ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

sábado, 24 de dezembro de 2016

Michael Sandel e a sociedade de mercado

Estaríamos passando de uma economia de mercado a uma sociedade de mercado?

Frase de Sérgio Vaz

A apologia irreflexiva da economia de mercado pode estar nos transformando em sociedades de mercado. Não apenas a produção e circulação de bens materiais, mas praticamente todas as relações nas sociedades humanas podem se tornar relações de compra e venda. Em sociedades muito desiguais, ricos e pobres, pessoas de diferentes origens sociais e estilos de vida podem passar a ter cada vez menos espaços de compartilhamento de experiências. Perde o ideal democrático, pois se não tivermos mais espaços de convivência e negociação das nossas diferenças, o caminho fica livre para o ódio e a intolerância. Essas provocações de Michael Sandel (veja o vídeo no TED), filósofo e professor de Harvard, ajudam a nos fazer pensar no caminho que estamos trilhando enquanto civilização humana. Quem sabe a gente não faz diferente?

.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

"Estadofobia" x "Estadolatria"

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

A “Estadofobia” de boa parte dos governantes atuais e dos meios de comunicação de massa, na verdade, esconde uma “Estadolatria” indiscutível. O mantra de reduzir e reduzir e reduzir o Estado, a qualquer preço, mascara uma visão de Estado que, na prática, prevê um Estado bastante forte e atuante.

Ora, os governos atuais pretendem reduzir o lado mais “democrático” do Estado, o seu “braço esquerdo”. Ciência, educação, saúde, cultura, meio ambiente e outras pautas que foram incorporadas pelo poder público através de muita luta popular, sobretudo durante o século XX, na busca por expandir para toda a população os serviços básicos que conformam a dignidade humana, passam a ser descartáveis e direcionadas para o mercado - e, portanto, acessíveis para quem puder pagar.

Por outro lado, o monopólio da violência física, dos instrumentos de “justiça” e da máquina administrativa responsável por recolher os tributos da população, em geral, pouco ou nada entram no debate. De fato, por vezes, policiais também acabam pagando o pato da austeridade-para-alguns, tão na moda neste mar de lama chamado 2016. Ainda assim, repressão pesada, vigilância e coerção não correm riscos quando chega a tesoura do pessoal da teoria econômica ortodoxa. Auxílio-moradia a juízes, privilégios de desembargadores, isenções fiscais às grandes corporações, enfim, nada disso importa.

Forja-se uma “Estadofobia” para alguns, ou melhor, para as funções que ajudam a ampliar os horizontes da sociedade, ajudam a estimular a emancipação humana, e uma “Estadolatria” para a regulação e o controle, para o embrutecimento e a segurança das grandes propriedades. Nessa toada, a “Estadofobia”, por incrível que pareça, sequer propõe a garantia legal e real de direitos individuais contra o poder do Estado. Segue o Estado controlando o casamento das pessoas, as substâncias que elas utilizam, suas gestações e, não é de se duvidar para o futuro-presente próximo, o que as pessoas pensam e falam.

A “Estadofobia” de hoje fomenta o inverso daquilo que poderia equilibrar as oportunidades de uma vida digna, considerando o complicado contexto das modernas sociedades capitalistas. Em vez de (a) garantir as liberdades individuais, retirando-se de um jogo que não é seu (b) regular os conflitos entre capital e trabalho, dando suporte para a imensa massa de trabalhadores não ficar a mercê somente dos interesses das oligarquias e grandes corporações (c) incentivando a ciência, o micro, o pequeno e o médio empreendedor, a cultura, o cooperativismo, projetos sustentáveis e educação e saúde para todos, é exatamente o oposto que vira a “solução mágica” a ser aplicada goela abaixo.

Desse jeito, logo estaremos diante de uma “Estadolatria” às avessas dos ideais democráticos, pelo menos os mais utópicos: um Estado cada vez mais regulador, controlador, vigilante, repressor e cobrador de impostos. O resto o mercado absorverá e quem não puder pagar que se vire. A democracia, sobrevivendo por aparelhos, parece só precisar de um empurrão para ir às cucuias de uma vez por todas, em pleno século XXI.

.

sábado, 3 de dezembro de 2016

Contra a corrupção

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O atual sistema político apanha de todos os lados. Desde o impeachment-golpe, a esquerda tem tomado as ruas. Em todos os atos que estive presente, deu pra notar, no mínimo, uma diferença entre aqueles que pedem a volta do PT e os defensores de eleições gerais imediatas. Mais recentemente, a possibilidade de congelamento dos gastos da União por duas décadas abrandou as diferenças.

Hoje, o sistema político está em frangalhos. No próximo domingo, os movimentos que canalizaram as ruas contra o PT, meses atrás, estarão nas ruas outra vez. Mesmo com notícias de divergências entre os grupos organizadores, são esperadas milhares e milhares de pessoas nas manifestações. 

O mote dos protestos de domingo é a corrupção. Cresci vendo a esquerda dar porrada na corrupção. Hoje, contudo, em função de mil fatores, a pauta de combate à corrupção é entendida por parte da esquerda como subterfúgio da direita fascista para encher as ruas e defender suas bizarrices ultraconservadoras. Isso não deixa de ser verdade, mas aí parece residir uma armadilha complicada, algo que pode ajudar a explicar a dificuldade da esquerda em dialogar com a população em geral.

Ora, se está surgindo a brecha para desestabilizar de uma vez por todas um sistema político que não dá nenhum sinal de garantir os direitos e trabalhar para melhorar a vida da maioria dos brasileiros, não seria a hora de participar (à esquerda, por óbvio) da panela de pressão? Não se abre uma chance interessante para buscar barrar a PEC 55 e as anomalias do governo do RS, por exemplo? Tática e estratégia não seriam as palavras da vez?

Não tenho respostas e tampouco sou linha de frente no engajamento político. Entretanto, a melancolia que se abateu sobre muitos de nós parece um grave estado paralisante, bem como o reforço ao imaginário de que o PT ainda é a força motriz da esquerda - mesmo que todos os dias a prática desminta a "imagem". Fica difícil defender o PT e criticar a corrupção, nesse momento.

É claro que não é simples somar pautas de direitos e mais democracia em atos tomados por pedidos de intervenção militar e selfies com as forças de repressão. Mas o que não se pode perder de vista é que o mote da corrupção mobiliza muitos "cidadãos médios", que não necessariamente se alinham com a direita*. Há uma multidão insatisfeita, e o pior dos cenários é ver essa massa guiada somente pelos movimentos autoritários e ignóbeis. Se os que estão pela redução das desigualdades e pelos direitos democráticos não encontrarem uma via de aproximação com essa insatisfação, tudo indica que o futuro próximo nos reservará mais desigualdade e autoritarismo.

* Uma pesquisa em São Paulo mostrou questões relevantes sobre valores e concepções políticas da população em geral. Vale uma olhada atenta: http://gpopai.usp.br/pesquisa/relatorio.html

.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Dos escombros

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Tragédias têm o potencial de despertar sentimentos. Solidariedade, consternação e empatia são bons exemplos. Ocorre que na "sociedade do espetáculo", no espírito acelerado dos dias atuais, isso passa muito rápido. Tão rápido que, por vezes, os sentimentos de comunhão e construção nem saem de um estado embrionário.

Vai vendo... Tragédias poderiam nos lembrar que o serviço público atende aos mais necessitados, e que, portanto, não podemos arbitrariamente congelar o orçamento da União por duas décadas e não faz sentido algum culpar os servidores pelas mazelas do país; poderiam nos lembrar que a corrupção deve ser combatida e que o Parlamento serve para negociar os diferentes interesses dos diferentes grupos sociais, não para legislar em causa própria; que a Justiça deve fazer justiça, não vingança, e que um Estado com um Judiciário intocável e superpoderoso arrebenta com a democracia e os direitos individuais. 

Horas depois da tragédia, a vida parece seguir o curso do ódio e da capacidade de fazer daquilo que a tragédia poderia despertar (empatia e solidariedade) apenas mais um suspiro de utopia num horizonte distópico. Seja com o dirigente de futebol falando merda, com parte de torcidas ironizando a morte do ídolo rival (salve Fernandão!), com o político que tira o seu da reta, o magistrado que ameaça ou o simples internauta que queria ver o petista ou o tucano dentro de um avião em pedaços.

No entanto, ainda assim, o suspiro da utopia, que a tragédia pode fazer atravessar as nossas sombras, ajuda a lembrar que nem tudo tá perdido. Dos escombros algo distinto pode ganhar vida. O que vai emergir desse Brasil em convulsão parece estar em aberto. Só não dá pra ser uma besta ainda mais autoritária e desigual.

.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Artigo: Capital cultural e desempenho escolar no Brasil a partir do Saeb 2003

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

http://www.hrpub.org/journals/article_info.php?aid=5261

Venho argumentando faz algum tempo que uma parte importante dos problemas da educação passa pela socialização dos jovens fora da escola. É um pouco do que está presente no artigo em anexo (clique na imagem acima para acessar), que publiquei esse mês, no Universal Journal of Educational Research. Como está em inglês e, em geral, trabalhos científicos são lidos por poucas pessoas, abaixo faço um breve resumo do estudo e dos argumentos.

O artigo é decorrência da minha dissertação de Mestrado Acadêmico. A discussão gira em torno dos recursos culturais acessados pelos estudantes e o impacto deles no desempenho escolar. Trabalhei com uma base de dados acerca de estudantes do 3º ano do Ensino Médio, em todo o Brasil, no ano de 2003. Através do uso da estatística, foi possível mensurar a influência de diferentes elementos no desempenho acadêmico dos educandos brasileiros. 

Em suma, cabe dizer que os jovens que tendem a conseguir altos rendimentos escolares têm acesso a bens culturais como livros, possuem hábitos culturais como a frequência ao cinema e uma família com escolaridade elevada. Eles se situam numa classe social em que não precisam trabalhar enquanto estudam e têm acesso a bens duráveis relativamente escassos. Ter a cor da pele branca ou estudar em escolas particulares ou federais remete a outros aspectos que possuem impacto relevante nas notas.

Alguém pode perguntar: e todos os aspectos pedagógicos, escolares, emocionais e etc., não são levados em consideração? E tudo aquilo que a estatística não dá conta? As avaliações educacionais em larga escala não são problemáticas? Sem dúvidas, essas são questões muito importantes. Ocorre que, num trabalho de pesquisa sociológica, é preciso “recortar” a realidade e analisar alguns pontos dela. A abordagem quantitativa não dá conta das relações no nível das motivações e subjetividades. Ela nos ajuda a entender regularidades e tendências. Nesse caso, foi o objetivo que me propus a cumprir - com todas as limitações inerentes.

.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Lutas sociais, moralidade moderna e aceleracionismo capitalista


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O que está acontecendo? Ofensiva conservadora? A volta dos que nunca foram? O reinado da intolerância? Imbecilização do planeta? The winter is coming? Não tem como dar uma resposta fechada, mas dá pra tentar arriscar algumas míopes considerações.

Primeiro, cabe tentar definir em que tipo de sociedade estamos vivendo. Somos frutos de um processo histórico de modernização a partir da Europa. Isso consagrou a hegemonia da modernidade capitalista como forma de organizar a vida em sociedade. Dessa forma, vivemos diariamente lutas sociais intransparentes, travestidas de normalidade. É como se as coisas fossem naturalmente do jeito que são, e os conflitos fossem consequências de pessoas ruins que não querem se tornar boas pessoas.

Ora, as lutas sociais, ainda que opacas, seguem existindo, e vão além da nossa individualidade – apesar de perpassá-la por meio de disposições, esquemas de ação e percepção que nos orientam. São lutas sociais pelo acesso aos bens e recursos escassos, aos espaços de poder. São lutas sociais materiais, que se traduzem simbolicamente em lutas de classificação e desclassificação. Tais lutas passam despercebidas, por vezes, em função do arquétipo da moralidade moderna dominante, da forma como entendemos o que é o certo e o que é o errado.

A igualdade é vista como correta somente à medida que cria artifícios de regramentos para que cada um possa exercer a sua individualidade e recolher os méritos pelas suas conquistas. Mas, para isso, valoriza-se a autenticidade, a distinção que nos faz ser notados, a cereja do bolo de cada um. Em paralelo, cobra-se de todos o exercício da dignidade, desenhado na ética do trabalho produtivo, no pensamento prospectivo e no autocontrole, além de uma economia moral calculista (uma torpe adesão a uma torta razão instrumental). Daí temos a base da autoestima individual e do reconhecimento social.

Só que as lutas sociais pelos bens e recursos escassos não geraram, sobretudo na era da desregulamentação financeira, na era do Rei Mercado Livre, condições razoáveis de coexistência entre os diferentes grupos humanos. Classes sociais ainda existem, e ocupam lugares dessemelhantes no espaço social, desde os capitais que possuem. A posse e a capacidade de mobilização de diferentes capitais (“trunfos”/recursos econômicos, culturais, de redes de relacionamento ou prestígio) seguem extremamente desiguais, e a interseccionalidade das desigualdades joga mais gasolina nessa fogueira.

Num mundo com lutas sociais intransparentes, feito de acessos desiguais aos “objetos” dos desejos que nos conformam, com a valoração psicoemocional descrita acima, o desprezo pelo outro, por aquele que não venceu ou não incorporou ou desafia o “espírito” do capitalismo, acaba aparentando uma resposta plausível. Afinal, o outro que propõe uma coexistência mais harmônica, com oportunidades mais igualitárias ou outras formas de vivência na Terra, passa a ser interpretado como o responsável pelos desajustes da vida coletiva e pelas condições precárias em que vive a maioria. O jogo não é o problema; o problema são os desafiantes.

Talvez por isso, o sucesso dos bufões que apontam para as feministas, a comunidade LGBT, os movimentos sociais, as populações tradicionais, enfim, todos aqueles que desafiam a ordem em ruínas, esteja presente com tanta força no momento. Nesse contexto, há ainda outro ponto a se pensar. O “espírito” das relações sociais capitalistas da “sociedade da informação” pode estar em mutação. Se olharmos com atenção, os ditames do futuro-presente nos indicam uma espécie de "aceleracionismo capitalista". Quer dizer, não bastaria mais os pressupostos morais e as disposições ajustadas para as lutas sociais, a fim de concentrar capitais e reproduzir a vida em sociedade. A demanda parece ser a de acelerar ainda mais a corrida por recursos, poder e reconhecimento.

Como? Se as “tempestades de estímulos” que nos fulminam em dispositivos como smartphones e tablets dão o tom simbólico das classificações e desclassificações tipo minuto a minuto, as relações de trabalho “flexíveis” modulam um possível novo espírito do capitalismo, uma coisa na linha “trabalho 24/7”, isto é, 24 horas por dia e sete dias por semana. “Não pense, trabalhe!” vira o lema perfeito. Pensar, questionar, contestar, fortalecer contraculturas distintas, nada disso colabora com a aceleração capitalista, não colabora com o consumo desenfreado feito simulacro de uma felicidade vazia, na medida em que pressiona pela retirada das suas urgências tidas como naturais e nos coloca num compasso de reflexão e reconstrução de outras vivências e outras urgências, ultrapassando uma sociedade de mercado.

Finalmente, não dá pra saber ao certo o que vai acontecer. O poder institucional tende a ser ocupado, via democracia eleitoral, pelos representantes da radicalização liberal-conservadora, os apologistas da normalidade e da naturalidade do mundo. Liberal na retórica, pois elege a “liberdade” do indivíduo como ponta de lança, mas a aplica apenas à legitimação e reprodução da ordem vigente; conservadora porque atenta contra o outro-diferente, seja ele o maconheiro, o homossexual ou a mulher protagonista. É justamente por isso que as ocupações são importantes e interessantes, enquanto resistência: elas tentam forçar a interrupção de uma normalidade tão fictícia quanto nociva, e propõem a reflexão, a horizontalidade política e a valorização de outros mundos como perspectivas práticas.

.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Das eleições ao trabalho de base

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O saldo das eleições municipais já era esperado. Candidatos e partidos considerados de esquerda perdendo força, enquanto a direita se fortalece ainda mais no poder institucional. No que diz respeito à forma, tudo dentro das regras do jogo. É da democracia representativa a alternância no poder.

Quanto ao conteúdo, a falácia tecnocrática vitoriosa em São Paulo e a ascensão de um bispo evangélico licenciado a prefeitura do Rio de Janeiro preocupam bastante. Ambas as linhas da direita mantém relações com as forças mais autoritárias do país. Encontram ressonância nos aparatos de repressão do Estado (Judiciário e seus altos salários, Polícias e seu monopólio legal da violência física) e estão pouco abertas a dialogar. Se em São Paulo um magnata governará com a promessa de não fazer política, uma contradição em termos, no Rio voltará com tudo a mistura entre religião e instituições democráticas. Na verdade, algo que está aí faz tempo. Um desses dois caminhos – senão a mistura deles – pode ganhar força para governar o Brasil no médio prazo. 

Tecnocratas e evangélicos conquistaram os votos das classes populares. Estão "legitimados". Possuem simpatia de boa parte das classes abastadas. Certo que daí surgirão afoitas privatizações, mais benefícios para o andar de cima, repúdio a diversidade nos temas comportamentais e o uso da repressão como única forma de responder aos conflitos sociais.

Parece caber àqueles que priorizam o combate a desigualdade, a apologia da diversidade e a construção de uma sociedade mais justa repensar estratégias e ações, insistir a fundo no trabalho de base, na horizontalidade e na micropolítica. Penso que as ocupações são um baita exemplo prático de que a política precisa ir muito além da institucionalidade.

.

sábado, 15 de outubro de 2016

Professor, entre idas e vindas

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Entre idas e vindas, mais um dia dos professores. Quando chega essa hora, sempre me pego a pensar: por que fazer isso, por que trabalhar com a docência? Tá cada vez mais difícil responder. O contexto não ajuda. Fala quem ocupa, atualmente, a posição de professor universitário, um privilégio entre os professores brasileiros. Só que a real é que nós estamos sob fogo cruzado, com níveis de pressão, ansiedades e angústias, na média, muito altos. Uns mais, outros menos.

Todos pedem educação. Porém, muito pouco é feito. Somos cobrados e nos cobramos pelos mais diferentes lados, por distintos matizes ideológicos. De um lado, a cobrança para ser vanguarda política, entre os estudantes e a comunidade mais engajada. Do outro, a cobrança para censurar o nosso pensamento, em projetos de parlamentares que nitidamente estão longe do cotidiano das instituições educacionais. Há, ainda, uma gama variada de outras cobranças e pressões diárias. Por produção, por resultados, desde uma lógica mecanicista de “fabricação” de conhecimento e ensino, o gerenciamento de mercado na esfera educacional.

É claro que não são só espinhos. O professor oscila entre um "operário" e um "artista" das ideias. Se é verdade o “peso” da atividade docente, a ele deve ser acrescida a “leveza” da prática pedagógica, da interação, da troca com os estudantes, da circulação de pensamento e saberes. Nem sempre isso ocorre, de fato, mas nas situações em que a docência faz sentido, seu significado ainda me enche de vontade de seguir tentando mais um pouco. Na universidade federal, o professor tem condições de lecionar, com tempo para pesquisa científica, extensão e gestão, ganhando experiência em âmbitos diversos da educação formal. Nem todos os cursos pelo país têm as melhores condições estruturais, existem muitas dificuldades, mas as federais são, em geral, as melhores universidades.

Ao invés de pegar como modelo o professor da rede federal e aperfeiçoá-lo, pensando em qualificar ainda mais esses profissionais, pensando em estruturar toda a docência nacional em torno de uma carreira que ofereça tempo para estudos, preparação, acesso a atividades e bens culturais, além de um bom salário e boas condições de trabalho, o que temos para hoje é um cenário devastador. As tímidas - mas fundamentais - conquistas da última década estão ameaçadas. Não bastasse a grande maioria de péssimos salários e péssimas condições de trabalho, ganha relevo a galera da irracionalidade que late e morde, da negação da busca pelo saber e pelo conhecimento. Essa galera que grita “comunista!”, justifica a humilhação que sofrem muitos professores através de argumentos “técnicos” ou “econômicos” tirados das suas bolhas nas redes sociais, sem deixar de sugerir, no fundo, que se tratam de profissionais preguiçosos, privilegiados que têm direitos demais.

Tá tenso, mas a gente segue. Fazendo pouco, miúdo, mas fazendo. Ainda gosto de lecionar e de escrever. Permaneço disposto a seguir procurando na educação alternativas para a barbárie entre nós, e entre nós e o mundo. Procurando uma forma de estimular o pensamento, abrir-se a ele, fomentando o conhecimento e, na mesma toada, uma vida mais justa, digna, livre, solidária, integrada e com oportunidades para todos. Isso cada vez mais me parece envolver um outro tipo de escola, um outro tipo de universidade, um outro tipo de relação de aprendizagem. No limite, um outro tipo de sociedade – que não é esse do aceleracionismo capitalista, quiçá do neoliberalismo ou do self made man.

.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Que tipo de República?

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Em 2018, a Constituição Brasileira em vigor completará 30 anos. Rasgada, amassada, assassinada, tornada fisiológica na vida prática. O Brasil parece que vive correndo atrás do próprio rabo. No dia 15 de julho de 1985, o saudoso professor Florestan Fernandes escrevia, na sua coluna em um jornalão desses oligopolizados, a respeito de qual seria o tipo de República que sairia da nova Constituinte e da transição “lenta, gradual e segura” pregada pelos militares. Quase três décadas depois, não deixa de ser impressionante a atualidade das suas considerações. 

“Os fatos mais clamorosos voltam a exigir definições claras, na teoria e na prática. Os coveiros da Independência e da República, os que tornaram impraticável qualquer forma precária e rudimentar de convívio cívico e democrático dentro da Nação, e através da Nação, retomam a linguagem do egoísmo cego e a ação desenvolta da violência dos que ‘tudo podem’. (...) São fatos que nos obrigam a abrir os olhos. Há uma guerra civil permanente e aberta em nossa sociedade civil. E é uma guerra sem quartel. Os privilegiados não abrem mão de nenhuma partícula de seus privilégios e brandem, por qualquer coisa, as armas brancas da degola e suas bandeiras ‘sagradas’, que põem a propriedade e a iniciativa privada acima de sua religião, de sua pátria e de sua família. (...) Sob a sua ótica, o que não coincidir com a intocabilidade da ordem estabelecida e todas as suas iniquidades é ‘comunismo’ e precisa ser banido de nossa terra! (...) A República teria de ser uma república de senhores, uma oligarquia perfeita, movida por interesses particulares absolutos e pela ideia de que o único ‘bem comum’ válido emana do comensalismo agressivo, secretado por aqueles interesses particulares” [1].

O título da esquecida obra de Florestan, que condensa os seus textos no jornalão oligopolizado, às vésperas da Constituinte de 1988, faz lembrar o que diz o filósofo grego Aristóteles sobre a justiça. Se decisões sobre justiça devem ser precedidas pelo debate acerca do objetivo das instituições sociais e sobre as qualidades dignas de valorização e reconhecimento, a pergunta do grande sociólogo brasileiro persiste: “Que tipo de República?”.

Referência

[1] FERNANDES, Florestan. Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986. Páginas 75-76.

.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Max Weber, classes e situação de classe


As "classes" não são comunidades no sentido aqui adotado, mas representam apenas fundamentos possíveis (e freqüentes) de uma ação social. Falamos de uma "classe" quando 1) uma pluralidade de pessoas tem em comum um componente causal específico de suas oportunidades de vida, na medida em que 2) este componente está representado, exclusivamente, por interesses econômicos, de posse de bens e aquisitivos, e isto 3) em condições determinadas pelo mercado de bens ou de trabalho ("situação de classe"). É o fato econômico mais elementar que o modo como está distribuído o poder de disposição sobre a propriedade material, dentro de uma pluralidade de pessoas que se encontram e competem no mercado visando à troca, cria já por si mesmo oportunidades de vida específicas. Segundo a lei da utilidade marginal, exclui os não-possuidores da participação na concorrência quando se trata de bens de alto valor, em favor dos possuidores, e monopoliza para estes, de fato, a aquisição desses bens. Abarca, em circunstâncias de resto iguais, as oportunidades lucrativas na troca para todos aqueles que, abastecidos de bens, não dependem, sem mais, da troca e aumenta, pelo menos em geral, seu poder na luta de preços contra aqueles que, sem propriedade, não podem oferecer nada além de seus serviços em forma de trabalho ou de produtos do trabalho próprio e estão obrigados a vendê-los a qualquer preço, para garantir a mera existência. Monopoliza para os possuidores a possibilidade de transferir a propriedade da esfera do aproveitamento como "patrimônio" para a esfera do emprego como "capital" - isto é, a função de empresário e todas as oportunidades de participação direta ou indireta no lucro do capital. Tudo isso ocorre dentro da esfera de vigência das puras condições de mercado. A "propriedade" e a "falta de propriedade" são, portanto, as categorias fundamentais de todas as situações de classe, quer se efetivem na luta de preços, quer na luta de concorrência. Dentro destas últimas, as situações de classe diferenciam-se conforme a natureza da propriedade aproveitável para fins aquisitivos, por um lado, e dos serviços que podem ser oferecidos no mercado, por outro. A propriedade de edifícios habitacionais, a de oficinas, armazéns ou lojas, a de terras aproveitáveis para a agricultura e, dentro desta, a propriedade grande ou pequena (diferença quantitativa que eventualmente traz conseqüências qualitativas), a propriedade de minas, gado, pessoas (escravos), o poder de disposição sobre instrumentos de produção móveis e meios de aquisição de todas as espécies, sobretudo dinheiro ou objetos que, com facilidade específica, podem ser convertidos a cada momento em dinheiro, sobre produtos de trabalho próprio ou alheio, diferente segundo o grau em que o produto está pronto para o consumo, sobre monopólios de qualquer espécie - todos estes fatores variados diferenciam as situações de classe dos possuidores, do mesmo modo que o "sentido" que dão e podem dar ao aproveitamento de sua propriedade, sobretudo a propriedade que vale dinheiro, isto é, conforme pertençam, por exemplo, à classe dos rentistas ou à dos empresários. E do mesmo modo diferenciam-se consideravelmente entre si os agentes, sem haveres da oferta de serviços, conforme as diferenças entre estes serviços e também conforme o modo de convertê-los em ganhos, seja numa relação contínua com o mesmo comprador, seja caso por caso. Mas sempre vale para o conceito de classe que a oportunidade no mercado é o condicionador comum do destino dos indivíduos. Nesse sentido, a "situação de classe" significa, em última instância, a "situação no mercado". Constitui apenas uma fase preliminar da autêntica formação de "classes" aquele efeito da propriedade sem mais, puramente como tal, que, entre os povos criadores de gado, sujeita o não-possuidor, como escravo ou servo, ao poder do proprietário de gado. Mas, certamente, surge nesse caso, no empréstimo de gado e na crueza do direito de dívidas dessas comunidades, pela primeira vez, a mera "propriedade", como tal, como determinante do destino do indivíduo, em forte contraste com as comunidades agrárias baseadas no trabalho. A relação credor-devedor tornou-se um fundamento de "situações de classe" somente nas cidades, onde se desenvolveu um "mercado de crédito" - ainda que muito primitivo - com taxas de juros, que aumentavam de acordo com a necessidade, e com uma monopolização efetiva dos empréstimos por parte de uma plutocracia. Com isso, iniciam-se as "lutas de classes". Por outro lado, uma pluralidade de pessoas - cujo destino não está determinado pela oportunidade de uma valorização própria de bens ou trabalho no mercado, como, por exemplo, os escravos - não constitui, no sentido técnico, uma "classe" (mas um "estamento").

WEBER, Max. Economia e Sociedade: volume 2. São Paulo: Editora da UNB, 2004. Páginas 176-77.
.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Contrarreforma do Ensino Médio (2)


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Não houve erro do MEC. A retórica do Governo Federal tentou amenizar o desgaste que a contrarreforma do Ensino Médio trouxe no debate público. De fato, na Medida Provisória (ressalto novamente, instrumento autoritário do Executivo) não há exclusão de disciplinas [1]. Porém, a retirada da obrigatoriedade de Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física foi concretizada, com a saída da escrita que garantia, na LDB, a obrigatoriedade dessas matérias.

A prática da retórica é comum nos tempos atuais. Mentiras, boatos, retóricas, manipulações de argumentos: joga-se tudo isso nas redes sociais e a coisa pega fogo, mas a informação se perde. A contrarreforma do Ensino Médio segue nefasta pelos mesmos motivos que argumentei em outro texto. Tende a aprofundar desigualdades e fomentar ainda mais uma escola “rica” para as classes abastadas e uma escola “pobre” para as classes populares.

Além disso, e esse é um dos pontos mais preocupantes, na contramão de tudo que se tem debatido, pesquisado e procurado tornar realidade no âmbito educacional, o aperfeiçoamento pedagógico e didático perderá espaço. A partir da contrarreforma, “profissionais com notório saber” poderão exercer a docência sem cursos de licenciatura. Essa é uma pancada em cheio na formação de professores de qualidade. Se é verdade que as licenciaturas têm que melhorar, e melhorar muito, sem formação específica para a docência a situação fica ainda mais dramática.

Vamos juntar as peças do quebra-cabeça. Primeiro, o governo quer retirar a vinculação constitucional do orçamento da União para com saúde e educação (na prática, menos investimentos nessas áreas) [2]. Depois, coloca nos altos escalões dos Conselhos de Educação diversas pessoas ligadas a entidades empresariais [3]. Dia após dia, com o apoio nojento dos meios de comunicação oligopolizados, ganha força a ideia de que a gestão da educação pública deve passar para as mãos de Organizações Sociais, ou seja, a terceirização da gestão do ensino público (uma privatização branda) [4]. Bancos e conglomerados empresariais enxergam aí uma mina de ouro.

Ato contínuo, muda-se o currículo, retira-se a obrigatoriedade de algumas disciplinas consideradas subversivas ou desnecessárias – afinal, “não pense, trabalhe!”. Autoriza-se que qualquer um com “notório saber” vire professor, critério que será definido pelos sistemas de ensino (burocratas, políticos, conselheiros indicados e afins), fazendo com que apadrinhados ou pessoas alinhadas ideologicamente com o governo de ocasião possam ocupar as fileiras docentes. Não há ponto sem nó nesta contrarreforma.

Referências

[1] http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp…
[2] http://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o-assunto/dru
[3] http://agenciabrasil.ebc.com.br/…/apos-revogar-escolhas-de-…
[4] http://acervo.novaescola.org.br/…/radiografia-oss-goias-938…

.

Contrarreforma do Ensino Médio (1)


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Enquanto uns agradecem a chegada da primavera, outros poucos passeiam pelo mundo e o bate-boca da “polarização” política segue alienante, o “novo-velho” Governo Federal anuncia uma Reforma do Ensino Médio. No canetaço, por meio de Medida Provisória, instrumento de imposição autoritária dos interesses do Executivo. Vai por água abaixo a obrigatoriedade das disciplinas de Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física na etapa final da escolarização básica.

A partir da genialidade (só que não!) do Ministro e sua equipe, tudo indica que teremos um Ensino Médio ainda mais fragmentado e fomentador de desigualdades. Desde cedo, os estudantes poderão “escolher” suas trajetórias futuras, seja buscando a universidade ou direto para o mercado de trabalho. Esquece-se que essas escolhas não são livres de constrangimentos. Essas escolhas se dão, em grande parte das vezes, de modo pragmático entre as classes populares. Engraçado é que estes “gênios da educação” são alinhados com aquelas propostas censuradoras, que consideram os estudantes como presas fáceis para a doutrinação ideológica. Eles podem escolher o futuro, têm autonomia para isso desde cedo, mas são facilmente doutrinados?

Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física? Qual a razão de uma escola que promova o conhecimento de teorias, temas e conceitos fundamentais na história do pensamento moderno, que promova a compreensão do sentido da política, do poder, da racionalidade, da argumentação, dos fatos sociais e etc.? Qual a razão de uma escola que promova o conhecimento de práticas corporais, dos benefícios dos diferentes esportes? Qual a razão de uma escola que promova a criatividade, o desenvolvimento estético e artístico? Qual a razão de tudo isso, se nossos representantes (opa, não são, porque não foram eleitos! Isso é uma democracia? Pergunte à Filosofia e à Sociologia…) estão focados em alimentar o mercado de trabalho e apenas isso?

Como pano de fundo, não esqueçamos, encontra-se a desvinculação das receitas da União com saúde e educação, desobrigando o Governo Federal de suas obrigações constitucionais nessas áreas. Direto e reto: vai ter menos dinheiro. Com o suporte de bancos e organizações privadas, interessadíssimas na privatização do ensino público e em transformar educação em mercadoria de uma vez por todas, joga-se para debaixo do tapete as incontáveis discussões e os profundos conhecimentos produzidos por profissionais que dedicaram e dedicam suas vidas para a educação – estudando e praticando. Esses não sabem nada, são ideológicos nas suas pesquisas, como pensam os “gênios” com a caneta na mão. Bancos e empresas privadas ditando os rumos educacionais são neutros e imparciais? São desinteressados?

Vamos mergulhando num pântano de dar asco. A gente vai resistir, é óbvio. Vou seguir produzindo pesquisa sociológica e tentando demonstrar que o que faz um sistema educacional dar errado vai muito além do seu currículo. Vou insistir até o limite das minhas possibilidades. Mesmo profundamente decepcionado, não vou jogar a toalha. Muitos e muitos outros e outras também não vão. Quem vive a educação, quem não sabe fazer outra coisa senão trabalhar com educação, vai seguir lutando por uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade. A roda da História gira sem parar. Apesar deles, amanhã vai ser outro dia. Não podemos desistir.

.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Interregno

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Dias difíceis. Incertezas predominam. A tensão se alastra de vez. Na cafeteria, nem o café desce redondo. Ao meu lado, uma mesa repleta de homens. Velhos, brancos, bem alimentados, ostentando anéis dourados, sapatos lustrados e sorrisos marotos. Observo. Eles gritam em êxtase:

- Agora vai. Chega de vagabundo ou pobretão no poder. Bando de safado corrupto, tudo comunista. Tem mais é que apanhar na rua mesmo, principalmente as putinhas que ficam gritando “golpe”. Piranhas, isso é falta de rola!

Respiro fundo. Nas ruas, o pau tá comendo. A violência urbana cresce. Protestos também. O policiamento não dá conta da violência urbana. Dá conta, e com muita força, de reprimir protestos de esquerda. Nos domingos de verde e amarelo, só selfie e sorrisos, mesmo se os “de bem”, trajados de CBF, agredirem um ciclista de bike vermelha ou um gaiato qualquer usando barba ou vestindo a cor do capeta.

Nos meios de comunicação oligopolizados, a pauta é clara. Criminalizar os movimentos e o pensamento de esquerda. Atribuir à esquerda o fracasso da civilização ocidental capitalista. Atribuir à esquerda todos os males do mundo. E, por óbvio, fomentar a repressão. A roda do autoritarismo gira à brasileira. Pega o medo, o desespero, o caos, e bota nas costas da Polícia uma tarefa que não é dela: organizar a vida social e fazer política prática anti-esquerda.

Uma parte considerável da juventude simplesmente não cai mais nessa. A conta não fecha. O Brasil é extremamente injusto e desigual. Sim, o mérito e o talento devem ser recompensados. Mas não há mérito e talento que alcancem um lugar ao Sol sem equidade de oportunidades. Não há mérito e talento que se destaquem sem que haja isonomia nas relações políticas e nas oportunidades de acesso aos bens e recursos escassos. As exceções confirmam as regras. Para muitos, está claro que a conta não fecha. Vidas das periferias vão e vêm em condições subumanas, passando em branco na sua existência, acumulando ódios e mais ódios porque os desejos que se vende a todos quase nunca se tornam a sua realidade.

Na rodoviária, observo o pessoal da limpeza, os vigias, os atendentes das lojas, os cozinheiros, os garçons, os motoristas de ônibus, os vendedores de passagens. Dialogamos sobre o mundo. Ninguém desconhece o que acontece no país. Todos sabem que a política está em frangalhos. Mais uma vez, a conta não fecha. Quem me vende o prensado e o café de todas as semanas é taxativo:

- Isso tudo em Brasília... Professor, o senhor sabe, isso é briga deles. Nós, que saímos às cinco da manhã de casa e voltamos às onze da noite, ano após ano, vamos continuar nos fodendo. Política é isso aí, eles roubam e fodem o povo.

Escuto. Sinto. Preocupo-me em duas frentes. Primeiro, com o projeto de governo que vem aí, e que não venceu eleições. Chegou ao poder através de um rito aparentemente legal, mas com conteúdo muito discutível - para dizer o mínimo. Um projeto de desmonte dos direitos trabalhistas, de repressão e autoritarismo, de congelamento nos investimentos em saúde e educação, de privatizações a todo custo e onde quer que seja. Um projeto de poder que, tudo indica, não vai largar o osso com rapidez. Um projeto que de democrático só tem a propaganda de si próprio.

No fundo, preocupa mais ainda o que aprendi com as lições do professor Luiz Eduardo Soares, ainda nos protestos de 2013: se trocamos uma crítica política da situação que vivemos, por uma crítica generalizada à política em si, o abismo chega cada vez mais perto. Aqueles que observam “bestializados”, conforme expressão do professor José Murilo de Carvalho, às oligarquias que se engalfinham pelo poder institucional, cada vez mais parecem desacreditar a política enquanto negociação e organização da vida coletiva. Aí mora o risco de adesão total e irrestrita a messiânicos autoritários e pretensamente apolíticos.

.

sábado, 20 de agosto de 2016

Em defesa da educação pública

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Tive um pesadelo numa noite qualquer. Paralisado, olhava para os lados e não acreditava no que via. As pessoas se divertiam vendo jogos na televisão ou caçando bonequinhos no seu telefone, e isso até me deixava aliviado, no início. Diversão e lazer é importante, afinal. Porém, segundos depois, eu procurava o meu emprego e não mais encontrava. Logo, outros colegas e alguns estudantes estavam por perto e também pareciam nervosos. Todos procuravam as suas escolas e universidades públicas. Ninguém achava. 

No desespero, parei para pensar. Aquilo não poderia ser possível. Todos os dados e pesquisas que demonstravam a maior qualidade das universidades e escolas federais, na comparação com as privadas, não adiantaram para evitar que elas desaparecessem do mapa. Nem o fato de que na última década as escolas e universidades federais, sempre mais bem classificadas nos rankings de avaliação da educação formal, atenderam em grande parte das suas vagas estudantes das classes populares, nem isso tinha adiantado para manter as instituições públicas em funcionamento.

Que pesadelo cruel. Aos poucos, os governos foram minguando os recursos e sucateando as instituições. Não tiveram vontade política para aplicar a fórmula de sucesso das redes federais nas redes estaduais e municipais. A população, vidrada nos seus smartphones e televisores tela-plana, seguia inerte, mesmo que abandonasse de vez o sonho de estudar em escolas e universidades de qualidade e gratuitas. Alguns se matavam por meia dúzia de bolsas em instituições particulares, cada vez mais suntuosas e milionárias. Poucos conseguiam. Era tudo muito apavorante. Educação tinha se tornado, de uma vez por todas, apenas uma mercadoria.

Precisava acordar desse pesadelo. Mas não conseguia. Em vez de priorizar investimentos com o dinheiro de todos para a educação, esse dinheiro ia sei lá para onde. Precisava acordar daquela tragédia em forma de sonho. No meio de uma gritaria, acho que um protesto, acabei acordando. Ufa, que alívio. Lavei o rosto, tomei um café e fui me informar sobre os últimos acontecimentos. Minha espinha gelou. Era mesmo um pesadelo tudo aquilo? Já nem sabia mais.

.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Desigualdades e educação formal


Fala da Professora Ana Rita Kraemer da Fonseca, no Instituto Federal Farroupilha, campus Panambi

Na manhã do dia 16 de agosto de 2016, estive no Instituto Federal Farroupilha, campus Panambi, para participar do evento ComViver 2016 - Das possibilidades de viver a alteridade. O evento, pensado para estimular os debates e reflexões sobre desigualdade, diversidade e inclusão, reuniu os servidores do campus, além de contar com diversas atividades. Numa delas, apresentei a palestra "Desigualdades e instituições educacionais no século XXI", refletindo sobre as relações entre as variadas dimensões das desigualdades encontradas no nosso tempo e a educação formal. Retornar ao IF Farroupilha, no qual vivi pouco mais de seis meses muito importantes para a minha trajetória profissional, foi uma honra e uma imensa alegria. A minha fala pode ser acessada no link abaixo.


.

sábado, 23 de julho de 2016

Entre o peso, a leveza e o equilíbrio


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

“Há algo de podre no Reino da Dinamarca”, diz a sentinela enquanto Hamlet encontra o fantasma de seu falecido pai. “Há algo de podre na sociedade brasileira”, eu penso enquanto um raio de Sol me abraça em pleno inverno e as páginas de William Shakespeare fazem meu coração disparar. Assim é a literatura. Afeta os nossos horizontes e nos faz abrir a caixa de ferramentas da imaginação (e da crítica social, talvez?).

Alguns dos livros que andei lendo, neste semestre, fomentaram reflexões sobre o momento conturbado do Brasil. “Submissão”, do francês Michel Houellebecq, cutucou meus pensamentos já em janeiro. Fez-me refletir sobre todas as pequenas submissões às quais nós vamos cedendo no cotidiano. Coisas que parecem pequenas, como achar normal trabalhar um milhão de horas semanais e quase não ter vida, achar normal opressões e desigualdades, ou mesmo, como no livro, ir passo a passo se submetendo a uma “cultura alheia” que vai se impondo e dominando as nossas vidas.

Depois, foi a vez de me deparar com a formação religiosa extremamente endurecida, marcante nas personagens de Chimamanda Adichie, em “Hibisco Roxo”. A ânsia de mergulhar na vastidão deste mundo e na sua veia dionisíaca enfrenta o universo de experiências deixadas para trás por uma moral conservadora até o talo. A sanha religiosa do “chefe de família” narrado pela nigeriana contrasta com as práticas de violência física punitiva a qualquer ato "diferente" dos filhos e com diversas contradições entre o que as pessoas são e o que uma doutrina religiosa totalizadora acredita que as pessoas deveriam ser. A cara do Brasil e dos asseclas fundamentalistas, alguém diria.

“Casei com um comunista”, do estadunidense Philip Roth, mostra bem o teor da velha perseguição ao outro político, à ideologia rival transformada em inimigo interno. Demonstra uma senil caçada institucional ao comunismo, muito atual no cenário brasileiro contemporâneo – por incrível que isso possa parecer. Ora, vamos nos submetendo cotidianamente a uma vida estranha e desumana, em que a “vida em si” fica em segundo plano; vamos convivendo e sendo afetados por fundamentalismos variados, sobretudo religiosos, que não se sustentam no confronto entre doutrina e prática, mas fazem grandes estragos na dinâmica social; e vamos, também, observando cada vez mais qualquer coisa que não seja a “tradição do homem de bem e suas propriedades” ser colocada na prateleira da monstruosidade comunista. Ira Ringold, personagem de Roth, hora dessas pode aparecer, com outra roupagem, numa condução coercitiva sob os holofotes das grandes empresas de comunicação.

O texto que me desestabilizou mais, “Os Mandarins”, de Simone de Beauvoir, é uma autêntica “pedrada existencialista”. Um grupo de intelectuais de grande porte se debate na França do pós-Segunda Guerra sobre o seu papel nos rumos políticos do planeta. Como os antigos funcionários públicos chineses, a impressão inconsciente é que os habitantes do “mundo do conhecimento” vão perdendo, dia após dia, o seu lugar de influência nas arenas políticas e, portanto, na definição do futuro da vida em sociedade. A angústia e a melancolia de pessoas que tem muito a dizer, e poucos que as escutem, prenunciam uma era dominada por uma racionalidade instrumental, ao mesmo tempo em que feita de chavões e apelos publicitários. Hoje, os memes, as aparentes verdades simplificadoras e a violência como resposta primeira tendem a reinar onde o conhecimento é mais do que desvalorizado.

Por fim, Milan Kundera resume o meu sentimento nesse semestre que termina. “A insustentável leveza do ser” me jogou, de cabeça, no conflito entre o peso e a leveza no arrastar do tempo que vai passando, como numa espiral entre o velho e o novo, conquistas e atrasos. O evidente peso do contexto político nacional, de usurpação do poder e acirramento da barbárie, de ataques reiterados a direitos constitucionais e liberdades individuais, interage sem parar com a leveza dos avanços micropolíticos de igualdade e solidariedade que, sim, renovam-se por toda a parte. Mas, atenção, Kundera nos desperta: pode o peso se fazer leve, por vezes, e a leveza pesar tanto quanto o peso. Acho que a gente segue tentando descobrir onde vive o equilíbrio.

.

sábado, 2 de julho de 2016

Democracia em debate

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Uma vez, um estudante me perguntou: o que é democracia? Essa pergunta dá o que falar. Diante da situação política no Brasil, tenho tentado pensar a partir de três pontos sobre isso. Primeiro, como as pessoas avaliam a democracia, entre a população em geral. Depois, o que a teoria política diz acerca da democracia e pode ser considerado um consenso mínimo, olhando para o século XXI. Por fim, quem são os apoiadores e os inimigos de governos democráticos e qual o futuro da democracia.

Há variadas pesquisas sobre a percepção e avaliação da democracia em todo o mundo. A ONG Latinobarómetro publica dados anuais sobre diversas temáticas, frutos de investigações em diversos países. Os dados sobre a democracia, no Brasil, não são, digamos, muito entusiasmantes. Em 2015, pouco mais da metade dos brasileiros defenderiam a democracia sempre, independente das circunstâncias. Existe, portanto, uma boa parcela da sociedade que não teme regimes autoritários, seja num contexto especial ou em qualquer situação. Além disso, é possível perceber uma espécie de polarização entre acreditar em líderes salvacionistas autoritários e acreditar na participação das pessoas organizadas como forma de solucionar os problemas da vida coletiva. De fato, a democracia de hoje não parece dar conta daquilo que as pessoas acreditam ser preciso para melhorar as suas vidas.

Do ponto de vista da teoria política, uma premissa democrática é que o poder emana do povo. Além disso, costuma-se falar em eleições regulares, livres e competitivas, voto secreto, sufrágio universal, competição partidária, acesso e reconhecimento de associações e grupos de interesse e prestação de contas dos representantes aos eleitores. Robert Dahl, célebre cientista político estadunidense, categorizou uma forma de avaliar o quão democráticos são os governos, com a noção de poliarquia. Quanto maior for a inclusão da população nos processos políticos e mais ampla e competitiva for a busca pelo poder político, mais democrática é a sociedade. Essa visão se apoia nas ideias do austríaco Joseph Schumpeter, também cientista político, desde uma noção procedimental de democracia, em que a manutenção de um desenho institucional que delimita as regras para a participação nos processos políticos, para as escolhas dos governantes e quais as formas de disputar o poder político caracteriza a possibilidade de definir uma democracia.

Penso na democracia como algo mais ousado. Talvez pense na democracia enquanto uma utopia, por fazer, que ajuda a caminhar e que, no caminhar, vai sendo feita. Penso na democracia como igualdade/equidade de condições para exercer a liberdade de negociar o poder e os rumos da vida em sociedade. No capitalismo, as relações desiguais entre as classes sociais e o acesso aos bens e recursos escassos envolvem negociações e exercício de poder. Em sociedades patriarcais, as relações entre homens e mulheres, desiguais, envolvem exercício e negociação de poder. Em sociedades colonizadas, marcadamente escravocratas, as relações desiguais entre populações tradicionais, negros e minorias étnicas com os descendentes de europeus, envolvem poder, conflitos e negociações. Há equidade nas condições para o exercício do poder, na vida cotidiana, no dia a dia do Brasil profundo? Há equidade de oportunidades para acesso aos bens e recursos escassos? A resposta negativa é uma obviedade.

Jacques Rancière, filósofo francês, diz que o ódio à democracia existe e sempre existiu entre aqueles que não querem ver o outro como um igual em possibilidades políticas. O que chama de Estado Oligárquico de Direito dá o tom da organização política que institucionaliza esse ódio na atualidade. Os oligarcas mandam, acham que representam. O povo obedece, finge que escolhe, e vai passando a fingir que obedece. A geração de jovens que ocupa escolas, ocupa as ruas, ocupa a vida com o amanhã feito agora, no presente, ousa sedimentar uma democracia de escolhas práticas, reais e diretas, que se auto-organiza e não parece se conectar com facilidade aos ditames oligárquicos. Nessa gurizada eu boto fé. Talvez esteja aí o futuro da democracia.

,