ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 1 (16)

América do Sul, Brasil,

terça-feira, 28 de junho de 2011

Entrevista com Alberto da Costa e Silva


O diplomata e especialista em História da África, Alberto da Costa e Silva, participou de uma excelente entrevista no programa de Jô Soares. Deu uma aula de como observar o continente africano e muitos caminhos para estudá-lo melhor. Grande entrevista, vale muito assistir!

quarta-feira, 8 de junho de 2011

A África sob o olhar de Paulo Visentini

Imagem retirada do sítio http://mybelojardim.com/wp-content/uploads/2009/08/Luanda-capital-de-Angola.jpg Luanda, capital de Angola, durante a noite

Resenha por Raquel B. Figueiró*

O texto de Paulo Visentini, da obra Breve História da África, que vai das páginas 141 até 157, faz parte do capítulo IV do livro A África frente à globalização, no qual foram estudados os dois primeiros subcapítulos, denominados 10. A marginalização: Conflitos, epidemias e pobreza e 11. A Reafirmação: O NEPAD, a União Africana e a Nova África do Sul. Nesse texto, o autor irá explicar, em linhas gerais e a partir de regiões da África, os principais problemas e crises que marcaram o continente no período pós-Guerra Fria e as possibilidades de afirmação e desenvolvimento do continente na atualidade.

No subcapítulo 10 o autor explica que o fim da Guerra Fria e a globalização distorceram a política africana, tanto externa como internamente, uma vez que uma série de fatores consolidou o “afropessimismo” como um conceito universal. Visentini inicia sua explicação dizendo que no norte da África o fundamentalismo islâmico avançou no Egito, Líbia, Marrocos e Argélia, se detendo na explicação desse fundamentalismo nesse último país. Ele ainda exemplifica que a instabilidade no continente também afetou os Estados do Golfo da Guiné, de modo que a Nigéria passou por vários golpes militares e ocorreram guerras civis em vários países da região (Senegal, Libéria, Serra Leoa e a guerra entre Mali, Niger, Mauritânia e Argélia contra os Tuaregues do deserto). Além disso, muitos regimes autoritários estão voltando ao poder na África, após uma breve redemocratização.

Para exemplificar esse período pós-guerra fria o autor explica os casos do fim do Apartheid e dos conflitos na África Central. Visentini elucida que os conflitos internos referentes ao fim do Apartheid se refletem ainda hoje em problemas não resolvidos, tais como: as minas terrestres, a infra-estrutura destruída e os problemas sociais da maioria negra. Entretanto, uma nova área de integração em torno da África do Sul esboça “uma maior estabilidade social e diplomática, bem como uma inserção internacional menos onerosa dessa área no movimento de globalização econômica em curso” (VISENTINI, 2007: 144).

Quanto aos Conflitos identitários e geopolítica na África Central, Visentini relembra os embates entre tutsis e hutus em Ruanda e Burundi, na região dos Lagos, que se estenderam pelo início da década de 1990, resultando num massacre de tutsis e hutus moderados em 1994. Tal processo, que foi mostrado pela mídia como um tribalismo tradicional, na verdade foi decorrência das disputas entre os dois grupos identitários referentes à organização do Estado moderno independente.

A referida disputa na região dos Lagos teve influência na queda de Mobuto e na Guerra civil do Congo/Zaire, já que o massacre de 1994 gerou um êxodo de quatro milhões de refugiados, a maioria em direção ao Zaire, país que estava fragilizado após mal sucedidas tentativas de democratização. Em 1996, ocorreu o avanço sobre o país da milícia Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo-Zaire, composta principalmente por tutsis do Zaire. Essa milícia era liderada por Laurent Kabila, negociante de marfim e ouro e associado a meios empresariais norte-americanos. Ambos fatores aliados ao não recebimento de apoio dos antigos protetores, França e Bélgica, derrocaram na queda do governo de Mobuto.

Dessa forma, o conflito na região dos lagos acabou reorganizando a correlação de forças da região. Durante a Guerra Fria, o principal país europeu a exercer influência sobre o continente era a França. Com o fim do mundo bipolar, os países que eram aliados da URSS passaram a buscar apoio nos EUA, para se posicionarem contrários a França. Em meados da década de 1990, os EUA se interessaram pelo continente africano, visando a mais um modo de pressionar a Europa a abrir espaço para as companhias americanas. Os americanos passam a exercer influência direta sobre a Etiópia, a Eritréia, Uganda, Angola e Moçambique. Após o conflito tutsi e hutu, também exerceram influência em Ruanda, Burundi e leste do Zaire e passou a haver uma nova correlação de forças e zonas de influência no continente africano entre EUA e França.

No outro subcapítulo analisado, 11. A reafirmação: o NEPAD, a União Africana e a Nova África do Sul, o autor traça um panorama sobre as atuais formas de organização e integração existentes no continente, analisando quatro aspectos. No primeiro, denominado Conflitos africanos com soluções africanas, ele traça uma análise de como vários conflitos estão se desencadeando tendo como protagonistas os próprios governos africanos, a partir de quatro “soluções africanizadas”. Primeiro, principalmente, nos Estados do Golfo da Guiné e da África Ocidental os conflitos se mantém, como nos casos de Guiné-Bissau, Libéria, Serra Leoa e Nigéria. Todos esses conflitos agravam as tensões locais e causam “uma espécie de ‘privatização’ da política e da violência armada, em meio a todo o tipo de tráfico, particularmente o de drogas, que tem crescido na África” (VISENTINI, 2007: 148).

A segunda “solução africanizada” seria um retrocesso da implantação do processo democrático que se iniciou com a queda do muro de Berlim e o retorno de regimes autoritários de esquerda ao poder. Países como República Democrática do Congo e Zimbábue passariam por esse processo. Outra “solução” seria uma trégua em diversos conflitos, como os que ocorriam em: Eritréia e Etiópia, Somália, Burundi, Saara Ocidental, Angola e República Democrática do Congo. A quarta “solução” apontada pelo autor seria a emergência da África do Sul como nova liderança africana.

Um segundo aspecto relativo às formas de organização e integração do continente africano consistiria n'A rearticulação da África Austral, a União Africana e o NEPAD. A África Austral organiza-se desde 1992 em torna da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC). Essa organização, assim como a União Africana e o NEPAD, tem a África do Sul como importante presença para o seu funcionamento. A Nova Parceria Econômica para o Desenvolvimento (NEPAD) é um programa que visa dar base material para as políticas da União Africana e para integração do continente. Com efeito, apesar dos problemas de ordem econômica e social e do avanço de epidemias devastadoras, “a África, lentamente, vai se reafirmando e recuperando certo poder de barganha [...]. A liderança sul-africana e o retorno da Líbia ao cenário regional são elementos importantes, ao lado da afirmação das organizações multilaterais regionais e continentais” (VISENTINI, 2007: 153).

Outro aspecto importante de salientar é denominado O esboço de uma inserção autônoma da África globalizada. China e França tem se feito mais presentes no continente africano por razões econômicas e diplomáticas. Não obstante, laços são estabelecidos com o MERCOSUL, a Ásia e a União Européia. Dentro dos países africanos, a África do Sul apresenta uma posição privilegiada, o que a projeta, por exemplo, como pólo integrador da África austral e como país que pode reivindicar um assento permanente na ONU.

O último elemento analisado nesse subcapítulo é uma conclusão sobre a situação atual dos Estados nacionais no continente. É necessário atentar para as peculiaridades do processo de formação dos Estados nacionais pelo qual passam os países africanos, “um processo semelhante ao atravessado por outras regiões do mundo” (VISENTINI, 2007: 154) em outras épocas da história, os quais também foram marcados por guerras. No caso da África essa violência é agravada pela herança do tráfico colonial e do colonialismo imperialista.

Conforme o autor, a descolonização da África aconteceu de modo peculiar e tardio. Peculiar, pois foi administrada pela metrópole, apesar da existência de conflitos em alguns lugares. Quando ocorreram as independências, “as contradições internas ainda não estavam suficientemente amadurecidas, em decorrência da referida herança do tráfico e do colonialismo imperialista sobre as estruturas sociais do continente” (VISENTINI, 2007: 155). É nesse cenário instável que se iniciaram recentemente as construções dos Estados nacionais no continente negro. Soma-se a isso o fato desse processo histórico ser distorcido pelo neocolonialismo e, por vezes, pela implantação de Estados inviáveis econômica e politicamente.

Mesmo com a afirmação do neocolonialismo no continente, os países se dividiram em Estados progressistas e conservadores, tanto no plano externo quanto interno, o que reflete projetos político-econômicos e alianças internacionais antagônicas. Essas divergências mantiveram-se dentro de certos limites até a permanência dos últimos bastiões brancos na década de 1970, resultando em lutas de libertação nacionais radicais. A década de 1980 foi catastrófica para as sociedades africanas. Juntou-se a isso o fim da Guerra Fria, a globalização e o reordenamento mundial, fazendo a África deixar de ser estratégica para as relações internacionais. Porém, uma nova afirmação do continente surge na década de 1990 com a redemocratização da África do Sul e o colapso do “protetorado” francês, mesmo que a “afirmação da influência americana, pela primeira vez a África está logrando certa autonomia para reorganizar-se com base numa correlação de forças regionais” (VISENTINI, 2007: 156). A reafirmação internacional do continente se dá no mesmo momento em que o mundo passa por uma transição e uma reorganização estrutural.

O texto de Paulo Visentini vem ao encontro do texto de Saraiva, quando esse afirma as possibilidades de integração setorial do continente no atual momento histórico. Indo além, apresenta uma visão diferente de Chaliand, na medida em que diferentemente do autor ele nos passa uma visão menos negativa do continente em relação às perspectivas futuras, enquanto Chaliand nos deixa a impressão da África ser um continente perdido e sem perspectivas. Talvez isso aconteça em razão do próprio momento histórico em que cada autor escreveu o seu texto.

Por fim, a partir da leitura do texto foi possível pensar em algumas problematizações sobre a temática. Em primeiro lugar, quanto às problematizações levantadas pelo próprio autor, cabe ressaltar a reorganização da zona de influências pós-Guerra Fria e o aumento da influência dos Estados Unidos em diversos países africanos no decorrer da década de 1990. Os interesses na África desse período acontecem através de uma perspectiva de disputas entre EUA e Europa. Após uma perda de interesse na África no período imediato ao fim da guerra fria, ela volta a ganhar importância no tabuleiro de disputa de interesses internacionais, embora não de forma tão relevante quanto antes do fim do mundo bipolar.

Outra problemática pensada a partir da leitura do texto de Visentini diz respeito ao viés teórico que ele lança sobre a história. O autor compara o período atual dos Estados nacionais africanos com o período de formação dos Estados nacionais na Europa do século XVI e XVII, ou nas Américas do século XIX, transparecendo uma linha evolucionista de pensamento. Por aí questiona-se se é mesmo possível traçar essa comparação de viés evolucionista.

Entretanto, por mais que nos pareça contraditório, ao mesmo tempo em que o autor pode transparecer esse olhar evolutivo sobre a história das nações, a leitura também nos faz compreender os problemas e conflitos do continente a partir do entendimento das vicissitudes do seu processo histórico, do seu contexto interno e da sua relação com o contexto externo, atentando para a diversidade continental. É possível entender os processos históricos das diferentes regiões da África sem um olhar preconceituoso que o olhar ocidentalizante enseja. Em razão disso, creio não ser possível lançar esse olhar evolucionista sobre a história dos estados africanos e causa estranhamento conseguir perceber ambas as visões num texto de um mesmo autor. Os escritos de Paulo Visentini mostram de forma factual as fragilidades, conflitos e dificuldades da África, mas não de modo a reforçar o “afropessimismo”. Pelo contrário, o autor se mostra, por vezes, otimista frente às possibilidades de desenvolvimento futuro do continente negro.

REFERÊNCIAS

CHALIAND, Gerard. A luta pela África: estratégias das grandes potências. São Paulo: Brasiliense, 1982.

PEREIRA, Ana Lúcia Danilevicz; RIBEIRO, Luiz Dario Teixeira & VISENTINI, Paulo G. Fagundes. Breve História da África. Porto Alegre: Leitura XXI, 2007. p.141-157.

SARAIVA, José Flávio Sombra. Cooperação e Integração no continente africano: dos sonhos pan-africanistas às frustrações do momento. Revista Brasileira de Política Internacional, n.36, 1993, p.28-45.

* Professora Estadual de História; Licenciada em História pela UFRGS; Cursando o último semestre da Especialização em História Africana e Afro-Brasileira pela FAPA.

sábado, 4 de junho de 2011

A ação comunicativa em Habermas e a polêmica do humor irresponsável


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O mundo contemporâneo apresenta uma série de problemas, nos mais distintos assuntos. Desde a pobreza material, ao desrespeito e intolerância frente ao outro, diferente dos padrões, convivemos com dificuldade em estabelecer, na prática, atitudes interessantes para uma vivência coletiva menos desagradável. No Brasil, uma pequena polêmica tem sido despertada por alguns setores, a questão dos limites do humor e a rejeição à comédia “politicamente correta”.

Trata-se das consequências que determinados humoristas alcançam com suas sátiras destinadas a grupos envolvidos em problemas sociais e/ou individuais. Dito de outra maneira, os defensores da liberdade absoluta para as piadas sentem-se censurados quando são interpelados por pessoas ou organizações que preconizam mais cuidado ao se falar em temáticas como a discriminação racial, doenças, machismo, xenofobia, etc. Iluminemos a indagação: há a necessidade de se colocar obstáculos ao humor? Devemos aceitar todas as formas de comédia, mesmo que elas insultem ou ataquem indivíduos/coletivos já subjugados no cotidiano?

Não pretendemos oferecer respostas fechadas. Estes são questionamentos bastante complexos, que podem acabar em briga e ódio. Interessante é adicionar algumas contribuições de Jürgen Habermas acerca da modernidade e suas caracterizações, mas principalmente pensar com atenção nas proposições relacionadas à sua teoria da ação comunicativa. Com isso não queremos aplicar, num gesto mecânico, a teoria habermasiana na temática proposta, e sim trazer subsídios ao debate.

O filósofo e sociólogo alemão representa uma espécie de segunda linhagem da chamada Escola de Frankfurt, que aglutinou pensadores importantes como Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin e Max Horkheimer. Dela se consolidou a teoria crítica, que tem como eixo central a crítica à sociedade industrial moderna. Habermas observa no capitalismo tardio vulnerabilidades sob o ponto de vista da racionalidade, da motivação e da legitimação.

O trabalho, calcado no domínio da natureza para a satisfação humana, congrega uma racionalidade similar a da ciência e da técnica, uma racionalidade que se orienta pela organização e escolha adequada de meios para realizar determinados fins. Entretanto, Habermas demonstra a ideia de que a modernidade impulsionou não somente a racionalidade instrumental, norteada pela eficiência, pelo agir estratégico; impulsionou, também, o que o autor chamou de razão comunicativa, vinculada ao entendimento entre as pessoas, embora as esferas de decisão nas quais a razão comunicativa deva prevalecer estejam penetradas pela racionalidade instrumental. 

A racionalidade instrumental, na trajetória de ampliação de seu campo de atuação, substituiu de forma crescente o espaço da interação comunicativa que havia anteriormente no âmbito das decisões práticas que diziam respeito à comunidade. Dessa forma, caem por terra as antigas formas ideológicas de legitimação das relações sociais de poder. Com esse tipo de racionalidade não se questiona se as normas institucionais vigentes são justas ou não, mas somente se são eficazes, isto é, se os meios são adequados aos fins propostos, ficando a questão dos valores éticos e políticos submetida a interesses instrumentais e reduzida à discussão de problemas técnicos (GONÇALVES, 1999, p. 130).

Habermas encontra em fundamentos teóricos interdisciplinares a tentativa de produzir uma teoria social reconstrutiva, aproximando a sociologia (Weber, Durkheim, Mead e Parsons), a filosofia (Kant, Husserl e Schutz), a linguística (Austine e Searle) e a psicologia estrutural-genética (Piaget e Kohlberg). A interação social tem a potencialidade de uma interação dialógica, comunicativa, mas a colonização da racionalidade instrumental no espectro da ação humana interativa, ao gerar um enfraquecimento da ação comunicativa e ao diminuí-la à sua própria estrutura de ação, formulou nos sujeitos contemporâneos formas individualistas de agir, pensar e sentir, que sustentam alguns dos percalços das sociedades modernas. Habermas (1999, p. 171) afirma que

[…] en realidad las manifestaciones comunicativas están insertas a un mismo tiempo en diversas relaciones con el mundo. La acción comunicativa se basa en un proceso cooperativo de interpretación en que los participantes se refieren simultáneamente a algo en el mundo objetivo, en el mundo social y en el mundo subjetivo […] Hablantes y oyentes emplean el sistema de referencia que constituyen los tres mundos como marco de interpretación dentro del cual elaboran las definiciones comunes de su situación de acción. […] Entendimiento (Verständigung) significa la “obtención de un acuerdo” (Einigung) entre los participantes en la comunicación acerca de la validez de una emisión; acuerdo (Einverständnis), el reconocimiento intersubjetivo de la pretensión de validez que el hablante vincula a ella.

Nas sociedades modernas, está disposta uma tensão entre o mundo sistêmico e o mundo da vida (Lebenswelt). Os sistemas são compostos pelos subsistemas político e econômico, o Estado e o mercado, respectivamente, e as formas de coordenação da ação ali presentes condizem com a integração sistêmica e a razão instrumental e estratégica. No mundo da vida, as ações são coordenadas pela integração social e pela razão comunicativa, sendo um processo linguisticamente mediado, uma realidade elaborada pelos atores desde suas experiências intersubjetivas que ocorrem nas situações face-a-face. É o mundo da vida que pode ser considerado o pano de fundo da teoria da ação comunicativa, porquanto nele os atos de fala, isto é, a definição de que um falante realiza um ato enquanto fala, adquire relevo e incorpora a noção de que um ato performativo carrega consigo o conteúdo comunicativo do indivíduo que possui somente o objetivo do entendimento.

A esfera pública é mencionada como um espaço fundamental, que engendra “uma estrutura comunicacional do agir comunicativo orientado pelo entendimento” (HABERMAS, 1997, p. 92). Nesse sentido, o nível de efetivação, ou mesmo da qualidade da esfera pública, correlaciona-se com a quantidade e a qualidade dos argumentos expostos. É possível trazer ramificações de esfera pública nas sociedades contemporâneas, como a episódica (bares, ruas, elevadores), da presença organizada (reuniões, congressos) e a abstrata, feita através da mídia. A esfera pública possibilita a exposição argumentativa e sem acesso a ela a possibilidade de cidadania se vê reduzida a quase nada.

Não obstante, os rumos tomados pela Ciência Social no capitalismo avançado são problematizados pelo autor, ao passo que a passagem do agir estratégico para o agir comunicativo dependeria de uma compreensão aprofundada não só dos resultados nefastos da aliança positivismo-funcionalismo com a dominação de classes, mas do emaranhado entre linguagem e realidade social e política.

A ciência e a política têm de traduzir-se, em última análise, em atos de fala, caracterizando um complexo processo de emissão-recepção no contexto de intersubjetividade lingüística. […] Para Habermas, tal possibilidade depende de um amadurecimento ético-racional que perceba o papel central que a comunicação lingüística desempenha ao mesmo tempo como contexto e instrumento de transformação da realidade humana (MONTEIRO, 1995, p. 179/180).

Jürgen Habermas propõe que, por meio da ação comunicativa, seja possível enfrentar uma situação na qual os discursos presentes, sem serem arbitrários, se dirijam para um consenso que não se configure ilusório. A rigor, fala-se numa situação linguística ideal, cuja comunicação não esteja afetada por efeitos externos contingentes, nem por derivações da estrutura da comunicação. “Ela supõe que, em princípio, todos os interessados possam participar do discurso e que todos eles tenham oportunidades idênticas de argumentar, dentro dos sistemas conceituais existentes ou transcendendo-os, e chances simétricas de fazer e refutar afirmações” (FREITAG, 1990, p. 19). O Estado Democrático de Direito precisa estar aberto às tematizações da esfera pública, sua legitimidade tem de passar pelo crivo das discussões publicizadas.

Naquilo que se destaca como possível para a transformação dos graves problemas da humanidade no capitalismo contemporâneo, Habermas enxerga o resgate de uma racionalidade comunicativa nas zonas de decisão que abrangem a interação social tomadas pela racionalidade instrumental. Considerando que o ser humano não reage tão somente aos estímulos das situações que vivencia, porém dá um sentido às suas ações e pela linguagem se capacita a comunicar sua interioridade, Habermas deposita no diálogo a esperança de que retomemos nosso papel de sujeitos (GONÇALVES, 1999).

Tanta ênfase no agir comunicativo, na percepção de que a fala não é desprovida de um ato, ou seja, falar é enunciar, nos faz refletir sobre a liberdade irrestrita dos meios de comunicação de massa, mas também sobre as simples piadas desferidas no mundo da vida. Se bem que o temor da censura ainda permaneça atual, estabelecer critérios para um humor que versa pejorativamente acerca de questões que não são engraçadas para aqueles que nelas estão envolvidos não parece indicar repressão aos comediantes.

Convém, quem sabe, cercar-se não de correções estéreis sob a égide da moralidade, e sim de atitudes e discursos que busquem o consenso, a inclusão, pautada numa ética universalista de justiça (se é que essa pode ser concebida nas sociedades ocidentais capitalistas contemporâneas), destituindo o apontamento compulsório dos defeitos, aspectos ou diferenças alheias. Na ausência disso enveredam os que apregoam um céu estrelado para o humor irresponsável, uma liberdade completa, como se ele não fosse imbuído de um arsenal de preconceitos, julgamentos e atribuições sociais tão evidentes aos que não fecham os olhos para a realidade nem sempre divertida.

REFERÊNCIAS

FREITAG, Bárbara. Habermas (Coleção Grandes Pensadores). São Paulo: Ática, 1990.

GONÇALVES, Maria Augusta Salin Gonçalves. Teoria da ação comunicativa de Habermas: Possibilidades de uma ação comunicativa de cunho interdisciplinar na escola. Revista Educação & Sociedade, ano XX, número 66, Abril/1999.

HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. (Vol. II). Madrid: Taurus, 1999.

______________. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

MONTEIRO, Luiz G. M. Jürgen Habermas: Estado, Conhecimento, Dominação e Ação Comunicativa. In: Neomarxismo: Indivíduo e Sociedade. Florianópolis: Edusc, 1995.

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quarta-feira, 1 de junho de 2011

“Terra Sonâmbula”, de Mia Couto


Raquel Braun Figueiró*
Historiadora e Professora

Ela se deslocava, seguindo de paisagem em paisagem. A estrada me descaminhou. O destino o que é senão um embriagado conduzido por um cego? Fui sendo levado sem conta nem tempo (COUTO, 2007: 203).

Introdução

A literatura é uma forma de expressão de um povo através da qual podemos entender a sua cultura e sua história. Nesse sentido, o presente trabalho visa apontar algumas das principais problemáticas relativas às literaturas africanas de língua portuguesa da pós-independência. Num segundo momento, realizar-se-á uma análise do livro Terra Sonâmbula, do autor moçambicano Mia Couto. Nele estão duas histórias distintas que se unem através da leitura dos cadernos de Kindzu por Muidinga. Apenas ao final, entendemos não serem histórias tão distintas, uma vez que Muidinga era Gaspar, o filho de Farida tão procurado por Kindzu. A narrativa de Muidinga e Tuahir é feita por Mia Couto, enquanto os cadernos de Kindzu são narrados pelo próprio Kindzu.

Apontamentos sobre as literaturas africanas

As literaturas africanas são recentes e normalmente escritas na língua do antigo colonizador. Esse último fato não exclui a originalidade dessas literaturas e a originalidade da literatura de cada país africano. Entretanto, muitos debates e problemáticas surgem acerca disso. Uma primeira problemática que destacamos seria quais os elementos que denotam originalidade nas literaturas africanas e quais denotam cópia da literatura do colonizador. Quanto a isso, Ana Mafalda Leite explica que:

Se, antes das independências, as obras e os autores são enquadrados dentro do sistema literário da metrópole, posteriormente, muitas das leituras tendem a situá-las intertextualmente devedoras de obras e movimentos literários europeus, tendo em conta o espaço matriz de colonização, o que, naturalmente é necessário fazer, mas não unicamente. A autonomização dos processos literários africanos, de língua portuguesa por exemplo, partilha diversas heranças intertextuais além da literatura portuguesa (literatura latino e hispano-americana, literaturas africanas em outras línguas e os intertextos da tradição oral) que são igualmente importantes para a caracterização dos aspectos especificamente regionais e nacionais diferenciadores. (LEITE: 1998, 13).

Sob a afirmação da autora entendemos que antes das independências havia textos que pretendiam seguir os moldes da literatura do colonizador, mas que após esse processo histórico as literaturas africanas (nesse caso aquelas escritas em português) ganham autonomia e originalidade ao mesclar os elementos de diferentes tradições literárias, sejam eles latino-americanos, africanos ou procedentes da tradição oral. Com isso, a mesma autora também nos explica que “o termo proposto de literatura neo-africana recobre um corpus específico de textos produzidos pelos africanos em línguas européias, e distinguem-se por uma unidade fundamental de referência e de visão do mundo” (LEITE, 1998: 16).

Aqui se torna necessário fazer uma ressalva quanto à oralidade na tradição africana, uma vez que o fato da oralidade ter importância na tradição africana não significa que ela seja “inata” aos africanos assim como a escrita é “inata” aos europeus. Tal cuidado é necessário para não interpretarmos um acontecimento acidental como um acontecimento essencial. Como salienta Leite:

A predominância da oralidade em África é resultante de condições materiais e históricas e não uma resultante da “natureza” africana; mas muitas vezes este facto é confusamente analisado, e muitos críticos partem do princípio de que há algo de ontologicamente oral em África, e que a escrita é um acontecimento disjuntivo e alienígeno para os africanos. (1998: 17)

Outra indagação importante ao tentarmos entender a literatura africana consiste em saber se a utilização da língua do antigo colonizador seria um produto neocolonial ou não. Quanto a isso há, inclusive, escritores africanos que reivindicam a utilização da língua africana anterior ao colonizador para a escrita literária. Porém, tal visão fundamentalista desconsideraria todo o processo histórico vivenciado por esses povos, responsável por fazer quase impossível a manutenção de uma escrita literária utilizando tais línguas. Conforme Mafalda Leite:

É ainda um principio nostálgico, idealista e essencialista, pensar em termos estáticos na recuperação de uma mundividência pré-colonial, não levando em linha de conta as transformações sofridas nestas sociedades com o colonialismo, as independências e a modernização.

Insistir numa visão monolítica e indiferenciada de uma estética africana é uma forma também de negar a heterogeneidade e complexidade do universo cultural africano. É talvez ainda a manifestação de uma visão neo-panafricana, que encara o continente como indiferenciada totalidade, neste final do século, quando diferentes nações africanas constroem há várias décadas o seu percurso literário próprio e diferenciado. (1998, 24).

Para complementar as reflexões de Leite, outra estudiosa, Rita Chavez, ao investigar a literatura angolana, coloca-nos uma problemática importante para pensar essa questão da utilização da língua do colonizador, ao perguntar-se: “como exprimir uma cultura nova, identificada com a libertação, através de um código que foi também instrumento de dominação?” (2005: 71). Afinal, a língua do colonizador é um instrumento de dominação, mesmo sendo apropriada pelo povo colonizado, não deixa de remeter ao passado em que uma sociedade foi subjugada. Por aí a resposta que a autora dará vai ao encontro da conclusão exposta por Mafalda Leite, ao passo que, para ela,

considerando a língua como um fator de cultura, que reflete e produz, a um só tempo, um conjunto de condicionamentos internos e externos, o artista procura recursos que lhe permitam utilizar o português sem que um tal uso implique a perda de identidade de seu projeto sócio-político-cultural (CHAVES, 2005: 72).

Além disso, para essa autora um ponto para consolidar esse processo de angolanização da língua portuguesa seria a incorporação de marcas da oralidade nos textos escritos (no caso da literatura angolana).

Relacionada à problemática acima exposta segue-se outra, em que devemos considerar que ao estudar literatura africana outra ponderação muito presente é aquela referente à nacionalidade da literatura e como a produção dessa literatura influenciou no processo nacional. Não obstante, muitos dos textos de literatura africana produzidos hoje são escritos na língua do antigo colonizador. Para Pires Laranjeira, a literatura africana representa processos técnicos de escrita que se erguem contra os modismos europeus. É no processo de ruptura com o modelo de literatura do colonizador e na inovação proposta pelos autores da literatura africana que reside a libertação dessas literaturas (LARANJEIRA, 1992: 10). Esse processo de ruptura inicia-se na década de 1940.

Contra a “escrita flutuante”, passível de ser apropriada por colonialistas ou portugueses de má fé, se erigiram todos os movimentos literários africanos, de maior ou menor envergadura, com ou sem conseguimento. Tornar a escrita irrecuperável pelo poder das metrópoles ou do neo-colonialismo, eis o propósito de alguns dos maiores escritores africanos. A literatura, na sua perspectiva, é sempre política, ou pelo menos fortemente politizada, ainda que não explicitamente. (LARANJEIRA, 1992: 12).

Ainda que utilizando a língua do colonizador, a literatura africana ganha originalidade ao se apropriar do signo colonial e utilizá-lo como ferramenta de luta e de expressão de uma cultura.

Quanto à denominação da literatura em cada parte da África o mesmo pensador salienta as dificuldades de usarmos, no caso da literatura aqui estudada, o termo “literatura africana de expressão portuguesa”. O uso desse termo visa agrupar e delimitar as literaturas dos países africanos com língua portuguesa. Entretanto, ele apresenta o problema de

[...] imediatamente, a partir da classificação, se fica com o preconceito de que as literaturas, em quantidade, são tão irrisórias que não merecem tratamento apartado. Conseqüência: assuntos e autores que mereciam ampla e minuciosa abordagem ficam sujeitos [...] a simplificações, mutilações, incompletudes e desvirtuações (LARANJEIRA, 1992: 17).

No que se refere a essa denominação também Ana Mafalda Leite faz uma ressalva ao sublinhar que elas traçam generalizações que nos fazem perder de vista as particularidades nacionais. Nas suas palavras:

As designações abrangentes, ainda hoje usadas, do tipo, “literaturas africanas de língua portuguesa”, “literaturas lusófonas”, “literaturas anglófonas e francófonas”, são em si portadoras de uma significação ideológica obtusa, que permite a indefinição nacional, e leva a uma generalização do particular em favor de traços apenas comuns pelo uso e um mesmo instrumento lingüístico, e processos temáticos de contestação similares durante o período colonial. (1998: 13).

Portanto, as literaturas africanas apresentam originalidade e particularidades conforme o processo histórico que aconteceu em cada país. Ana Mafalda Leite nos explica:

Cada literatura nacional africana tem as suas características próprias e desenvolve-se segundo moldes estáticos e lingüísticos, cuja distintividade resulta não só das diferenças culturais étnicas de base, mas também das diferenças lingüístico-culturais que a colonização lhes acrescentou. É praticamente insustentável qualquer generalização que conduza a elaborações teóricas que não levem em linha de conta as especificidades regionais e nacionais africanas. (1998: 27).

As literaturas africanas de língua portuguesa dialogam com as “tradições” cada uma da sua maneira e conforme o seu contexto histórico específico. Mafalda Leite relata que os escritores africanos fazem essa apropriação da língua do colonizador, “nativizando-a”.

Nas literaturas africanas de língua portuguesa, tendo em conta a especificidade de colonização que favoreceu a indigenização do colono e a aculturação do colonizado, em graus mais ou menos extremados e substancialmente diferentes das outras colonizações, a relação com as tradições orais e com a oratura, começam por manifestar-se exactamente pelas diferentes “falas” com que os escritores africanos se assenhorearam da “língua”. A “pilhagem” ou “roubo” da língua portuguesa pelo colonizado mostra que a “africanização”, perversamente, se institui e processa no interior do instrumento comunicativo, num processo transformativo e nativizante. (LEITE: 1998, 33).

A maioria dos escritores das literaturas africanas de língua portuguesa são assimilados, uma parte significativas de ascendência européia, quase todos de origem urbana, sem contato directo com o campo, e não dominam, salvo raras exepções, as línguas africanas. Esse facto não é comum nos outros países africanos, onde a ligação com o “terroir” se mantém desde a infância e os escritores geralmente são, pelo menos, bilingues. (LEITE: 1998, 30).

Segundo a autora, Mia Couto poderia ser enquadrado como um autor que realiza a “modelação da língua, instrumento privilegiado da contaminação, mestiçagem e entrosamento das culturas, orais e escritas” (LEITE: 1998, 32).

Terra Sonâmbula

O livro Terra Sonâmbula de Mia Couto discorre sobre duas histórias que a princípio parecem distintas, mas que ao final do texto se ligam. O texto se divide em Capítulos e em Cadernos de Kindzu, sendo que está estruturado de forma que após cada Capítulo inicia-se um Caderno de Kindzu. Assim, essa parte do texto será dividida entre reflexões sobre os capítulos e, posteriormente sobre os Cadernos de Kindzu.

Os capítulos do livro tratam sobre a história das personagens Tuahir e Muidinga e sobre o seu cotidiano em uma “estrada morta”, ou seja, uma estrada sem movimento. Tuahir é um velho e Muidinga um menino que deve ter em torno de 11 anos. O pequeno é chamado de miúdo pelo velho. Tuahir e Muidinga são dois desabrigados que vagam pela Moçambique da pós-independência tentando sobreviver. Fácil é perceber a partir da leitura do texto o deslocamento causado pela guerra civil que se instalou no país após a independência. Durante esse deslocamento eles encontram um machimbombo (ônibus) queimado e instalam-se nele. Dentro desse ônibus há pessoas mortas e uma delas carrega uma mala, na qual estavam guardadas comida e alguns escritos denominados Cadernos de Kindzu. Os cadernos são lidos por Muidinga para os dois, visando preencher seus dias e noites solitários.

Na medida em que a leitura se desenrola, as personagens penetram cada vez mais na história e, sentindo a necessidade da leitura dela, de modo que o próprio Tuahir chega a afirmar, ao final do quinto capítulo, que “Esse fidamãe desse Kindzu já vive quase conosco” (2007: p.90). Ao fim desse capítulo vê-se a importância da contação de histórias em Terra Sonâmbula, que provavelmente expressa a importância dessa prática na cultura moçambicana. Cabe salientar que a contação das histórias de Kindzu ocupa metade do livro.

Um elemento importante levantado a partir do ato de contar a história nesse livro é o fato de ser o jovem Muidinga que conta a história e não o idoso Tuahir, como sempre imaginamos ao pensar na figura do griô. Isso acontece porque a contação da história de Kindzu ocorre através do domínio da leitura, que é um conhecimento das gerações mais novas. Quando, no quarto capítulo Siqueleto solta ambos e morre depois do menino escrever seu nome numa árvore também nota-se o domínio desse signo pelas novas gerações. O fato não exclui, porém, o respeito que o menino tem pelo mais velho, expresso, por exemplo, na confiança que o miúdo deposita em Tuahir quanto ao conhecimento do caminho de volta para o ônibus, quando parecem perdidos.

Um último elemento da contação de histórias é percebido quando, no início do quinto capítulo, o narrador chama o machimbombo de moradia e ao fim Tuahir revela a importância que as histórias de Kindzu têm para eles. Isso nos permite pensar que a contação de histórias inclusive estabelece um laço de moradia com o lugar onde ela é contada, estabelecendo uma ligação entre o Machimbombo queimado e os dois personagens.

Enfim, o que prende Muidinga e Tuahir no machimbombo? Na primeira vez que Tuahir sai do machimbombo, Muidinga diz que são os Cadernos de Kindzu que despertam a vontade de voltar ao abrigo. Já quando Muidinga quis sair dali, Tuahir usa a desculpa de que ali ninguém apareceria e ali estariam protegidos, pois o país estando em guerra era melhor que ninguém os encontrasse. A partir do quarto capítulo (o da morte de siqueleto), quando os personagens parecem estar estabelecidos no machimbombo, eles começam andar em círculos ao redor de onde ele se encontrava. Nesse momento é que Tuahir e Muidinga começam a conhecer o entorno e passam a acontecer coisas ao seu redor. No quinto capítulo o ônibus já é designado como moradia pelo narrador. Com efeito, ao longo de todo livro eles saem do machimbombo apenas para andar em círculos, somente no final da história eles se despedem de vez do lugar, para encontrar o mar.

Outro ponto interessante para refletirmos é a constante mudança de paisagem. Ao longo da obra a paisagem vai mudando. O que significa a mudança constante da paisagem da estrada? Não seria a leitura que os faz ver as coisas de forma diferente?

Por outro prisma, a relação fraternal entre os dois personagens também é uma constante no livro, sobretudo porque ambos acolhem-se como pai e filho – ou tio e sobrinho. Em meio a essa relação Muidinga busca sempre por suas raízes, descobre que o velho o tirou de uma vala de um campo de desabrigados onde jogavam crianças mortas. Ao ver que o menino estava vivo, Tuahir o salva. Todavia, ele não se lembra de nada disso, pois o velho o levou em um feiticeiro para que ele esquecesse o seu passado, o que acaba por não funcionar no momento em que o pequeno termina de ler os cadernos de Kindzu e descobre a sua origem.

No que se refere aos cadernos lidos por Tuahir e Muidinga em seu cotidiano solitário e faminto, Kindzu é escritor e protagonistas dessa história, narrada em forma de diário. Dentre os principais temas tratados, destacaria, em primeiro lugar, o desenraizamento do lugar de origem. Kindzu, ao ver o seu mundo tradicional se desestruturar com a guerra civil, sente-se perdido e quer procurar novos lugares. A conseqüência disso é um desprendimento de sua terra natal.

Esse desprendimento não vai ser bem compreendido pelo seu pai, mesmo esse estando morto. Aí partimos para um segundo tema recorrente no romance: relação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Uma ideia que pode parecer estranha à ocidentais cristãos, mas demonstra o modo de pensar a vida e a morte na tradição moçambicana, visto que o contato entre os dois mundos ocorre sem estranheza. Os exemplos disso são muitos ao longo do livro. Entre eles há um no Segundo Caderno de Kindzu, quando Kindzu conversa com seu pai falecido através de um sonho. Nesse exemplo também se percebe um terceiro tema recorrente na obra: a importância dos sonhos na tradição moçambicana. Nos Cadernos de Kindzu nota-se a importância dos sonhos constantemente para a organização dos caminhos a serem seguidos. Kindzu afirma que “O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos” (2007: 17);

Um quarto aspecto, a partir da leitura de “Terra Sonâmbula”, está associado à podermos visualizar a importância da relação entre pai e filho, porquanto nos cadernos de Kindzu o pai aparece como uma figura importante e presente. Tanto assim, que Kindzu apenas começa a se sentir perdido em sua terra natal após a morte de seu pai, já que Kindzu considerava sobre si mesmo que: “Minha alma era um rio parado, nenhum vento me enluava a vela dos meus sonhos. Desde a morte de meu pai me derivo sozinho, órfão como uma onda, irmão das coisas sem nome” (COUTO, 2007: 22).

Outro importante tema tratado nos cadernos de Kindzu é o da sociedade racializada. Várias vezes é possível perceber as diferenciações raciais existentes na sociedade moçambicana. Um excerto que ilustra isso bem é quando Kindzu faz referência “aos perigos” dele se relacionar com um indiano. O narrador explica:

Surendra sabia que minha gente não perdoava aquela convivência. Mas ele não podia compreender a razão. Problema não era ele nem a raça dele. Problema era eu. Minha família receava que eu me afastasse de meu mundo original. Tinham seus motivos. Primeiro, era a escola. Ou antes: minha amizade com meu mestre o professor. [...] Pior, pior era Surendra Valá. Com o indiano minha alma arriscava se mulatar, em mestiçagem de baixa qualidade (COUTO, 2007: 24-25).

A partir dessa relação de Kindzu com o indiano Surendra Valá também percebemos a influência da cultura muçulmana e indiana na região, resultando nas tradições suailis.

Um sexto tema importante dos cadernos é a presença das mulheres e as possibilidades de atuação feminina em um contexto machista. Essa atuação pode ser percebida, por exemplo, quando Carolinda faz uso de sua posição para tentar matar sua irmã, Farinda.

Por fim, quanto aos Cadernos de Kindzu, é extremamente importante fazer referência ao contexto histórico ao qual a história se desenvolve. Esse contexto também pode ser percebido nos capítulos, mas fica muito mais explícito na história de Kindzu. A rigor, os temas históricos que aparecem no romance seriam: a independência (expresso na figura de Junhito); a guerra civil; os campos de refugiados; os bandos armados; a corrupção (exemplificada na cidade de Matimati e na personagem Assane); o contexto ideológico influenciado pelo marxismo (administrador); e a figura do colonizador (Romão Pinto).

Ao fazer referência a corrupção que ocorria em seu país durante o contexto de guerra, Kindzu escreve em seu sexto caderno que Farida queria conhecer mais, saber o motivo da guerra, a razão daquele desfile de infinitos lutos. Relata que lembrou as palavras de Surendra, que diziam que tinha que haver guerra, tinha que haver morte.

E tudo era para quê? Para autorizar o roubo. Porque hoje nenhuma riqueza podia nascer do trabalho. Só o saque dava acesso às propriedades. Era preciso haver morte para que as leis fossem esquecidas. Agora que a desordem era total, tudo estava autorizado. Os culpados seriam sempre outros.

Com esse excerto fica compreensível o modo como a guerra facilita a ação de um governo desorganizado e corrupto em um país. Nesse sentido, outro personagem que ilustra a ação corrupta em um país em estado de guerra é Assane, já que exemplifica as possibilidades de corrupção que isso permite aos funcionários. O próprio machimbombo onde Kindzu estava se deslocando quando morre queimado era fruto de uma empresa de Assene que prosperou com esse contexto. Sabemos do advento desse tipo de negócio através das seguintes palavras do último caderno de Kindzu: “Fingi nem reparar. Nossa empresa? Então, o negócio já se expandira? Afinal, em guerra se pode prosperar mais rápido que em normais tempos de paz” (COUTO, 2007: 199). No que concerne à figura do colonizador, há a personificação do mesmo na personagem de Romão Pinto, o qual mesmo morto quer influenciar e ter parte nos negócios da nação.

O livro demonstra a desorganização e miséria pelo qual passava Moçambique após a descolonização. Para ilustrar isso o autor utiliza uma metáfora através do pensamento de Kindzu, quando a personagem afirma que “Agora, eu via o meu país como uma dessas baleias que vêm agonizar na praia. A morte nem sucedera e já as facas lhe roubavam pedaços, cada um tentando o mais para si. Como se aquele fosse o último animal, a derradeira oportunidade de ganhar uma porção” (2007:23).

A obra retrata a impressão de um contexto histórico em que chega ao fim um mundo, uma sociedade e suas tradições específicas, sem dar grandes projeções de um novo mundo próspero. Apenas o que se tem são esperanças de alguns dos viventes desses tempos de guerra. Farida e Kindzu podem ser pensados como analogias de uma geração perdida entre a tradição moçambicana e a cultura imposta pela dominação colonial (Farida) ou entre a tradição moçambicana e o novo país que se estrutura com a independência (Kindzu). Ambos estariam perdidos entre esses mundos e tentando se encontrar após a dominação colonial. No seu Quinto caderno, Kindzu escreve:

Entendia o que me unia àquela mulher: Pensava sobre as semelhanças entre mim e Farida. Nós dois estávamos divididos entre dois mundos. A nossa memória se povoava de fantasmas da nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em nossas línguas indígenas. Mas nós já só sabíamos sonhar em português. E já não havia aldeias no desenho do nosso futuro. Culpa da Missão, culpa do Pastor Afonso, de Vírginia, de Surendra. E sobretudo, culpa nossa. Ambos queríamos partir. Ela queria sair para um novo mundo, ela queria desembarcar numa outra vida. Farida queria sair da África, eu queria encontrar um outro continente dentro da África. Mas uma diferenças nos marcava: eu não tinha a força que ela ainda guardava. Não seria nunca capaz de me retirar, virar costas. Eu tinha a doenças da baleia que morre na praia, com os olhos postos no mar. (COUTO, 2007: 92).

Quanto às características que perpassam toda a obra (tanto os Capítulos, quanto os Cadernos de Kindzu), destacaríamos duas. A primeira delas seria a interligação e, por vezes, indissociação entre o ser humano e os elementos da natureza. Vemos isso quando Junhito vira galinha, quando Kindzu fica com escamas entre as mãos para poder remar, ele “se peixava”, ou ainda quando o homem que captura Tuahir e Muidinga vira semente. E nada disso que, para nós pode parecer estranho, ganha conotação de algo irreal ou impossível no livro. Exemplos como esses se repetem muitas vezes durante a obra, tanto nos capítulos sobre a “estrada morta” quando nos Cadernos de Kindzu.

A segunda característica que perpassa toda a obra e que é uma característica do autor é o uso de neologismo. Mia Couto escreve muitos neologismos em seu texto. Ao longo de todo o livro lemos novas palavras que se encaixam perfeitamente para explicar o relato de Mia Couto. Por exemplo, na página 59 há duas frases onde aparecem três palavras novas: “A canoa se ondeava, adormentada em águas perdidas. Meu peito bumbumbava, acelerado” (COUTO, 2007: 59). São muitas as palavras que aparecem ao longo da obra para darem sentido ao texto e possibilitar que imaginemos o cenário com maior nitidez. Assim, também são exemplos de neologismos que aparecem ao longo do texto: palavraram, esperantes, troteondeando, peixava, alicatéia, xicalamidades, africandade, pirilampejava, invencionices, vagueandear, aguou, abismalham, pontapina, anichavam, doidoendo, pensageiro, calcorrear, sozinhidão, saltinhadores, convinvência, gesticalada, palmando, anjonautas, desarrascava, cabedaloso, esbarrigados, espalhafarto, boquiaberturas, abismaravilhado, abichado, desandarilho, desenrasca, arreliação, matraquear, Carolinda, inutensílio, nuventa, exactamesmo, calafriorento, choraminguante, cambalinhando, deslocalizara, infanciando, inaposento, desbotura, desencostadas, passarinhando, saltinhador, timiudamente, dormitoso, pernalteava, cantarinhar, lamentochão, desmeiada, escãozelada, nenhures, direitamento, facocherando, miraginações, administraidor, descaminhei, desexistir, descaminhou.

Conclusão

O título do Livro Terra Sonâmbula ganha um sentido importante ao longo da obra. É aquela terra que não está nem dormindo e nem acordada, ela sonha em um ambiente onde o marasmo, a esperança do fim da guerra e a miséria própria da guerra se fazem presentes, assim resta aos habitantes sobreviverem. É nesse cenário de guerra que aparecem pessoas que vagam famintas e onde a leitura de uma história pode ser um alento para sua sobrevivência. A partir da obra também podemos entender um pouco da história do Moçambique após a sua independência e das questões que são colocadas para um novo país e, porque não, para uma nova literatura que também pretende se libertar do julgo do colonizador.

Referências

CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: Experiência colonial e territórios literários. São Paulo:Ateliê Editorial, 2005.

COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

LARANJEIRA, Pires. De letra em riste: Identidade e outras questões nas literaturas de Angola, Cabo Verde, Moçambique e S. Tomé e Príncipe. Porto: Edições Afrontamento, 1992.

LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & Escritas nas literaturas africanas. Lisboa: Edições Colibri, 1998.

* Raquel Braun Figueiró é Professora de História no Colégio Estadual Inácio Montanha; Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Especialista em História da África pela Faculdade Porto-Alegrense (FAPA); Licenciada e Bacharela em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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