuhn. Esse autor costuma ser considerado fundamental para o chamado “giro histórico e sociológico” dos estudos sobre as “Ciências”, rompendo com a perspectiva formalista, que não se propõe a discutir a influência de fenômenos históricos e sociais nos achados científicos. O referido rompimento estimula a problematização dessas influências na atividade científica. Kuhn entende que as Ciências se desenvolvem a partir de fases determinadas. Primeiro, estabelece-se um paradigma, que dá lugar à “Ciência normal”. Conforme a Ciência segue seu desenvolvimento, novos trabalhos podem gerar uma crise e engendrar uma “Ciência extraordinária”. Disso, pode ocorrer uma “revolução científica” e a chegada de um novo paradigma.

Karl Mannheim entende que é preciso aplicar uma “Sociologia do conhecimento” ao que chama de “Ciências da Cultura”. As Ciências Naturais não demandariam esse procedimento, visto que seus paradigmas fundam-se na lógica matemática. A teoria do autor afirma a “dependência situacional” ou “determinação existencial” do conhecimento produzido pelas Ciências da Cultura. Mannheim defende que existem modos de pensamento que não podem ser compreendidos com rigor se se mantiverem obscuras suas origens sociais.

O sociólogo Robert Merton delineou quatro conjuntos de imperativos institucionais que caracterizariam o ethos da ciência moderna e a distinguiriam das pseudo-ciências: (a) o comunalismo significa que os resultados científicos são propriedades comuns de toda a sociedade; (b) o universalismo implica que todos cientistas podem contribuir para a ciência; (c) o desinteresse, com a ideia de que os cientistas devem agir pela ciência e não por motivos pessoais; e (d) o ceticismo, que denota a necessidade de as alegações científicas estarem sempre sob escrutínio crítico.

Pierre Bourdieu, por sua vez, analisou a produção científica através do conceito de campo, essencial para a sua Sociologia. Os campos são microcosmos relativamente autônomos no espaço social, que seguem regras e disputas próprias. A luta no campo científico conferiria ganhos e perdas aos agentes com base em duas espécies particulares de capital, o capital social, que está ligado à ocupação de posições importantes na academia e ao acesso dos agentes a essas relações, e o capital científico, uma variante do capital simbólico, associado ao reconhecimento pelos pares. Para o autor, a importância da Sociologia da Ciência reside na necessidade de uma reflexividade crítica sobre as práticas no campo científico.

Não obstante, é com o Programa Forte em Sociologia do Conhecimento que a valorização do contexto social da prática científica ganha maior relevância. David Bloor, um dos seus principais expoentes, propõe uma investigação sociológica voltada aos processos sociais de elaboração cognitiva e de aceitação do conhecimento científico, inclusive quanto ao seu conteúdo. A ciência e a tecnologia não estariam livres dos condicionamentos sociais, à medida que sua validade e legitimidade possuiriam estreita correlação com as dinâmicas sociais que atravessam o fazer científico. A abordagem de Bloor elenca quatro princípios: a causalidade, a imparcialidade, a reflexividade e a simetria. Este último, bastante relevante, expressa um tratamento equivalente do verdadeiro e do falso, do científico e do social.

Karin Knorr-Cetina argumenta que existem “conexões transepistêmicas” incorporadas nas práticas científicas, que precisam ser levadas em conta no que ela chama de “organização contextual da produção do conhecimento”. As arenas transepistêmicas não permitiriam diferenciar o que é ciência especializada e o que se refere a assuntos transversais, porque estaria justamente nas relações entre ambos os aspectos a construção do conhecimento científico e tecnológico.

Já Bruno Latour analisa a ciência e a tecnologia desde uma perspectiva “construtivista”, indicando que o processo de produção científica envolve uma rede intrincada de elementos humanos (cientistas, engenheiros, financiadores e etc.) e não humanos (máquinas, laboratórios, insumos e etc.), que deve ser observado em interação contínua. A chamada teoria do ator-rede propõe seguir os actantes nas suas interações relacionadas com o resultado da práxis científica, denominada tecnociência. A produção do conhecimento é realizada em redes, sustentada por movimentos de aproximações e distanciamentos entre o que se passa dentro e fora dos laboratórios.

Em Michel Foucault fortalece-se a ideia de que saber, ciência e tecnologia mantêm relações próximas com a temática do poder. O desenvolvimento das ciências modernas acompanha a disseminação das tecnologias de controle e disciplinamento dos corpos, característica destacada pelo autor central no decurso da modernidade. O conhecimento acumulado sobre o ser humano acabaria sustentando o processo de “docilização” e “conformação” dos corpos, na medida em que tais saberes fundamentam a atuação das instituições modernas.

Ainda pensando a ciência na interface com o poder, Félix Guattari e Gilles Deleuze trabalham com as noções de “ciência maior” (ou “régia”) e “ciência menor” (ou “nômade”). A ciência maior partiria do método científico moderno, tratando o objeto de estudo de forma isolada, seguindo classificações organizadas, utilizando amostras e teorias e axiomas. A ciência nômade ocorreria nos interstícios da ciência régia, sem buscar um desenvolvimento autônomo, agregando saberes que não possuem um status científico, não sendo considerados saberes hegemônicos. São saberes restritos, locais e particulares. Para os autores, ambas as ciências coexistem, mas a ciência maior sempre tentaria institucionalizar a ciência menor, numa relação de captura e em um jogo de poderes.

A última forma de pensar ciência, tecnologia e sociedade abordada neste texto pode ser agrupada sob o rótulo de “pós-colonialismo”. Em geral, para autores como Walter Mignolo, Boaventura de Sousa Santos, Aníbal Quijano ou Gayatri Spivak, a ciência moderna está intrinsecamente conectada ao processo de colonização europeia sobre os demais continentes do planeta. Ainda que o colonialismo enquanto política de expansão territorial tenha acabado no século XX, a “colonialidade” permaneceria no âmbito do saber, do poder e do imaginário. Boaventura de Sousa Santos, por exemplo, defende que o paradigma científico moderno criou uma espécie de “linha abissal” entre os conhecimentos originados no “norte” e no “sul” global, enquanto propõe o que chama de “epistemologias do sul” como alternativas de valorização dos saberes decolonizados e complexificação do entendimento da realidade social.

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segunda-feira, 17 de junho de 2019

O método sociológico em Weber


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Contrariando qualquer forma de determinismo, o alemão Max Weber é considerado um dos clássicos da Sociologia e fundador de uma tradição bastante fecunda nas Ciências Sociais. Weber destoa dos autores que propunham abordagens metodológicas para as ciências da sociedade a partir de laços estreitos com as ciências da natureza. Segundo o autor, não é possível tratar as relações entre seres humanos como “coisas”, ou encontrar uma “linha mestra” (teleológica) da História humana.

Para produzir uma ciência da vida social, é fundamental compreender a ação das pessoas desde o ponto de vista do sentido e dos valores que elas atribuem às suas ações, e não simplesmente desde pretensas causas e condicionamento externos. A trajetória de Weber abrange a proposição de construir um quadro conceitual para dar conta do conjunto das atividades humanas, situando-as nos seus períodos históricos específicos. Às ciências do comportamento humano cabe resgatar e compreender a marca característica de cada época e de cada cultura, demarcando-as na dimensão dos fatos, e não das abstrações por si só.

Weber deixa claro que é preciso separar a Sociologia da opinião. A Sociologia não teria como objetivo amparar reformas ou revoluções sociais, na medida em que demanda uma “neutralidade axiológica”, um guia para o cientista social capaz de mantê-lo sempre atento às diferenças entre o que é “normativo” e o que é “real”, ou entre o que é “juízo de valor” e o que é “juízo de fato”. Nada disso significa que o sociólogo não possua valores pessoais ou opiniões sobre quaisquer fenômenos da vida coletiva, mas, sim, que esses juízos de valor não podem macular o trabalho científico, ligado aos juízos de fato. A Sociologia não é uma atividade especulativa ou uma analítica conectada ao exercício da política.

Não obstante, como se pode definir o método sociológico, na visão weberiana? Na perspectiva de Max Weber, a Sociologia deve ser definida como uma ciência que pretende compreender e interpretar as atividades sociais e, assim, capacita-se a explicar as causas, os processos e os efeitos das ações humanas em sociedade. Tais atividades sociais são definidas pelo autor como “ação social”, caracterizando o comportamento humano que produz sentidos subjetivos e se orienta e se relaciona com o comportamento de outras pessoas. Dessa forma, nem toda atividade ou ação humana é uma “ação social”, pois ela demanda uma relação ou orientação para com outras pessoas ou grupos de pessoas. A compreensão e a interpretação das causas e efeitos das ações sociais constituem o objeto próprio da análise sociológica.

A Sociologia weberiana é uma ciência compreensiva e explicativa, cujo centro analítico reside em compreender e explicar os valores e sentidos pelos quais se pautam as ações sociais. Contudo, essa dimensão compreensiva em termos metodológicos não é uma criação de Weber, mas remete ao filósofo alemão Wilhelm Dilthey e a toda uma posterior corrente de pensadores “neokantianos”. Com a obra “Introdução às ciências do homem” (1883), Dilthey promove uma separação relevante entre os métodos das ciências da natureza e os métodos das “ciências do espírito”. A distinção principal entre os métodos se deve ao fato de que as ciências humanas lidam com seres dotados de consciência e que agem motivados por valores, crenças, representações e racionalidade, não se limitando a reagir aos estímulos dos ambientes que frequentam.

Em virtude disso, as ciências humanas não podem se vincular ao positivismo, e precisam adotar o método compreensivo, reconstituindo o sentido que os indivíduos atribuem às suas ações. Os fenômenos sociais não são simples consequências de pressões externas ou causas que se impõem às pessoas. A vida em sociedade é o resultado das decisões levadas a cabo pelos próprios indivíduos, que agem produzindo sentido às suas ações. Em Weber, a procura por evidenciar as causas dos fenômenos sociais é o complemento lógico da Sociologia compreensiva. Explicar é perceber a analisar o efeito de uma ação X sobre uma ação Y, buscando as conexões entre as ações sociais através de cadeias causais. Quando se dá forma a esse encadeamento causal, faz-se perceptível as possíveis contradições e os possíveis conflitos oriundos dos sentidos dados pelos indivíduos no decurso das suas ações.

Conforme o sociólogo alemão, a vida em sociedade possui uma pluralidade de causas, sendo cada sociedade singular e passível de ser explicada por meio de uma combinação de múltiplos fatores: econômicos, políticos, culturais, morais e etc. A ciência da sociedade pode apontar tendências e probabilidades. A Sociologia não tem condições de dizer o que os indivíduos devem fazer, pois ela é uma ciência empírica, devendo analisar aquilo que os sujeitos podem ou querem fazer. Weber se utiliza das comparações em diversos momentos da sua obra, o que fornece a possibilidade de destacar as singularidades das configurações históricas, sociais, religiosas e etc. – tudo aquilo que o cientista social pode estudar.

Weber sugere, ainda, o uso de um instrumento conceitual definido como “tipo ideal”. Na tarefa de analisar as ações sociais, o cientista pode criar categorias que não consistem em representações exatas dos fenômenos estudados, mas acentuam deliberadamente determinados trações desses fenômenos. O tipo ideal não é um espelho da realidade, mas auxilia na análise dos componentes da realidade a ser pesquisada. Trata-se de uma ferramenta de investigação com fundamentos totalmente lógicos, e não um fim em si mesmo. O tipo ideal é útil, também, para a busca de causalidades, pois comparando a realidade de um fenômeno e a lógica do seu tipo ideal, o sociólogo pode captar e confirmar a coerência do fenômeno e distinguir as causas exteriores que recaem sobre ele.

Referências

LALLEMENT, Michel. História das ideias sociológicas: das origens a Max Weber. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

WEBER, Max. Metodologia das Ciências Sociais. São Paulo: Editora Cortez, 2016.

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sábado, 15 de junho de 2019

Justiça caolha

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Enquanto eu lia as primeiras conversas nada republicanas entre nossas autoridades judiciais, uma verdadeira balbúrdia ocorria no busão que me levava ao trabalho.

Nem a visão da estátua da liberdade estilo "falsiane" foi capaz de acalmar os ânimos: havia uma poltrona molhada e parecia mijo.

Até tirei os fones de ouvido. Ao meu lado, o acusador derramava sua tese. Dizia que, se havia um homem com um cão no veículo (e havia), eles eram os culpados pela poltrona pretensamente mijada.

O homem com o cão negava a autoria do delito. Declarava não haver provas contra si e seu simpático animal.

O ônibus parou numa das 78 estações. O juiz - o piloto - foi avisado do quiprocó. O clima de tensão crescia no ar.

Logo, grupos de apoiadores estavam formados. E raivosos. E cada vez mais numerosos. O busão ardia.

Os apoiadores da acusação gritavam palavras de ordem contra cães em transportes coletivos.

Os apoiadores do acusado afirmavam não haver provas, apenas teorias, ilações que se passavam por evidências.

Na parada seguinte, o motorista deu o veredito: o rapaz com o cão teria que sentar na poltrona molhada/mijada.

O rebuliço virou um caos. Os apoiadores da acusação babavam e vibravam. Nos apoiadores do acusado via-se a cólera de quem se sente injustiçado.

Contrariados, o homem e seu cachorro sentaram na poltrona da discórdia. A viagem seguiu, assim como eles seguiam defendendo a sua inocência.

Na parada seguinte, um garoto que olhava tudo com atenção, desconfiado de todos, pediu a palavra. Dizia ter visto e gravado uma conversa entre o juiz e o acusador. Nela, o piloto defendia o veto de cães em viagens rodoviárias.

Porém, não era só isso. O juiz e o acusador seriam velhos conhecidos, e o segundo teria lembrado o primeiro de que era preciso ser contra cachorros viajantes para mudar o país. De quebra, alcançaria um cargo melhor na empresa.

Já não consigo descrever o que se tornou minha ida ao trabalho. Ninguém confiava mais em ninguém. Era mesmo um faroeste - caboclo, canarinho e canino.

No fim, ainda bem que ninguém estava armado. Ah, e a justiça? Essa mais parecia uma jararaca caolha, ou só agia como a carrocinha mesmo.

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quinta-feira, 13 de junho de 2019

O método sociológico em Marx


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O materialismo histórico e dialético proposto por Karl Marx está associado a uma concepção de realidade, de mundo e da vida em sociedade. Ao entrar em contato com os problemas sociais da Alemanha, Marx começa a desenvolver uma concepção materialista, procurando entender os problemas concretos das vidas das pessoas.

Os estudos de Marx provinham do método de pesquisa e pensamento de Friedrich Hegel, com o seu modelo idealista orientado pela lógica dialética. Para Hegel, o pensamento metafísico se pautava pela tendência a perceber os conceitos de modo estático, separados uns dos outros, com a definição isolada do sujeito e do objeto. Contrapondo a metafísica, Hegel define o desenrolar da história humana não como um fio dotado de continuidade e linearidade, mas como um devir formado por uma tríade localizada no mundo das ideias: uma afirmação (tese), uma negação (contradição, antítese) e a negação da negação (síntese).

Essa perspectiva se associa ao conceito de “dialética”, retirado da filosofia pré-socrática, sobretudo no “embate” entre Heráclito e Parmênides. Enquanto o primeiro sustentava que tudo está em constate movimento e transformação (“o rio que nos banhamos nunca é o mesmo, nem mesmo nós somos”), o segundo defendia a tese de que o movimento e a transformação constituem apenas um mundo de aparências, sendo a “essência” algo imutável.

Marx adere à leitura dialética da história, seguindo sua leitura de Hegel. Contudo, em contato com as teorias materialistas, sobretudo de Ludwig Feuerbach, passa a ser influenciado pela abordagem que não vê nas ideias (idealismo, como em Hegel) o eixo articulador das atividades humanas, mas no mundo material o seu foco principal. Trata-se de uma inversão da dialética hegeliana, priorizando a matéria antes das ideias, o que acaba definindo o “materialismo histórico e dialético” como o método analítico marxiano.

O materialismo histórico e dialético fundamenta-se no método dialético de Hegel, salientando não o mundo das ideias, mas o mundo material. Marx entende que, na produção social da sua existência, os seres humanos tecem relações específicas que são independentes das suas vontades particulares, mas dizem respeito a relações de produção material. Essas relações de produção, em conjunto, conformam a estrutura econômica das sociedades, a base sob a qual se ergue a superestrutura jurídica, política, religiosa e etc, que correspondem a determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida concreta, material, condiciona o desenvolvimento da vida em sociedade, da vida política e intelectual como um todo. Marx deixa claro que, no se esquema analítico, não é a consciência dos homens que define a sua vida social, mas a sua vida social que define a sua consciência.

É preciso, também, fazer uma distinção entre o método de exposição formal e o método de pesquisa, em Marx. A pesquisa necessita captar detalhadamente a matéria, analisar suas diferentes formas de evolução e investigar as suas íntimas relações. Terminado esse trabalho minucioso de pesquisa, torna-se possível expor adequadamente o movimento do real. A exposição deve espelhar em forma de ideias o que acontece na vida material, na vida concreta dos seres humanos em sociedade, num determinado momento histórico e nas suas relações com o passado.

Dessa forma, o percurso do método de pesquisa é mais amplo, mais detalhado, sendo que o método de exposição expressa uma síntese da análise concreta, que pode ser apresentada, inclusive, em sequência diferente de como foi aplicado o método de pesquisa. Isso porque o método de exposição das conclusões de qualquer estudo deve primar por apresentar os resultados de maneira pormenorizada, fazendo com que estes resultados sejam claramente compreendidos por outras pessoas.

No materialismo histórico e dialético, entender a realidade social demanda analisar, pelo pensamento, um conjunto amplo de relações, particularidades, detalhes que compõem uma totalidade. Se o objeto de análise do pensamento é mantido isolado, ele se torna imobilizado no próprio pensamento, convertendo-se numa mera abstração metafísica. Contudo, a abstração é uma fase intermediária, pois, partindo de um mundo concreto e o levando até o nível da abstração, fica possível chegar a um concreto mais complexo, capaz de captar o que é verdadeiramente importante. Sem passar pela abstração, o concreto é apenas superficial, vinculado apenas às aparências.

O principal trabalho de pesquisa de Marx, a crítica rigorosa do capital, mostra-se como um exemplo evidente do uso do materialismo histórico e dialético, na busca por revelar a dinâmica da produção e da transformação do ser social produzido pelas relações de produção capitalistas. O método marxiano procura partir do real, do concreto, do olhar caótico sobre um todo desorganizado; depois, analisando com maior precisão, utilizando dos recursos da abstração, procura delimitar conceitos cada vez mais simples; por fim, do concreto permeado por abstrações, bastante detalhado, procura iluminar as determinações do fenômeno em estudo de maneira simples e objetiva. 

Referências

LALLEMENT, Michel. História das ideias sociológicas: das origens a Max Weber. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
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quinta-feira, 23 de maio de 2019

O método sociológico em Durkheim


 Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

A obra de Émile Durkheim deve ser pensada em contato com o período histórico em que estava inserida: a III República Francesa, cuja principal “obsessão” era unir a nação, superar incertezas políticas e resolver a “questão social” por meios pacíficos e através do direito. Diante disso, Durkheim ficou conhecido como um dos fundadores da Sociologia, pois participou da sua institucionalização enquanto disciplina acadêmica É nesse contexto que Durkheim elabora o que ele chama de “regras do método sociológico”.

A Sociologia durkheimiana é a ciência dos fatos sociais. Os fatos sociais são maneiras de agir, pensar e sentir, fixas ou não, que exercem coerções exteriores sobre os indivíduos. Podemos pensar no direito, de imediato, como um fato social por excelência, tendo em vista que as leis constrangem as pessoas a segui-las, agindo de maneira coercitiva sobre os indivíduos. Porém, Durkheim ressalta que não apenas o direito, mas outros diversos fenômenos sociais guiam nossas práticas, quase como sistemas de regras invisíveis, como o modo de se vestir, de consumir, de pensar e etc.

A tarefa principal do sociólogo é destacar e analisar esses comportamentos que se traduzem em regularidades determinadas socialmente. Em outras palavras, cabe ao sociólogo observar e explicar os fatos sociais (e sua causalidade) com o apoio de categorias e instrumentos científicos. Os fatos sociais são, portanto, o objeto próprio e específico da Sociologia.

Na esteira da lógica científica, a primeira consideração a ser feita no trabalho sociológico é a necessidade de tratar os fatos sociais como “coisas”. No entanto, é preciso atenção nesse ponto. Isso não significa que os fatos sociais devam ser reduzidos a fatos naturais. Para Durkheim, tratar os fatos sociais como “coisas” equivale ao tratamento dado pelos cientistas naturais sobre seus objetos de estudo, isto é, observar “de fora” o seu objeto de investigação científica. O sociólogo deve saber se colocar à distância dos fatos sociais que pretende analisar, e manter sempre a busca pela maior objetividade possível nas suas análises.

Ocorre que temos aí uma complicação para uma ciência que trata de fenômenos nos quais os próprios cientistas estão mergulhados – os sociólogos habitam o mundo social. Por isso, Durkheim defende que é imperativo “afastar sistematicamente as prenoções” que possuímos da vida em sociedade, no decurso do trabalho sociológico. É fundamental rejeitar as chamadas “falsas evidências” que a nossa experiência sensível com o mundo social nos lega cotidianamente. O social não é e não pode ser visto pelo sociológo como algo transparente e inteligível de imediato. Essa é uma primeira característica essencial do método sociológico durkheimiano.

Um segundo ponto relevante diz respeito ao desiderato que compete ao sociólogo no percurso de construção dos seus objetos de estudo, a regra de isolar e definir com precisão aguçada a categoria de fatos que se propõe a pesquisar. Numa analogia com a biologia médica, o autor separa o que se considera “normal” do que se considera “patológico”. O fato social “normal” tem relação com um tipo social determinado, numa fase determinada de seu desenvolvimento e que se produz na média das sociedades do mesmo tipo, numa fase específica da sua evolução. O crime, por exemplo, é um fato social normal, pois não se conhece sociedades sem a existência de crimes.

É primordial, ainda, um terceiro ponto metodológico em Durkheim. Fugindo de especulações que, para o autor, não mereceriam sequer uma hora de seus esforços de pesquisa, é preciso explicar os fatos sociais por fatos sociais anteriores, e não por elementos biológicos, psicológicos e etc. O sociólogo tem de priorizar o “método das variações concomitantes”, que consiste na comparação das variações respectivas das variáveis estudadas. O conjunto de regras metodológicas pensado por Durkheim fornecem as bases do que poderíamos chamar de racionalismo positivista.

Referências

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.

LALLEMENT, Michel. História das ideias sociológicas: das origens a Max Weber. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

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quinta-feira, 16 de maio de 2019

O leitor e os insetos

 Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Diante do ataque à educação no Brasil, lembrei uma viagem de ônibus que fiz com uma galera bem diversa. Tinha gente de classe média, classes populares, negros, brancos, mulheres, enfim, uma gurizada heterogênea.

Lá pelas tantas, quando a empolgação parecia ter baixado e a rapaziada parecia se encaminhar para um breve descanso, alguém apontou sem dó, nem piedade: “Olha ali, tem um leitor no bus!!!”.

Foi aquele rebuliço. Todo mundo folgando no rapaz. “Um leitor, pqp!!!!”. “Vai ler na casa do car..., rapá!”. “Ui, ui, ui, olha ali, todo leitorzinho!”.

A relação das pessoas com o conhecimento, sobretudo em países com acesso muito desigual, como o Brasil, tende a ser bastante estranha e contraditória.

De um lado, muitas famílias focam nos estudos a única possibilidade de ascensão social. De outro, muitas vezes o malandro costuma ser aquele que se dá bem na escola ou na universidade sem estudar ou se esforçar.

Óbvio que a arrogância intelectual é o outro polo do problema. Tenho convicção que as pessoas e instituições que trabalham com conhecimento precisam sair de suas bolhas e botar a cara no mundo. Além, é claro, de não reproduzir preconceitos linguísticos ou se achar o centro do universo.

Porém, destruir as principais instituições de ensino e pesquisa de uma nação não colabora para democratizar o conhecimento. Tem mais a ver com ressentimento, ódio ideológico e interesses econômicos das instituições privadas de educação do que outra coisa.

Trabalhar para não confundir “cônjuge” com “conje”, “rusgas” com “rugas” ou Franz Kafka com um “Kafta” imaginário, não me parece arrogância. Assim como apenas isso não resolve nossos problemas sociais.

Só não dá pra vangloriar a ignorância e achar que o paraíso nos espera. Ou muitos de nós seguirão dormindo como humanos e "acordando" como insetos.

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quarta-feira, 1 de maio de 2019

Neoliberalismo e a nova razão do mundo


Por Felipe Queiroz
Ciência Política Unicamp

Publicado originalmente na França em 2009, logo após a eclosão da crise financeira global, A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal (Dardot; Laval, 2016) apresenta uma profunda análise do neoliberalismo, mostrando como ele constitui, muito além de uma doutrina econômica ou ideologia, uma nova racionalidade de mundo, que estrutura e organiza tanto as ações dos governantes como a própria conduta dos governados. A obra faz uma genealogia do neoliberalismo para mostrar, por um lado, que ele não é uma simples continuidade do liberalismo clássico do século XVIII, do mesmo modo que não é seu extravio nem sua negação, e, por outro lado, para problematizá-lo a partir de suas vertentes e disputas internas, mostrando como ele passou de uma doutrina econômica para um “sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida” (Dardot; Laval, 2016, p. 7). Nesse sentido, a obra busca fornecer subsídios à crítica ao neoliberalismo, na medida em que desfaz consensos e equívocos em torno dele.

A nova razão do mundo é o segundo livro publicado em conjunto pelos autores e resulta das investigações desenvolvidas no grupo de estudos e pesquisa que coordenam Question Marx. O primeiro livro derivado dos seminários Question Marx, Sauver Marx? Empire, multitude, travail immatériel (2007), faz uma crítica ao pensamento de alguns pós-marxistas, entre eles Michael Hardt e Antonio Negri, que entendem ser a autossuperação do capitalismo o resultado de suas próprias contradições internas e acatam a crença progressista segundo a qual todo passo dado pelo capitalismo é um avanço em direção ao momento de sua autossuperação. A nova razão do mundo se apresenta como continuidade dessa investigação, apontando como e porque “ainda não terminamos com o neoliberalismo”, quando muitos autores, no ápice da crise financeira internacional, como Joseph Stiglitz, anunciavam seu fim.

O livro está dividido basicamente em duas grandes partes: A refundação intelectual e A nova racionalidade. A primeira parte é, em certo sentido, uma tentativa de retomar o debate aberto por Michel Foucault nos cursos do Collège de France de 1977-1978 e 1978-1979, expostos respectivamente nos livros Segurança, Território, População e O nascimento da biopolítica, apontando como se forma o neoliberalismo, como nova racionalidade do capitalismo contemporâneo. O ponto de partida da investigação dos autores é a crise do liberalismo, ou crise da governamentalidade liberal, nos termos de Michel Foucault, que dura entre 1880 e 1930. O objetivo é mostrar que o neoliberalismo não é uma simples continuidade das ideias liberais, mas, antes, marca um rompimento com a versão dogmática do liberalismo, que via no laissez-faire uma verdade inalienável. Enquanto o liberalismo clássico passava por uma profunda crise, a Revolução Russa, o avanço do socialismo e a disseminação das ideias de esquerda por toda Europa ameaçavam os liberais, impondo-lhes a necessidade de reformulação teórica do liberalismo. É nessa conjuntura de crise política, econômica e teórica que surge a principal tentativa de refundação do liberalismo: o Colóquio Walter Lippmann, em 1938. A partir do Colóquio, duas grandes correntes de pensamento neoliberal surgirão: a corrente austro-americana, representada por Friedrich A. Hayek e Ludwig von Mises, e a corrente ordoliberal alemã, cujos principais expoentes foram Walter Eucken e Wilhelm Röpke.

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terça-feira, 23 de abril de 2019

Elias, liberdade individual e relações sociais


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

A ideia de "liberdades individuais", para mais ou para menos, é um dos fundamentos das sociedades modernas. Na vida real, a perspectiva da garantia dos direitos individuais para as minorias de poder acaba violada em amplos aspectos. Isso coexiste com a retórica do mercado como bastião da liberdade. Para alguns, qualquer influência da sociedade na economia, via Estado, seria uma afronta à soberania dos indivíduos. Forja-se um caldeirão fervendo de apologia ao livre mercado e, tudo junto e misturado, adesão ao conservadorismo moral.

Certa vez, uma badalada representante política desse ultraliberalismo na economia disse a seguinte frase: "não existe essa coisa de sociedade; o que existe são os indivíduos e suas famílias". Esse genuíno preceito individualista tem pautado com força o debate político brasileiro. Ele projeta as realizações de cada pessoa suplantando a importância das relações que estabelecemos uns com os outros. É como se um amontoado de pedras soltas pudesse ser considerado uma casa.

O sociólogo alemão Norbert Elias ensina que, ao espaço objetivo das relações sociais, das relações cotidianas entre indivíduos, podemos dar o nome de "sociedade". Não se trata de pensar que o todo conforma a parte, ou a sociedade conforma o indivíduo. A questão é entender que somos, individualmente, produzidos na interdependência com outras muitas pessoas, no contexto de estruturas sociais que atravessam a vida individual e coletiva.

Uma sociedade pode ser vista como uma rede de tecido. Nessa rede, vários fios individuais se ligam uns aos outros, mas a totalidade da rede e a forma que cada fio assume não podem ser entendidas como resultado de um fio exclusivo ou mesmo de todos eles, se pensados individualmente. Para entender a rede, precisamos entender a maneira como se ligam os fios, a interdependência entre eles. Suas ligações dão formato a uma estrutura de tensões influenciada por cada um dos fios, de modo diferenciado conforme a localização e a função de cada fio para a totalidade da rede. Um fio individual pode ser modificado diante de alterações na estrutura das tensões e da própria rede como um todo. Porém, a rede segue sendo fruto de uma ligação entre fios individuais, cada fio constituindo uma unidade em si, com singularidade no interior da totalidade da rede.

Quais indivíduos queremos ser? Qual sociedade queremos para viver? De alguma forma, precisamos resgatar a noção prática de que nossa individualidade tem que ser garantida, mas pra isso depende da garantia das demais. Não é mais possível banalizar tanta desigualdade, tanta opressão e injustiça. A combinação entre liberdade absoluta aos interesses de mercado (uma "sociedade de mercado" e não mais uma economia de mercado regulada pelos interesses da sociedade), os variados fundamentalismos étnicos, morais e religiosos do tempo presente e um suporte tecnológico jamais visto pode gerar diferentes "absolutismos do século XXI", estruturas de relações e tensões bem distantes do ideal de uma sociedade aberta, democrática e plural.

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