ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Desconfiar é preciso

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Há um texto do genial Eduardo Galeano em que a desconfiança é celebrada. A história é singela. Um professor conclama os estudantes a se manifestarem quando, após o mestre abrir um pote com perfume, eles sentirem o cheiro. Com o pote quase aberto, alguns já declaram a força do aroma. E assim todos o fazem. Até que alguns pedem que se abra a janela, pois o cheiro está forte demais.

O professor, calado, apenas observa. E logo conta aos educandos: o pote está cheio de água, não há perfume algum.

Tal historinha passa pela cabeça acompanhando os noticiários dos grandes meios de comunicação. Como se os que vestem as suas camisas dissessem: nestas telas, nestas páginas ou neste rádio está a informação imparcial e verdadeira. Ao acreditar, os apressados cometem um grave engano. O que há ali é uma versão, uma versão que interessa a uma determinada visão política. Um simulacro da vida real. Que, nesse caso, exala um forte cheiro de excremento - para ser gentil.

Desconfiar é preciso. Desconfiemos.

.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Cego com visão?

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Aconteceu na rua. Daquelas lições cotidianas. Esperando o ônibus, duas pessoas conversavam sobre os problemas do país. Um cego e um rapaz com a visão perfeita. A parada estava repleta de trabalhadores. O sol ainda não anunciava o dia por completo. Afirmava o cego:

- Tem que ver o seguinte... É muita desigualdade. De dinheiro. De poder. Entre homens e mulheres. Entre orientações sexuais. Entre etnias. Entre profissões. Entre possibilidades. Tudo muito desigual.
- É, mas isso não é desculpa. Quem quer, corre atrás.
- Sim, tudo bem. É importante correr atrás. Certo. Mas as condições da corrida fazem diferença.
- O importante é correr atrás. Esse país é um lixo porque todo mundo quer tudo de mão beijada. Quem tem é porque correu atrás.

O cego suspirou, quase impaciente. Escutou um barulho de ônibus se aproximando.

- Eu não acredito num mundo em que as pessoas não corram atrás. Pelo contrário, acho que para acreditar que vale a pena a dedicação, algumas condições mais equitativas são o ponto de partida. Uma mulher com liberdade de ação e pensamento. Uma família pobre com boa escolarização. Enfim, pode me dizer qual é a linha desse ônibus que chegou?

Silêncio. Quando o veículo arrancou, uma moça atenta ao diálogo, quieta até então, acrescentou sabedoria àquele dia que recém iniciava.

- Ele já foi. Saiu rindo. Não era o seu ônibus, eu aviso quando chegar. Na boa, ainda dizem que o cego é o senhor…

.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Desigualdade, violência e uma falsa rinha


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Seria engraçado, não fosse uma tragédia anunciada.

Na mesma semana em que o relatório da Oxfam (1) sobre o crescimento das desigualdades econômicas ganhou repercussão mundial, ocorre o grande evento dos ricaços do planeta, o Fórum em Davos. Deve estar uma delícia por lá. Por aqui, só a delícia do pau comendo e da labuta de sol a sol.

Na mesma semana, uma pá de gente aqui no Brasil baba por pena de morte, porrada e mais porrada, olho por olho e dente por dente. Pelo visto, o negócio é todo mundo acabar cego e sem dente. Quando é preto e pobre, tem que matar! Quando é branco e médico, mesmo envolvido na máfia das próteses ou entrando de costas nos hospitais públicos, reina o silêncio ensurdecedor. Dois pesos, duas medidas. Bonito.

O pessoal da sanha vingativa esquece algumas questões. Quem produz as armas? Quem produz as drogas? Quem comercializa as armas e as faz chegar nas mãos da população, em geral dos mais vulneráveis socialmente? Quem? Quem? Tem fábrica de armas na favela? Tem plantação de coca ou maconha em larga escala na periferia? Isso para listar só algumas inquietudes.

Ah, não adianta fugir. No fim, o debate (de ideias, por favor) termina onde começa, na velha e falsa rinha sociológica: o que move, no limite, a realidade social? A ação de cada um de nós ou as estruturas e os condicionamentos coletivos? O sujeito não produziu a arma, mas poderia escolher por não atirar. Verdade. Sem a arma, entretanto, ele não teria como atirar. É mesmo. E assim a roda gira e a falsa rinha subjaz – escondida – as rotinas alheias.

Resposta, prontinha e acabada, parece não existir. Mas pensar sobre pode ser interessante. O livre arbítrio pode não ser tão livre assim. Outros arbítrios podem influenciá-lo. Os de hoje. Os de ontem. A coerção coletiva, as instituições e as estruturas podem não ser tão pesadas. As de hoje. As de ontem.

Seria bom apenas pensar, não fosse o cotidiano marcado por tragédias anunciadas.

Notas

(1) O relatório da Oxfam está disponível em português. Vale a pena uma lida com atenção. Os seus dados e conclusões podem ser questionados, visto que, do ponto de vista metodológico, investigar a riqueza e a renda (aspectos econômicos) não é nada fácil e não se dá num contexto de consenso. De todo modo, o relatório vale a leitura.

.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Hobbes, Rousseau e o século XXI


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau foram dois pensadores fundamentais para a filosofia e as ciências sociais. Cada um do seu jeito. Ambos refletiram sobre a natureza da vida humana e as construções sociais dispostas a organizá-la. Reduzindo bastante a complexidade, temos alguns antagonismos entre as suas ideias.

Hobbes (2008) entendia o ser humano como naturalmente dominado por impulsos egoístas, dotados da manutenção da sua sobrevivência e pouco afeito a uma natureza coletiva. O que importava era sobreviver. E bem. Se um pacto coletivo não fosse estabelecido, os humanos caçariam uns aos outros. Seria a guerra total. O pacto ou contrato social cumpriria a tarefa de trazer segurança e paz para todos os indivíduos, submetidos a um soberano responsável por manter a ordem social e resguardar as vidas e o bem-estar dos seus súditos.

Rousseau (2008), por sua vez, percebia a natureza humana como ingênua, no sentido de que a convivência social seria um elemento central na existência da espécie. Viver com os demais em harmonia, na expressão do "bom selvagem", traduziria o destino humano até a invenção da propriedade privada. A partir daí, do momento em que alguém delimitou o que era seu e não dos outros, Rousseau interpretava o nascimento das sociedades desiguais e a grande mazela da nossa espécie. A corrupção do destino humano. Uma organização política e um sistema educacional cunhados na vontade geral e na soberania de todos recolocaria o nosso caminho num horizonte de paz.

Se é verdade que a humanidade diminuiu bastante a violência entre si na época moderna (PINKER, 2013), também é verdade que as guerras, os homicídios e suas variantes permanecem. Por óbvio, nem Hobbes nem Rousseau dão conta de explicar a realidade contemporânea na sua completude. Não há ciência para tamanha empreitada. Contudo, suas divergências podem auxiliar numa perspectiva analítica reflexiva.

Pensar o papel do Estado e dos indivíduos na atualidade desde as diferenças teóricas entre Hobbes e Rousseu oferece um substrato que pode direcionar para outras facetas que modulam a imperativa complexidade desse cenário. O homem caçador de si mesmo segue se manifestando nas esferas coletivas? O Estado e o pacto social fracassaram na sua missão civilizatória? Ou o Estado reflete, feito por humanos, as suas naturezas?

Referências

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Ícone, 2008.

PINKER, Steven. Os anjos bons da nossa natureza. São Paulo: Cia. das Letras, 2013.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e a desigualdade entre os homens. Porto Alegre: L&PM, 2008.

.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Ser ou não ser Charlie não é a questão


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Ser ou não ser Charlie Hebdo, eis a questão?

Seria pouco. Seria reduzir demais um debate muito complexo e cheio de paradoxos.

Primeiro paradoxo: muitos defendem a liberdade de expressão como um bem supremo. Importante. Deve ou não deve ter limites? Na França, a legislação coíbe a injúria, a difamação, a incitação ao ódio, à violência e à discriminação. Há limites. Charlie Hebdo não pode ser enquadrada nesses pontos? Apenas o humorista francês Dieudonné M’Bala, detido ontem, pode ser enquadrado nesses pontos? E os fascistas que podem ganhar as próximas eleições por lá, não podem ser enquadrados nesses pontos? Se a liberdade é irrestrita, que seja para todos. Se há limites, que valham para todos. Não?

Segundo paradoxo: por aqui, o que mais se vê são as justas condolências pelos mortos franceses. Justas condolências. O terrorismo é injustificável. Indefensável. Em geral, associa-se ao terrorismo o Hamas, o Estado Islâmico, a Al Qaeda. Ok. Suas variantes ocidentais, entretanto, são esquecidas. As ações militares do Estado de Israel e dos Estados Unidos são justificáveis? Os extermínios dos palestinos, dos iraquianos, dos jovens negros e pobres brasileiros, dos estudantes mexicanos, dos nigerianos e de tantos outros civis são justificáveis? Se o combate ao terrorismo e à violência é prioridade, que seja para todos. Inclusive no ocidente. Não?

Por fim, do ponto de vista teórico, além de ser impossível deixar de falar no colonialismo, tão recente e com profundas feridas ainda abertas nos povos saqueados, um debate em especial parece decisivo na atualidade. A discussão sociológica e antropológica entre o relativismo cultural extremo e o etnocentrismo pode estar na ordem do dia. Num contexto de valorização de determinados elementos culturais e de rejeição ao diferente, cabe apenas aderir ao polo oposto? Relativizar tudo? Que se respeite cada tradição cultural e que não haja limites para elas? Onde está o caminho?

Vale pensar.

.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Novo ano, velhas condições

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O ano começa como o ano que acabou. Pelo menos na política institucional e na grande mídia, sem muitas novidades.

No país, a formação dos ministérios faz aqueles que acreditaram num avanço contra as desigualdades e opressões chorarem quietinhos. Na economia, os operadores do mercado financeiro sorriem, anunciando ajuste fiscal para o delírio dos que muito ganham e pouco produzem. Eu peço desculpas por ter acreditado em algo diferente. Mesmo ainda entendendo que, no limite, há diferenças. Porém, Kátia Abreu, Cid Gomes e Joaquim Levy, entre outros, forçam meus pedidos de perdão.

No sul, o (des)governo não demorou mais do que um dia para mostrar o plano de trabalho que nas eleições não existia. Corte de gastos no bolso dos que mais precisam, aumento de salários das elites políticas. Congelamento de concursos públicos e moratória do pagamento de fornecedores. Cerca de 30 mil demissões no horizonte imediato. Ataque direto ao funcionalismo ali na frente. Tudo sob o aval dos colunistas e jornalões dominantes, sempre dispostos a corroborar teses que desconhecem profundamente e que arrotam como sábios especialistas.

Os meios de comunicação hegemônicos seguem cada vez mais alinhados com a concentração de riqueza e uma diversidade de opressões. Construir uma sociedade menos desigual, menos machista, menos racista, para falar apenas desses aspectos, não está na pauta das grandes empresas de (des)informação. Relativizar essa evidência é tapar o sol com a peneira.

O futuro está nas ações, individuais e coletivas, é verdade. Mas as condições estruturais não são animadoras.

.