Sociólogo alemão defende a sua teoria sistêmica
Niklas Luhmann é considerado um dos proeminentes representantes da sociologia alemã do século XX. O seu nome está ligado ao que tem de mais atual sobre a teoria dos sistemas, e suas obras propiciaram novas abordagens nesse sentido.
No texto que compõe o objeto desta resenha (capítulos I e VIII, Poder, 1985), Luhmann deflagra a posição de que o poder é entendido como um meio de comunicação. A utilização da teoria dos meios de comunicação como suporte para uma teoria do poder leva a vantagem de possibilitar uma comparação entre o poder e a comunicação de diferentes tipos. A teoria do poder estabelece uma perspectiva geral acerca das formas de influência, transcendendo um conceito limitado de poder.
As teorias sociais, de acordo com os principais elementos herdados do século XX, se identificam com teorias de diferenciação social em estratos e subsistemas funcionais. Neste cenário, as reflexões sobre a comunicação em grande parte foram analisadas no âmbito psicológico, restrito ao indivíduo. Isso significa dizer que elas passaram quase despercebidas numa investida macrossociológica.
Luhmann declara a intenção de elaborar uma teoria geral da comunicação simbolicamente generalizada, unindo-a com o conceito de diferenciação social, assim como com as considerações acerca dos mecanismos e fases das evoluções socioculturais. Essa intenção está direcionada para suprir o vazio deixado na sociologia, numa busca por não atentar somente para um nível micro. A pretensão é não recorrer ao enfoque do sujeito, mas também evitar o tratamento dos indivíduos como concretos orgânica e psicologicamente.
Um dos supostos básicos consiste na ideia de que os sistemas sociais sempre se formam por intermédio da comunicação, o que supõe processos de seleção múltipla que se determinam uns aos outros por meio da antecipação e da reação. A comunicação só pode se dar na medida em que se entende a seletividade de uma mensagem. Isso implica contingência de ambos os lados que participam da comunicação, além da possibilidade de rejeitar as ofertas de seleção por via comunicativa. A rejeição comunicada em resposta e transformada num tema dentro dos sistemas sociais caracteriza um conflito. Todos os sistemas sociais carregam o potencial de conflito.
A opção entre uma resposta de “sim” ou “não” não pode ser orientada apenas pela linguagem, ao passo que é justamente a linguagem que garante as duas escolhas. Em todas as sociedades, Luhmann aponta a existência de mecanismos adicionais à linguagem que garantem a transferência das seleções numa medida adequada. Apenas as sociedades mais avançadas necessitam de uma diferenciação funcional entre o código geral de linguagem e os meios de comunicação simbolicamente generalizados – tais como o poder ou a verdade, ordenadores das motivações que fazem a aceitação das seleções oferecidas.
Encontra-se na história humana a invenção e disseminação da escrita como uma possível causa do desenvolvimento dos meios de comunicação notadamente simbólicos. A escrita aumentou bastante o potencial de comunicação das sociedades, indo muito além da interação face a face. Isso retirou o controle dos sistemas concretos de interação. Sem a escrita se faz impensável a criação de cadeias complexas de poder nas burocracias políticas e administrativas, tampouco o controle democrático sobre o poder político. Com efeito, a função classificadora de um código verdadeiro, logicamente esquematizado, só se mostra imperativa quando há a disponibilidade de um pensamento alicerçado na escrita.
O sociólogo alemão enfatiza que será através da recodificação da linguagem pela escrita que ocorrerá a liberação dos processos societários de comunicação das amarras das situações sociais e das suposições simplificadas ou óbvias. O objetivo de motivar a aceitação das comunicações aponta para a criação de códigos especiais, condicionantes do que pode ser mantido e suposto como exitoso.
Ao se referir aos meios de comunicação, Luhmann define um mecanismo adicional da linguagem, um código de símbolos generalizados que guia as transmissões de seleções. Para além da linguagem, os meios de comunicação possuem uma função de incentivo, pois estimulam a adoção de resultados seletivos externos, os colocando numa aceitação de normalidade. Os meios de comunicação sempre podem se engendrar quando o modo de seleção de um parceiro for, simultaneamente, estrutura de incentivo para o outro. Todos os meios de comunicação pressupõem situações sociais com possibilidades de opção para ambas as partes, isto é, situações de contingência dupla. O pressuposto primeiro e mais importante “[...] é que os processos de comunicação dirigidos pelos meios inter-relacionam os parceiros, que efetuam ambos operações seletivas próprias, tendo conhecimento simultâneo um do outro. Nós falaremos em alter e ego” (LUHMANN, 1995, p. 12).
Acordando com as proposições supracitadas, o autor entende que a insegurança retrata uma suposição essencial de todo poder, numa relação com as seleções de alter que tem o poder. Por quaisquer razões, alter tem à sua disposição mais de uma alternativa. Está possibilitado de produzir ou retirar a insegurança do seu parceiro, à medida que exerce suas seleções. É essa possibilidade de produzir ou retirar a insegurança que se forja como uma pré-condição absoluta do poder. Ela determina o alcance para as generalizações e especificações num dado meio de comunicação.
O poder precisa se diferenciar da coerção para fazer algo concreto e específico. Ele se desprende da sua função de criar uma dupla contingência na mesma medida em que se aproxima da coerção. A pessoa que usa da coerção deve conter uma carga de seleção e decisão ao mesmo ponto que se pratica a coerção. Ela tem que se dar aonde exista uma carência de poder.
O poder dos portadores do poder é maior se eles podem escolher realizar, na esteira do seu poder, tipos de decisões cada vez mais diversas. Não obstante, seu poder será maior se ele pode fazer isso com um parceiro que possui diferentes alternativas. No caso do poder, a chave de interesse é a transmissão de seleções e não a realização concreta de certos resultados. Luhmann (1995, p. 17) esclarece que é “[...] mais típico e satisfatório considerar o poder, do mesmo modo como qualquer outro meio de comunicação, como algo que limita a gama de escolhas do outro”.
É importante salientar que a função do poder, na concepção do sociólogo alemão, está explícita na proposição de que o poder assegura as cadeias possíveis de efeitos, independentes da vontade dos participantes sujeitos ao poder, eles desejem ou não. A causalidade do poder consiste em neutralizar a vontade e não em sobrepor a vontade dos inferiorizados. Conforme Luhmann (1995, p. 18), “[...] a função do poder consiste na regulação da contingência”. Nesse sentido, o poder pode ser comparado com o trabalho complexo de um catalizador. Os catalizadores aceleram ou retardam o começo dos sucessos. Sem que eles mesmos transformem os processos, geram mudanças no resultado das conexões efetivas ou nas suas probabilidades esperadas das conexões causais que vigoram entre o sistema e o seu entorno.
Conquanto não se deixe de recordar, para não fugir das ideias do autor, que se está falando de estruturas reais, segue que se pode falar de poder como uma oportunidade para aumentar a probabilidade de realizações de combinações improváveis de escolhas. A saber, “a função catalizadora do poder já está baseada em complexos causais muito intrincados. Precisamente por isso é que o poder só se entende como um meio de comunicação simbolicamente generalizado” (LUHMANN, 1995, p. 19).
Não é exclusividade de Niklas Luhmann a reflexão sobre o poder. As teorias do poder mais antigas guardam uma diferença com Luhmann no que tange ao fato do alemão conceituar o fenômeno do poder sobre a base de uma diferença entre o código e o processo de comunicação – portanto sem cogitar a atribuição do poder para as pessoas como uma propriedade ou faculdade. Em Luhmann, o poder é uma comunicação orientada por um código.
Os meios de comunicação simbolicamente generalizados portam um sistema de referência obrigatório, ou seja, a sociedade. Eles se preocupam com os problemas relevantes para a sociedade, organizam as combinações que são possíveis na sociedade em qualquer momento e lugar. Nas palavras do autor, “o poder é um fator universal para a existência societária, estabelecido no mundo da experiência vivente” (LUHMANN, 1995, p. 127).
No que concerne ao poder político, ele se diferencia ao usar um código de meios específicos do poder. A formação do poder político não representa algo relevante apenas para a própria política, mas pode mudar a sociedade como um todo. O poder político pode conservar-se na forma de lei e manter-se disponível para aqueles que não agem politicamente, nem observam poder próprio ao seu dispor. Luhmann (1995, p. 134) ressalta que o poder político, desenhado na forma de lei, se esquematiza de forma binária e “[...] deste modo, pode se reproduzir numa forma simplificada sem que ocorram novamente as condições para a sua produção”.
Por fim, cabe destacar que o autor interpreta como impossível qualquer tentativa de retroagir a diferenciação do sistema político, ou mesmo de apenas se fazer política em pequena escala, espelhada na política de grande escala. Seguindo o caminho atual “[...] ainda menos do que em qualquer outro, tampouco existe nesta via a perspectiva de modificar a sociedade pelas interações sob o meio de comunicação do poder” (LUHMANN, 1995, p. 136).
Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
REFERÊNCIAS
LUHMANN, Niklas. Poder. México, Madrid e Santiago: Universidad Iberoamericana, Anthropos e Universidad Católica de Chile, 1995. Capítulos I e VIII.
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