ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 1 (16)

América do Sul, Brasil,

domingo, 27 de setembro de 2015

Durkheim e a educação moral

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O presente ensaio tem o intuito de resgatar algumas contribuições de um dos fundadores da sociologia, o francês Émile Durkheim. A partir da exposição de uma parte dos tópicos centrais do seu extenso trabalho, pretende-se demonstrar a sua importância na trajetória das ciências sociais, além de dissertar sobre a sua incidência na temática da moral e suas relações com a área da educação. Para isso, este ensaio divide-se em duas partes, permeadas pela noção de moral proposta pelo autor: a primeira apresenta uma visão grosso modo da obra do autor; a segunda dialoga com os pontos entrelaçados à temática educacional.

CARACTERÍSTICAS GERAIS DO PENSAMENTO DE DURKHEIM

Émile Durkheim (1848/1917) é considerado um dos principais responsáveis pela consolidação da sociologia como disciplina científica. Ele dedicou uma parte dos seus estudos evidenciando a importância do método para uma ciência que ambiciona explicar a sociedade, além de caracterizar os instrumentos basilares para a pesquisa dos fenômenos sociais.

No trabalho intitulado As Regras do Método Sociológico, Durkheim procurou estipular os caracteres básicos que fazem a sociologia operar no escopo da ciência, afastando-a da filosofia e a estabelecendo como uma área específica. Na sua versão, a sociologia é independente daquilo que chamou de “doutrinas da prática”, isto é, ela não deve ser nem determinista, nem individualista, tampouco comunista ou socialista. Seu papel não está atrelado aos partidos políticos; é voltado para a objetividade do método (DURKHEIM, 1977).

Sendo o método sociológico objetivo, ele é dominado pela ideia de tratar os fatos sociais como coisas. Mesmo que sob um prisma um pouco diferente, este princípio esteve presente no pensamento de Auguste Comte. Assim, o sociólogo deve afastar as noções antecipadas que formula acerca dos fatos, no intuito de encarar os próprios fatos, para atingi-los através do exame dos elementos mais objetivos. Isso significa explicar a realidade como ela é, não como ela deveria ser.

Os fatos sociais representam, para Durkheim (1977), maneiras de agir, pensar e sentir que carregam a marcante propriedade de existir fora das consciências individuais das pessoas. São tipos de conduta ou pensamento que não são apenas exteriores ao indivíduo, mas também se impõem a ele. O fato social existe nas partes, na medida em que existe no todo, o que confere a sua característica de generalidade. O sentimento coletivo não revela só aquilo que existe de comum entre as consciências individuais. Ele é produto da vida em comum, resultado das ações e reações estabelecidas entre as consciências individuais. A energia da sua origem coletiva é que repercute em cada consciência individual.

É possível, portanto, resumir o domínio em que a sociologia atua na perspectiva durkheimiana. O fato social é reconhecível pelo poder de coerção externa que exerce ou pode exercer sobre os indivíduos; a presença desse poder é reconhecível pela existência de alguma sanção determinada ou resistência que o fato opõe a qualquer iniciativa individual que vá desestabilizá-la; por fim, estipula uma difusão no interior do grupo, independente das formas individuais que assume ao se difundir (DURKHEIM, 1977).

As contribuições de Émile Durkheim (2003, 1977) também discutem o método para determinar a função da divisão do trabalho nas sociedades contemporâneas. O autor indica que os elementos econômicos originados do trabalho são de pequeno valor, quando comparados ao efeito moral causado pela divisão do trabalho. Sua verdadeira função é criar um sentimento de solidariedade entre as pessoas. Através da divisão do trabalho é que se tornam possíveis as sociedades, passando a vigorar uma ordem moral e social sui generis. Analisada sob essa ótica, a divisão do trabalho garante a coesão social.

Para verificar o papel da divisão do trabalho, entendida como geradora de solidariedade social, e assim conseguir analisá-la, faz-se preciso estudar o seu símbolo mais visível. Durkheim (2003) disserta, então, sobre o direito. A vida social tende, sempre que existe de maneira durável, inevitavelmente a assumir uma forma definida e a se organizar. O direito é o que a própria organização tem de mais estável e conciso. No que concerne ao argumento de que nem toda vida social é regulada por formas jurídicas, o autor defende que, se em dado momento não se deixam claras as letras jurídicas, a regulamentação fica a cargo dos costumes. Todo preceito jurídico pode ser definido assim: uma regra de conduta sancionada.

Há, entretanto, a chamada divisão do trabalho anômica. Ela consiste na situação em que não está organizada a divisão do trabalho, e por isso não ocasiona solidariedade social. A priori, poder-se-ia dizer que o estado de anomia é impossível sempre que os mecanismos de solidariedade estejam em contato bastante e suficientemente prolongado. Se os trabalhadores são reduzidos ao papel de máquina, é porque a divisão do trabalho se encontra em circunstâncias anormais e excepcionais. Normalmente, o desempenho de cada função especial supõe que o trabalhador/indivíduo não se feche estreitamente, mas que mantenha relações constantes com as funções vizinhas, sentindo que serve para alguma coisa mais ampla.

Ainda sobre a questão da solidariedade social, um fenômeno moral, uma distinção demanda ser feita. Estão em jogo dois tipos de solidariedade, na visão durkheimiana: a solidariedade mecânica e a solidariedade orgânica. A solidariedade mecânica expressa uma ligação direta entre o indivíduo e a sociedade. É proveniente das semelhanças, e torna harmônicos inclusive os pormenores dessa conexão. Essa solidariedade social decorre de certo número de estados de consciência comuns a todos os membros da mesma sociedade e é representada materialmente pelo direito repressivo. Pode ser associada às comunidades tradicionais, nas quais o nível de coerção do grupo sobre o indivíduo é tão intenso que quase não há espaço para comportamentos dissonantes (DURKHEIM, 2003).

Por outro lado, a solidariedade orgânica, fruto da divisão do trabalho, só é possível se a personalidade individual não for completamente absorvida pela personalidade coletiva, se houver uma esfera própria de ação para a consciência individual. Isso origina uma coesão social mais forte; cada um depende da sociedade na qual o trabalho é dividido, e a atividade de cada um é tanto mais pessoal quanto mais especializada ela seja.

Não obstante, Durkheim (2003) percebe a preponderância progressiva da solidariedade orgânica sobre a solidariedade mecânica. As sociedades primitivas, alcunhadas de hordas pelo autor, funcionavam na lógica da coesão através das semelhanças – solidariedade mecânica – e iniciaram progressivamente o caminho da divisão do trabalho social. A passagem de um estado para outro se fez por intermédio de uma lenta evolução. A solidariedade orgânica não pode ser compreendida isolada, sozinha; dividindo espaço com a solidariedade mecânica, ela vai progressivamente se fazendo preponderante.

DURKHEIM E A TEMÁTICA EDUCACIONAL

Na obra durkheimiana, a temática educacional aparece associada a processos de socialização e ao conteúdo das concepções morais de determinadas sociedades. Se um determinado indivíduo age conforme as matrizes da sua sociedade, suas ações derivam da educação recebida nestes processos sociais. Tais investidas não ocorrem no vazio, mas, sim, no meio moral estabelecido e numa teia de regras e valores engendrada pelas sucessivas gerações. Que tal uma busca por uma moral laica, erigida num modelo racional?

Há séculos que a educação vem passando por um processo de laicização. Já foi dito algumas vezes que os povos primitivos não possuem qualquer moral. Foi um erro histórico. Não existe povo que não tenha sua moral: o que ocorre é que a moral das sociedades inferiores não é a mesma que a nossa. Aquilo que caracteriza a moral dessas outras sociedades é que se trata de uma moral essencialmente religiosa (DURKHEIM, 2008, p. 22).

Em linhas gerais, a educação indica o processo pelo qual os indivíduos aprendem a se concretizar enquanto membros de uma dada sociedade. Não há a possibilidade de educar os filhos de maneira inteiramente particular, fazendo-os ser aquilo que os pais querem. Um conjunto de regras, costumes e noções não são facultativos na prática educacional. Sua ausência impede o desenvolvimento adequado dos jovens, no que tange à atuação nas condições da vida social dos adultos. Por isso, ideias educacionais demasiadamente antigas ou visionárias podem atrapalhar a colocação dos sujeitos nos processos de socialização em que estão inseridos.

Uma educação sintonizada com o seu tempo precisa estar sintonizada com o meio moral em que o estudante está se desenvolvendo. Considerando cada sociedade desde os seus aspectos próprios, pode-se dizer que cada sociedade detém um sistema de educação que submete os seus indivíduos de modo quase irretocável. O que atua é uma maneira de regulação educacional difícil de ser driblada sem maiores resistências.

Durkheim (1975) diz que tais costumes e ideias não podem ser pensados como criações de indivíduos, como que consequências da ação de um membro da sociedade sobre o todo. Pelo contrário, são indicativos da vida em comum, ilustrações das demandas da vida em comum, do estágio em que a sociedade se encontra e da sua história. O passado da articulação coletiva humana, de alguma forma, acaba colaborando para erigir os princípios que orientam a educação atual. Há um vínculo inter-geracional perceptível nos sistemas de ensino, dependentes que são de fatores políticos, religiosos, científicos, industriais e etc.

O fato é que o ser social não nasce com o indivíduo humano, como uma prerrogativa primitiva natural. Também não pode ser visto como um resultado espontâneo da vivência humana com o passar dos tempos. Para Durkheim (1975), se os acontecimentos da vida humana seguissem um ritmo de espontaneidade, as pessoas não estariam dispostas a aceitar autoridades políticas, disciplinas morais, não se configurariam devotos e sequer praticariam sacrifícios em prol de alguma motivação maior. No sentido oposto dessa força natural inexistente, pode ser visto que a consolidação das diferentes sociedades ocasiona, a cada nova geração, o erguimento das implicações sociais stricto sensu. Adiciona-se aos indivíduos recém nascidos uma vida moral e social, desdobramento da educação.

Em suma, uma definição precisa de educação na sociologia durkhemiana atende à perspectiva de uma socialização metódica das novas gerações de habitantes de uma dada sociedade. Constituir o ser social é a sua tarefa, um ser dotado de uma faceta pessoal e, ao mesmo tempo, dotado de uma faceta intrincada aos complexos de ideias, hábitos e sentimentos que conformam os grupos aos quais os indivíduos se enlaçam.

Toda a educação consiste num esforço contínuo para impor às crianças maneiras de ver, de sentir e de agir às quais elas não chegariam espontaneamente – observação que salta aos olhos todas as vezes que os fatos são encarados tais quais são e tais quais sempre foram. (...) A pressão de todos os instantes que sofre a criança é a própria pressão do meio social tendendo a moldá-la à sua imagem, pressão de que tanto os pais quanto os mestres não são senão representantes e intermediários (DURKHEIM, 1977, p. 5).

Finalmente, este ensaio procurou dissertar sobre algumas das características mais gerais da obra do sociólogo francês Émile Durkheim, expondo alguns dos seus principais conceitos e as suas relações com a temática educacional. Sem dúvidas, a obra durkheimiana permanece imprimindo sentidos relevantes para as abordagens sociológicas contemporâneas e seus desdobramentos teóricos e de pesquisa.

REFERÊNCIAS

DURKHEIM, Émile. A educação moral. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

_______________. Durkheim (Coleção Grandes Cientistas Sociais). Organização José Alberto Rodrigues. São Paulo: Ática, 2003.

_______________. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.

_______________. Educação e sociedade. São Paulo: Melhoramentos, 1975.

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quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Ele e ela no Brasil dos de sempre

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Duas histórias. Ele, homem altamente escolarizado, mestrando. Negro e sambista. Ela, motorista de ônibus em rotas intermunicipais de longa distância. Sobretudo, mulher motorista de ônibus. Ambas as histórias se entrelaçam no cenário brasileiro cotidiano. Num contexto de desigualdades multidimensionais.

Eu apenas ouvia a história dele. Amigo de longa data, ele narrava uma visita de técnicos responsáveis por consertar algo em sua cozinha. No meio da tarde, ele aguardava a finalização do trabalho. Conforme a conversa entre ele e os técnicos ganhava contornos banais, um dos técnicos acreditou ter reconhecido o contratante do serviço.

- Tu é sambista, né... só pode. Negão pra estar em casa de tarde, na boa, só se for celebridade.

Eu apenas ouvia a ela dizer as regras da viagem. Nunca a havia visto na vida, mas simpatizei com a ideia de que ela me levaria à cidade em que trabalho. No entanto, nem todos no veículo pensavam da mesma forma. A realidade é que quase todos ficaram espantados, para dizer o mínimo. A maioria não gostou da ideia de que uma mulher nos conduzisse estrada a fora.

- Moça, moça... quando vai chegar o motorista? A gente quer alguém que dirija bem.

Nas duas situações, eu só conseguia sentir vergonha. Vergonha do que via, da indiferença hegemônica, de como as pessoas reproduziam suas certezas fechadas e excludentes sem maiores receios.

Pensava, ainda, o quanto precisamos de médicos e médicas negras, professores e professoras negras, juízes e juízas negras. Pensava em quanto precisamos de mulheres motoristas, engenheiras e chefes. Não porque os homens brancos não podem ajudar na construção de uma sociedade melhor. Mas porque a injustiça e a desigualdade ainda são grandes demais.

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sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Ciclista suspeito

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Em meio ao parcelamento dos salários dos servidores estaduais e ao crescimento da violência em Porto Alegre, voltava eu do Gigante da Beira-Rio. Pedalando, como faço há muitos anos. Com ou sem medo, não dá pra deixar de viver. Voltava para casa feliz com mais uma vitória sobre um adversário paulista e desejando que a minha cidade não sofresse as intensas agruras de São Paulo.

Já que a entrevista do meu treinador nunca é lá essas coisas, voltava ouvindo um Jorge Ben. No embalo do “Engenho de Dentro”, viajava num chope gelado, numa roda de samba carioca, feita daquele cheiro de mar. Sonhava acordado com menos sofrimento. Foi quando parei no sinal. Senti que no carro ao lado ocorria uma conversa meio exaltada. Parei no que imaginei ser o ponto cego deles. Os rapazes gesticulavam bastante, quase exasperados.

A música seguia quando escutei o teor do diálogo. Um dos rapazes defendia a necessidade de cagar a pau qualquer suspeito, meliante ou infrator, de preferência acabando com as suas vidas. Afinal, segundo ele, o Estado não seria capaz de fornecer segurança aos indivíduos. O outro ponderava, dizia que vingança não é justiça e que num contexto de olho por olho e dente por dente, todos acabaríamos cegos e banguelas. Além do que, o Estado deveria parar com o genocídio nas periferias. Tributar mais os bilionários e produzir políticas sociais. Concordei com a cabeça. Sorri com a sensatez do rapaz.

De imediato, o sambinha aos meus ouvidos ficou meio tenso. Falava que o Tiranossauro Rex mandara avisar alguma coisa. Que pra acabar com a malandragem, teríamos que prender e comer todos os otários. A minha espinha gelou. Olhei para os lados, desconfiado. Algumas pessoas na parada de ônibus me olhavam assustadas e cochichavam entre si. Planejavam algo. Devia ser pela minha calça larga. A beleza restrita, talvez. Tornei-me um ciclista suspeito.

Felizmente, os dinossauros não estão mais entre nós. Ou será que estão?

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terça-feira, 1 de setembro de 2015

No dos outros é sempre refresco

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Eu sempre tento escrever com o cérebro, não com o estômago. Hoje tá difícil. Vou tentar, de qualquer forma. O (des)governo do RS fala o tempo inteiro em crise no orçamento, em necessidade de sacrifícios para arrumar a casa. Vou fingir que não dá pra discutir isso tudo. Vou fazer apenas algumas pequenas perguntas lógicas.

- O salário do (des)governador, dos seus assessores, dos seus secretários, do Legislativo e do Judiciário está parcelado? Suas contas bancárias estão apenas com R$ 600,00 depositados? Ou existem outras fontes que complementam a sua renda?

- Ué, não era necessário um sacrifício coletivo? Por que sacrifício só para alguns? A população precisa menos do atendimento de professores, servidores da segurança e etc. do que dos nobres serviços prestados pelos que não tiveram os seus salários parcelados?

- Se a intenção é reformar o estado, que tal começar por acabar com os privilégios dos parlamentares, com seus auxílios astronômicos e seus inúmeros assessores?

- Como podem alguns servidores do judiciário receber auxílio-moradia, tendo casa própria e ganhando altos salários, tudo sempre em dia, enquanto professores e policiais, com salários sempre inferiores, estão recebendo pingado?

- Como podem os parlamentares ter aumentado os seus salários e os seus auxílios no início de um ano dito em crise?

Sério, é muita cara de pau. É muito desrespeito. É muita desumanidade. São sempre os mesmos que pagam a conta. São sempre os mesmos que se fodem. Só que atenção: lembremos todos daquele velho poema do Brecht, em que primeiro alguns eram levados, depois alguns outros e depois outros e... Uma hora pode ser contigo, que tá aí de boa, nem aí para os prejudicados de hoje.

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