ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Dos escombros

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Tragédias têm o potencial de despertar sentimentos. Solidariedade, consternação e empatia são bons exemplos. Ocorre que na "sociedade do espetáculo", no espírito acelerado dos dias atuais, isso passa muito rápido. Tão rápido que, por vezes, os sentimentos de comunhão e construção nem saem de um estado embrionário.

Vai vendo... Tragédias poderiam nos lembrar que o serviço público atende aos mais necessitados, e que, portanto, não podemos arbitrariamente congelar o orçamento da União por duas décadas e não faz sentido algum culpar os servidores pelas mazelas do país; poderiam nos lembrar que a corrupção deve ser combatida e que o Parlamento serve para negociar os diferentes interesses dos diferentes grupos sociais, não para legislar em causa própria; que a Justiça deve fazer justiça, não vingança, e que um Estado com um Judiciário intocável e superpoderoso arrebenta com a democracia e os direitos individuais. 

Horas depois da tragédia, a vida parece seguir o curso do ódio e da capacidade de fazer daquilo que a tragédia poderia despertar (empatia e solidariedade) apenas mais um suspiro de utopia num horizonte distópico. Seja com o dirigente de futebol falando merda, com parte de torcidas ironizando a morte do ídolo rival (salve Fernandão!), com o político que tira o seu da reta, o magistrado que ameaça ou o simples internauta que queria ver o petista ou o tucano dentro de um avião em pedaços.

No entanto, ainda assim, o suspiro da utopia, que a tragédia pode fazer atravessar as nossas sombras, ajuda a lembrar que nem tudo tá perdido. Dos escombros algo distinto pode ganhar vida. O que vai emergir desse Brasil em convulsão parece estar em aberto. Só não dá pra ser uma besta ainda mais autoritária e desigual.

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quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Artigo: Capital cultural e desempenho escolar no Brasil a partir do Saeb 2003

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

http://www.hrpub.org/journals/article_info.php?aid=5261

Venho argumentando faz algum tempo que uma parte importante dos problemas da educação passa pela socialização dos jovens fora da escola. É um pouco do que está presente no artigo em anexo (clique na imagem acima para acessar), que publiquei esse mês, no Universal Journal of Educational Research. Como está em inglês e, em geral, trabalhos científicos são lidos por poucas pessoas, abaixo faço um breve resumo do estudo e dos argumentos.

O artigo é decorrência da minha dissertação de Mestrado Acadêmico. A discussão gira em torno dos recursos culturais acessados pelos estudantes e o impacto deles no desempenho escolar. Trabalhei com uma base de dados acerca de estudantes do 3º ano do Ensino Médio, em todo o Brasil, no ano de 2003. Através do uso da estatística, foi possível mensurar a influência de diferentes elementos no desempenho acadêmico dos educandos brasileiros. 

Em suma, cabe dizer que os jovens que tendem a conseguir altos rendimentos escolares têm acesso a bens culturais como livros, possuem hábitos culturais como a frequência ao cinema e uma família com escolaridade elevada. Eles se situam numa classe social em que não precisam trabalhar enquanto estudam e têm acesso a bens duráveis relativamente escassos. Ter a cor da pele branca ou estudar em escolas particulares ou federais remete a outros aspectos que possuem impacto relevante nas notas.

Alguém pode perguntar: e todos os aspectos pedagógicos, escolares, emocionais e etc., não são levados em consideração? E tudo aquilo que a estatística não dá conta? As avaliações educacionais em larga escala não são problemáticas? Sem dúvidas, essas são questões muito importantes. Ocorre que, num trabalho de pesquisa sociológica, é preciso “recortar” a realidade e analisar alguns pontos dela. A abordagem quantitativa não dá conta das relações no nível das motivações e subjetividades. Ela nos ajuda a entender regularidades e tendências. Nesse caso, foi o objetivo que me propus a cumprir - com todas as limitações inerentes.

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quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Lutas sociais, moralidade moderna e aceleracionismo capitalista


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O que está acontecendo? Ofensiva conservadora? A volta dos que nunca foram? O reinado da intolerância? Imbecilização do planeta? The winter is coming? Não tem como dar uma resposta fechada, mas dá pra tentar arriscar algumas míopes considerações.

Primeiro, cabe tentar definir em que tipo de sociedade estamos vivendo. Somos frutos de um processo histórico de modernização a partir da Europa. Isso consagrou a hegemonia da modernidade capitalista como forma de organizar a vida em sociedade. Dessa forma, vivemos diariamente lutas sociais intransparentes, travestidas de normalidade. É como se as coisas fossem naturalmente do jeito que são, e os conflitos fossem consequências de pessoas ruins que não querem se tornar boas pessoas.

Ora, as lutas sociais, ainda que opacas, seguem existindo, e vão além da nossa individualidade – apesar de perpassá-la por meio de disposições, esquemas de ação e percepção que nos orientam. São lutas sociais pelo acesso aos bens e recursos escassos, aos espaços de poder. São lutas sociais materiais, que se traduzem simbolicamente em lutas de classificação e desclassificação. Tais lutas passam despercebidas, por vezes, em função do arquétipo da moralidade moderna dominante, da forma como entendemos o que é o certo e o que é o errado.

A igualdade é vista como correta somente à medida que cria artifícios de regramentos para que cada um possa exercer a sua individualidade e recolher os méritos pelas suas conquistas. Mas, para isso, valoriza-se a autenticidade, a distinção que nos faz ser notados, a cereja do bolo de cada um. Em paralelo, cobra-se de todos o exercício da dignidade, desenhado na ética do trabalho produtivo, no pensamento prospectivo e no autocontrole, além de uma economia moral calculista (uma torpe adesão a uma torta razão instrumental). Daí temos a base da autoestima individual e do reconhecimento social.

Só que as lutas sociais pelos bens e recursos escassos não geraram, sobretudo na era da desregulamentação financeira, na era do Rei Mercado Livre, condições razoáveis de coexistência entre os diferentes grupos humanos. Classes sociais ainda existem, e ocupam lugares dessemelhantes no espaço social, desde os capitais que possuem. A posse e a capacidade de mobilização de diferentes capitais (“trunfos”/recursos econômicos, culturais, de redes de relacionamento ou prestígio) seguem extremamente desiguais, e a interseccionalidade das desigualdades joga mais gasolina nessa fogueira.

Num mundo com lutas sociais intransparentes, feito de acessos desiguais aos “objetos” dos desejos que nos conformam, com a valoração psicoemocional descrita acima, o desprezo pelo outro, por aquele que não venceu ou não incorporou ou desafia o “espírito” do capitalismo, acaba aparentando uma resposta plausível. Afinal, o outro que propõe uma coexistência mais harmônica, com oportunidades mais igualitárias ou outras formas de vivência na Terra, passa a ser interpretado como o responsável pelos desajustes da vida coletiva e pelas condições precárias em que vive a maioria. O jogo não é o problema; o problema são os desafiantes.

Talvez por isso, o sucesso dos bufões que apontam para as feministas, a comunidade LGBT, os movimentos sociais, as populações tradicionais, enfim, todos aqueles que desafiam a ordem em ruínas, esteja presente com tanta força no momento. Nesse contexto, há ainda outro ponto a se pensar. O “espírito” das relações sociais capitalistas da “sociedade da informação” pode estar em mutação. Se olharmos com atenção, os ditames do futuro-presente nos indicam uma espécie de "aceleracionismo capitalista". Quer dizer, não bastaria mais os pressupostos morais e as disposições ajustadas para as lutas sociais, a fim de concentrar capitais e reproduzir a vida em sociedade. A demanda parece ser a de acelerar ainda mais a corrida por recursos, poder e reconhecimento.

Como? Se as “tempestades de estímulos” que nos fulminam em dispositivos como smartphones e tablets dão o tom simbólico das classificações e desclassificações tipo minuto a minuto, as relações de trabalho “flexíveis” modulam um possível novo espírito do capitalismo, uma coisa na linha “trabalho 24/7”, isto é, 24 horas por dia e sete dias por semana. “Não pense, trabalhe!” vira o lema perfeito. Pensar, questionar, contestar, fortalecer contraculturas distintas, nada disso colabora com a aceleração capitalista, não colabora com o consumo desenfreado feito simulacro de uma felicidade vazia, na medida em que pressiona pela retirada das suas urgências tidas como naturais e nos coloca num compasso de reflexão e reconstrução de outras vivências e outras urgências, ultrapassando uma sociedade de mercado.

Finalmente, não dá pra saber ao certo o que vai acontecer. O poder institucional tende a ser ocupado, via democracia eleitoral, pelos representantes da radicalização liberal-conservadora, os apologistas da normalidade e da naturalidade do mundo. Liberal na retórica, pois elege a “liberdade” do indivíduo como ponta de lança, mas a aplica apenas à legitimação e reprodução da ordem vigente; conservadora porque atenta contra o outro-diferente, seja ele o maconheiro, o homossexual ou a mulher protagonista. É justamente por isso que as ocupações são importantes e interessantes, enquanto resistência: elas tentam forçar a interrupção de uma normalidade tão fictícia quanto nociva, e propõem a reflexão, a horizontalidade política e a valorização de outros mundos como perspectivas práticas.

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terça-feira, 1 de novembro de 2016

Das eleições ao trabalho de base

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O saldo das eleições municipais já era esperado. Candidatos e partidos considerados de esquerda perdendo força, enquanto a direita se fortalece ainda mais no poder institucional. No que diz respeito à forma, tudo dentro das regras do jogo. É da democracia representativa a alternância no poder.

Quanto ao conteúdo, a falácia tecnocrática vitoriosa em São Paulo e a ascensão de um bispo evangélico licenciado a prefeitura do Rio de Janeiro preocupam bastante. Ambas as linhas da direita mantém relações com as forças mais autoritárias do país. Encontram ressonância nos aparatos de repressão do Estado (Judiciário e seus altos salários, Polícias e seu monopólio legal da violência física) e estão pouco abertas a dialogar. Se em São Paulo um magnata governará com a promessa de não fazer política, uma contradição em termos, no Rio voltará com tudo a mistura entre religião e instituições democráticas. Na verdade, algo que está aí faz tempo. Um desses dois caminhos – senão a mistura deles – pode ganhar força para governar o Brasil no médio prazo. 

Tecnocratas e evangélicos conquistaram os votos das classes populares. Estão "legitimados". Possuem simpatia de boa parte das classes abastadas. Certo que daí surgirão afoitas privatizações, mais benefícios para o andar de cima, repúdio a diversidade nos temas comportamentais e o uso da repressão como única forma de responder aos conflitos sociais.

Parece caber àqueles que priorizam o combate a desigualdade, a apologia da diversidade e a construção de uma sociedade mais justa repensar estratégias e ações, insistir a fundo no trabalho de base, na horizontalidade e na micropolítica. Penso que as ocupações são um baita exemplo prático de que a política precisa ir muito além da institucionalidade.

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