O
que está acontecendo? Ofensiva conservadora? A volta dos que nunca
foram? O reinado da intolerância? Imbecilização do planeta? The winter
is coming? Não tem como dar uma resposta fechada, mas dá pra tentar
arriscar algumas míopes considerações.
Primeiro, cabe tentar
definir em que tipo de sociedade estamos vivendo. Somos frutos de um
processo histórico de modernização a partir da Europa. Isso consagrou a
hegemonia da modernidade capitalista como forma de organizar a vida em
sociedade. Dessa forma, vivemos diariamente lutas sociais
intransparentes, travestidas de normalidade. É como se as coisas fossem
naturalmente do jeito que são, e os conflitos fossem consequências de
pessoas ruins que não querem se tornar boas pessoas.
Ora, as
lutas sociais, ainda que opacas, seguem existindo, e vão além da nossa
individualidade – apesar de perpassá-la por meio de disposições,
esquemas de ação e percepção que nos orientam. São lutas sociais pelo
acesso aos bens e recursos escassos, aos espaços de poder. São lutas
sociais materiais, que se traduzem simbolicamente em lutas de
classificação e desclassificação. Tais lutas passam despercebidas, por
vezes, em função do arquétipo da moralidade moderna dominante, da forma
como entendemos o que é o certo e o que é o errado.
A igualdade é
vista como correta somente à medida que cria artifícios de regramentos
para que cada um possa exercer a sua individualidade e recolher os
méritos pelas suas conquistas. Mas, para isso, valoriza-se a
autenticidade, a distinção que nos faz ser notados, a cereja do bolo de
cada um. Em paralelo, cobra-se de todos o exercício da dignidade,
desenhado na ética do trabalho produtivo, no pensamento prospectivo e no
autocontrole, além de uma economia moral calculista (uma torpe adesão a
uma torta razão instrumental). Daí temos a base da autoestima
individual e do reconhecimento social.
Só que as lutas sociais
pelos bens e recursos escassos não geraram, sobretudo na era da
desregulamentação financeira, na era do Rei Mercado Livre, condições
razoáveis de coexistência entre os diferentes grupos humanos. Classes
sociais ainda existem, e ocupam lugares dessemelhantes no espaço social,
desde os capitais que possuem. A posse e a capacidade de mobilização de
diferentes capitais (“trunfos”/recursos econômicos, culturais, de redes
de relacionamento ou prestígio) seguem extremamente desiguais, e a
interseccionalidade das desigualdades joga mais gasolina nessa fogueira.
Num mundo com lutas sociais intransparentes, feito de acessos desiguais
aos “objetos” dos desejos que nos conformam, com a valoração
psicoemocional descrita acima, o desprezo pelo outro, por aquele que não
venceu ou não incorporou ou desafia o “espírito” do capitalismo, acaba
aparentando uma resposta plausível. Afinal, o outro que propõe uma
coexistência mais harmônica, com oportunidades mais igualitárias ou
outras formas de vivência na Terra, passa a ser interpretado como o
responsável pelos desajustes da vida coletiva e pelas condições
precárias em que vive a maioria. O jogo não é o problema; o problema são
os desafiantes.
Talvez por isso, o sucesso dos bufões que
apontam para as feministas, a comunidade LGBT, os movimentos sociais, as
populações tradicionais, enfim, todos aqueles que desafiam a ordem em
ruínas, esteja presente com tanta força no momento. Nesse contexto, há
ainda outro ponto a se pensar. O “espírito” das relações sociais
capitalistas da “sociedade da informação” pode estar em mutação. Se
olharmos com atenção, os ditames do futuro-presente nos indicam uma
espécie de "aceleracionismo capitalista". Quer dizer, não bastaria mais
os pressupostos morais e as disposições ajustadas para as lutas sociais,
a fim de concentrar capitais e reproduzir a vida em sociedade. A
demanda parece ser a de acelerar ainda mais a corrida por recursos,
poder e reconhecimento.
Como? Se as “tempestades de estímulos”
que nos fulminam em dispositivos como smartphones e tablets dão o tom
simbólico das classificações e desclassificações tipo minuto a minuto,
as relações de trabalho “flexíveis” modulam um possível novo espírito do
capitalismo, uma coisa na linha “trabalho 24/7”, isto é, 24 horas por
dia e sete dias por semana. “Não pense, trabalhe!” vira o lema perfeito.
Pensar, questionar, contestar, fortalecer contraculturas distintas,
nada disso colabora com a aceleração capitalista, não colabora com o
consumo desenfreado feito simulacro de uma felicidade vazia, na medida
em que pressiona pela retirada das suas urgências tidas como naturais e
nos coloca num compasso de reflexão e reconstrução de outras vivências e
outras urgências, ultrapassando uma sociedade de mercado.
Finalmente, não dá pra saber ao certo o que vai acontecer. O poder
institucional tende a ser ocupado, via democracia eleitoral, pelos
representantes da radicalização liberal-conservadora, os apologistas da
normalidade e da naturalidade do mundo. Liberal na retórica, pois elege a
“liberdade” do indivíduo como ponta de lança, mas a aplica apenas à
legitimação e reprodução da ordem vigente; conservadora porque atenta
contra o outro-diferente, seja ele o maconheiro, o homossexual ou a
mulher protagonista. É justamente por isso que as ocupações são
importantes e interessantes, enquanto resistência: elas tentam forçar a
interrupção de uma normalidade tão fictícia quanto nociva, e propõem a
reflexão, a horizontalidade política e a valorização de outros mundos
como perspectivas práticas.
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