ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 1 (16)

América do Sul, Brasil,

domingo, 25 de agosto de 2019

Ciência e tecnologia na modernidade


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor


O tema da ciência e da tecnologia na modernidade possui uma ampla gama de abordagens nas Ciências Sociais. As discussões envolvem, pelo menos, as dimensões epistemológicas, ontológicas e sociológicas. Este texto apresenta um conjunto de autores indispensáveis para aprofundar tais questões, constituindo uma espécie de “mapeamento breve” acerca da temática.

É possível começar discorrendo sobre o positivismo de Augusto Comte. Nessa ótica, as Ciências Sociais se assemelham às Ciências Naturais, sendo a realidade social uma entidade externa ao pesquisador. A realidade social é cognoscível na sua totalidade, cabendo ao pesquisador descrevê-la e analisá-la. Como cientista e objeto de pesquisa são diferentes, a ciência pode ser feita com “neutralidade”, sem que o cientista afete o objeto de pesquisa ou os resultados dela. Buscam-se leis e regularidades, além de relações causais.

O pós-positivismo tem em Karl Popper um nome importante. Para o autor, a ciência é sempre conjectural e provisória. As teorias científicas seriam apenas teorias, até que sejam “falseadas” pelos fatos. O que as Ciências devem fazer é procurar provas da falsidade das teorias em questão. O processo de confronto das teorias com as observações e experimentações pode provar a falsidade ou não das teorias analisadas. As Ciências devem sempre se aproximar da verdade, mesmo que seu estado atual seja sempre provisório.

Também importa falar de Thomas Kuhn. Esse autor costuma ser considerado fundamental para o chamado “giro histórico e sociológico” dos estudos sobre as “Ciências”, rompendo com a perspectiva formalista, que não se propõe a discutir a influência de fenômenos históricos e sociais nos achados científicos. O referido rompimento estimula a problematização dessas influências na atividade científica. Kuhn entende que as Ciências se desenvolvem a partir de fases determinadas. Primeiro, estabelece-se um paradigma, que dá lugar à “Ciência normal”. Conforme a Ciência segue seu desenvolvimento, novos trabalhos podem gerar uma crise e engendrar uma “Ciência extraordinária”. Disso, pode ocorrer uma “revolução científica” e a chegada de um novo paradigma.

Karl Mannheim entende que é preciso aplicar uma “Sociologia do conhecimento” ao que chama de “Ciências da Cultura”. As Ciências Naturais não demandariam esse procedimento, visto que seus paradigmas fundam-se na lógica matemática. A teoria do autor afirma a “dependência situacional” ou “determinação existencial” do conhecimento produzido pelas Ciências da Cultura. Mannheim defende que existem modos de pensamento que não podem ser compreendidos com rigor se se mantiverem obscuras suas origens sociais.

O sociólogo Robert Merton delineou quatro conjuntos de imperativos institucionais que caracterizariam o ethos da ciência moderna e a distinguiriam das pseudo-ciências: (a) o comunalismo significa que os resultados científicos são propriedades comuns de toda a sociedade; (b) o universalismo implica que todos cientistas podem contribuir para a ciência; (c) o desinteresse, com a ideia de que os cientistas devem agir pela ciência e não por motivos pessoais; e (d) o ceticismo, que denota a necessidade de as alegações científicas estarem sempre sob escrutínio crítico.

Pierre Bourdieu, por sua vez, analisou a produção científica através do conceito de campo, essencial para a sua Sociologia. Os campos são microcosmos relativamente autônomos no espaço social, que seguem regras e disputas próprias. A luta no campo científico conferiria ganhos e perdas aos agentes com base em duas espécies particulares de capital, o capital social, que está ligado à ocupação de posições importantes na academia e ao acesso dos agentes a essas relações, e o capital científico, uma variante do capital simbólico, associado ao reconhecimento pelos pares. Para o autor, a importância da Sociologia da Ciência reside na necessidade de uma reflexividade crítica sobre as práticas no campo científico.

Não obstante, é com o Programa Forte em Sociologia do Conhecimento que a valorização do contexto social da prática científica ganha maior relevância. David Bloor, um dos seus principais expoentes, propõe uma investigação sociológica voltada aos processos sociais de elaboração cognitiva e de aceitação do conhecimento científico, inclusive quanto ao seu conteúdo. A ciência e a tecnologia não estariam livres dos condicionamentos sociais, à medida que sua validade e legitimidade possuiriam estreita correlação com as dinâmicas sociais que atravessam o fazer científico. A abordagem de Bloor elenca quatro princípios: a causalidade, a imparcialidade, a reflexividade e a simetria. Este último, bastante relevante, expressa um tratamento equivalente do verdadeiro e do falso, do científico e do social.

Karin Knorr-Cetina argumenta que existem “conexões transepistêmicas” incorporadas nas práticas científicas, que precisam ser levadas em conta no que ela chama de “organização contextual da produção do conhecimento”. As arenas transepistêmicas não permitiriam diferenciar o que é ciência especializada e o que se refere a assuntos transversais, porque estaria justamente nas relações entre ambos os aspectos a construção do conhecimento científico e tecnológico.

Já Bruno Latour analisa a ciência e a tecnologia desde uma perspectiva “construtivista”, indicando que o processo de produção científica envolve uma rede intrincada de elementos humanos (cientistas, engenheiros, financiadores e etc.) e não humanos (máquinas, laboratórios, insumos e etc.), que deve ser observado em interação contínua. A chamada teoria do ator-rede propõe seguir os actantes nas suas interações relacionadas com o resultado da práxis científica, denominada tecnociência. A produção do conhecimento é realizada em redes, sustentada por movimentos de aproximações e distanciamentos entre o que se passa dentro e fora dos laboratórios.

Em Michel Foucault fortalece-se a ideia de que saber, ciência e tecnologia mantêm relações próximas com a temática do poder. O desenvolvimento das ciências modernas acompanha a disseminação das tecnologias de controle e disciplinamento dos corpos, característica destacada pelo autor central no decurso da modernidade. O conhecimento acumulado sobre o ser humano acabaria sustentando o processo de “docilização” e “conformação” dos corpos, na medida em que tais saberes fundamentam a atuação das instituições modernas.

Ainda pensando a ciência na interface com o poder, Félix Guattari e Gilles Deleuze trabalham com as noções de “ciência maior” (ou “régia”) e “ciência menor” (ou “nômade”). A ciência maior partiria do método científico moderno, tratando o objeto de estudo de forma isolada, seguindo classificações organizadas, utilizando amostras e teorias e axiomas. A ciência nômade ocorreria nos interstícios da ciência régia, sem buscar um desenvolvimento autônomo, agregando saberes que não possuem um status científico, não sendo considerados saberes hegemônicos. São saberes restritos, locais e particulares. Para os autores, ambas as ciências coexistem, mas a ciência maior sempre tentaria institucionalizar a ciência menor, numa relação de captura e em um jogo de poderes.

A última forma de pensar ciência, tecnologia e sociedade abordada neste texto pode ser agrupada sob o rótulo de “pós-colonialismo”. Em geral, para autores como Walter Mignolo, Boaventura de Sousa Santos, Aníbal Quijano ou Gayatri Spivak, a ciência moderna está intrinsecamente conectada ao processo de colonização europeia sobre os demais continentes do planeta. Ainda que o colonialismo enquanto política de expansão territorial tenha acabado no século XX, a “colonialidade” permaneceria no âmbito do saber, do poder e do imaginário. Boaventura de Sousa Santos, por exemplo, defende que o paradigma científico moderno criou uma espécie de “linha abissal” entre os conhecimentos originados no “norte” e no “sul” global, enquanto propõe o que chama de “epistemologias do sul” como alternativas de valorização dos saberes decolonizados e complexificação do entendimento da realidade social.

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