ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

segunda-feira, 26 de março de 2018

Classe social influencia o desempenho escolar no Brasil? (Parte 1)

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor


Quais são os principais aspectos que afetam o sucesso ou o fracasso dos nossos estudantes na escola básica? A classe social em que eles se localizam importa para o seu desempenho educacional? Ter mais ou menos recursos econômicos e culturais produz efeitos nos rendimentos acadêmicos? Essas perguntas são a base da minha tese de doutorado. Pouco a pouco, quero divulgar alguns dos meus principais resultados, em pequenos textos, para tentar ajudar na compreensão da realidade educacional do nosso país¹.

Os resultados da pesquisa mostram que classe afeta desempenho escolar. Se pensarmos o espaço social como um espaço geométrico, os estudantes das classes sociais privilegiadas se localizam próximos das escolas de maior qualidade e das notas mais altas. São, em geral, pessoas de pele branca, que não precisam trabalhar/estagiar durante o período escolar, e possuem computador numa residência ampla. Nunca foram reprovados ou abandonaram a escola, e são incentivados em casa a estudar. Vimos que, também, conforme os alunos vão avançando na seriação escolar, encontramos uma verdadeira peneira de classe. Se os resultados em matemática e português vão melhorando conforme as transições realizadas pelos jovens (no 5º ano são piores do que no 9º do fundamental, e ambos piores do que no 3º ano do médio), vai “sobrando” na escola uma maioria de estudantes das classes mais altas.

Vejamos alguns números que expressam esses efeitos. Na “classe A”, em que se posicionam os alunos com maiores recursos econômicos na família, 29,1% tiraram notas altas em português e 29,6% em matemática. Na “classe D/E”, esse montante é de apenas 8,6% e 7,6%. Se observarmos as notas insatisfatórias, o cenário segue demonstrando a desigualdade de classe. Entre os mais privilegiados, 10,6% obtiveram notas muito baixas e 26,6% baixas em língua portuguesa (totalizando 37,2% de notas ruins), além de 9% e 25,4% (35,3% no total) em matemática. Entre os alunos mais pobres, o quadro é ainda mais assustador. Em língua portuguesa, 27,4% têm notas muito baixas e 38,3% notas baixas. Temos 65,7% dos estudantes com notas ruins em português. Já em matemática, são 27,1% e 40,2%, somando 67,3% dos discentes.

Fica claro que há um conjunto grande de estudantes com proficiências insatisfatórias nas duas pontas da hierarquia de classes, mas o abismo entre as classes se mostra um fator relevante nos resultados educacionais dos nossos jovens. Há ainda muitas outras evidências importantes, como as comparações entre as médias das diferentes classes e os efeitos diretos das diferentes variáveis na pontuação dos alunos, sem esquecer as nuances regionais. A produção de uma grande quantidade de evidências empíricas me parece o ponto alto da minha tese.  Em outros textos pretendo explorá-las. Quem sabe, assim, conseguimos olhar com mais atenção para nossos problemas educacionais.

¹ Não vou me ater aqui aos aspectos teóricos e metodológicos da tese. Cabe dizer que os dados incluem notas em matemática e português de uma amostra de 269 mil alunos brasileiros, do 5º e do 9º ano do ensino fundamental, assim como do 3º ano do ensino médio. Os dados são de 2013 e contemplam todas as redes de ensino (privadas e públicas) e todas as regiões brasileiras. Informações completas sobre a base de dados, o desenho da pesquisa, o referencial teórico, as técnicas estatísticas e a totalidade dos resultados empíricos podem ser acessadas em http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/172397.

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segunda-feira, 5 de março de 2018

Entre Hobbes e Thoreau

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Retomando as atividades profissionais, depois de um detox imprescindível, mais conhecido como “férias”, não dá pra esquecer a situação desse Brasil de minhas Deusas. Daí que lembrei um TCC interessantíssimo que orientei há pouco tempo. A estudante, hoje licenciada em Filosofia, articulou a teoria contratualista de Thomas Hobbes com a desobediência civil pregada por Henry Thoreau.

Ao apresentar a fórmula da necessidade do Estado para Hobbes, ela mostrou que o medo e a insegurança extrema podem levar as pessoas a aderir ao absolutismo, delegando todos os poderes ao “soberano”. Só que, para isso, o “todo-poderoso” precisa garantir, de fato, a segurança dos indivíduos e suas propriedades. Se essa “troca” não se concretiza por parte do “soberano”, os “súditos” teriam alguma brecha para contestar o “contrato”.

Aí poderia entrar a desobediência civil proposta por Thoreau. Quase como um pressuposto moral do indivíduo, que não aceitaria apenas ceder a sua liberdade para um governo com plenos poderes, sem que fosse garantida, na prática, a contrapartida da segurança, desobedecer caracterizaria um ato de resistência legítima.

Duas matrizes de questões se sobrepõem: em primeiro lugar, mesmo que uma maioria esmagadora da sociedade brasileira estivesse disposta a ceder o que resta da sua liberdade em troca de segurança pessoal, está mesmo o Estado apto a cumprir a promessa? Suas instituições, que deveriam promover o mínimo de bem-estar, estão presentes com qualidade nas áreas mais vulneráveis do país? Estão trabalhando para ajudar a diminuir o abismo social que perdura há séculos por aqui? Suas forças de repressão oferecem segurança?

Depois, quais as estratégias válidas e eficazes de desobediência civil num contexto de concentração acentuada de riquezas, no qual borbulham fanatismos e autoritarismos? Poderíamos pensar a desobediência a partir do trabalho de base contra opressões e desigualdades, das práticas de economia colaborativa dispersas em ações de micropolítica ou mesmo da busca por consolidar uma espécie de “gestão comum” (compartilhada, horizontal, cooperativa) de determinados bens prioritários para o planeta e a espécie humana?

A primeira matriz de indagações parece ter respostas óbvias. Já a segunda pode indicar um caminho reflexivo para a proposição de uma nova utopia política, com a cara do século XXI, contra e para além da mercantilização de todos os aspectos da vida, e radicalmente democrática no respeito à diversidade e na horizontalidade das decisões que afetam a vida de todos nós. Uma tarefa e tanto.

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