ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Contrarreforma do Ensino Médio (2)


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Não houve erro do MEC. A retórica do Governo Federal tentou amenizar o desgaste que a contrarreforma do Ensino Médio trouxe no debate público. De fato, na Medida Provisória (ressalto novamente, instrumento autoritário do Executivo) não há exclusão de disciplinas [1]. Porém, a retirada da obrigatoriedade de Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física foi concretizada, com a saída da escrita que garantia, na LDB, a obrigatoriedade dessas matérias.

A prática da retórica é comum nos tempos atuais. Mentiras, boatos, retóricas, manipulações de argumentos: joga-se tudo isso nas redes sociais e a coisa pega fogo, mas a informação se perde. A contrarreforma do Ensino Médio segue nefasta pelos mesmos motivos que argumentei em outro texto. Tende a aprofundar desigualdades e fomentar ainda mais uma escola “rica” para as classes abastadas e uma escola “pobre” para as classes populares.

Além disso, e esse é um dos pontos mais preocupantes, na contramão de tudo que se tem debatido, pesquisado e procurado tornar realidade no âmbito educacional, o aperfeiçoamento pedagógico e didático perderá espaço. A partir da contrarreforma, “profissionais com notório saber” poderão exercer a docência sem cursos de licenciatura. Essa é uma pancada em cheio na formação de professores de qualidade. Se é verdade que as licenciaturas têm que melhorar, e melhorar muito, sem formação específica para a docência a situação fica ainda mais dramática.

Vamos juntar as peças do quebra-cabeça. Primeiro, o governo quer retirar a vinculação constitucional do orçamento da União para com saúde e educação (na prática, menos investimentos nessas áreas) [2]. Depois, coloca nos altos escalões dos Conselhos de Educação diversas pessoas ligadas a entidades empresariais [3]. Dia após dia, com o apoio nojento dos meios de comunicação oligopolizados, ganha força a ideia de que a gestão da educação pública deve passar para as mãos de Organizações Sociais, ou seja, a terceirização da gestão do ensino público (uma privatização branda) [4]. Bancos e conglomerados empresariais enxergam aí uma mina de ouro.

Ato contínuo, muda-se o currículo, retira-se a obrigatoriedade de algumas disciplinas consideradas subversivas ou desnecessárias – afinal, “não pense, trabalhe!”. Autoriza-se que qualquer um com “notório saber” vire professor, critério que será definido pelos sistemas de ensino (burocratas, políticos, conselheiros indicados e afins), fazendo com que apadrinhados ou pessoas alinhadas ideologicamente com o governo de ocasião possam ocupar as fileiras docentes. Não há ponto sem nó nesta contrarreforma.

Referências

[1] http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp…
[2] http://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o-assunto/dru
[3] http://agenciabrasil.ebc.com.br/…/apos-revogar-escolhas-de-…
[4] http://acervo.novaescola.org.br/…/radiografia-oss-goias-938…

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Contrarreforma do Ensino Médio (1)


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Enquanto uns agradecem a chegada da primavera, outros poucos passeiam pelo mundo e o bate-boca da “polarização” política segue alienante, o “novo-velho” Governo Federal anuncia uma Reforma do Ensino Médio. No canetaço, por meio de Medida Provisória, instrumento de imposição autoritária dos interesses do Executivo. Vai por água abaixo a obrigatoriedade das disciplinas de Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física na etapa final da escolarização básica.

A partir da genialidade (só que não!) do Ministro e sua equipe, tudo indica que teremos um Ensino Médio ainda mais fragmentado e fomentador de desigualdades. Desde cedo, os estudantes poderão “escolher” suas trajetórias futuras, seja buscando a universidade ou direto para o mercado de trabalho. Esquece-se que essas escolhas não são livres de constrangimentos. Essas escolhas se dão, em grande parte das vezes, de modo pragmático entre as classes populares. Engraçado é que estes “gênios da educação” são alinhados com aquelas propostas censuradoras, que consideram os estudantes como presas fáceis para a doutrinação ideológica. Eles podem escolher o futuro, têm autonomia para isso desde cedo, mas são facilmente doutrinados?

Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física? Qual a razão de uma escola que promova o conhecimento de teorias, temas e conceitos fundamentais na história do pensamento moderno, que promova a compreensão do sentido da política, do poder, da racionalidade, da argumentação, dos fatos sociais e etc.? Qual a razão de uma escola que promova o conhecimento de práticas corporais, dos benefícios dos diferentes esportes? Qual a razão de uma escola que promova a criatividade, o desenvolvimento estético e artístico? Qual a razão de tudo isso, se nossos representantes (opa, não são, porque não foram eleitos! Isso é uma democracia? Pergunte à Filosofia e à Sociologia…) estão focados em alimentar o mercado de trabalho e apenas isso?

Como pano de fundo, não esqueçamos, encontra-se a desvinculação das receitas da União com saúde e educação, desobrigando o Governo Federal de suas obrigações constitucionais nessas áreas. Direto e reto: vai ter menos dinheiro. Com o suporte de bancos e organizações privadas, interessadíssimas na privatização do ensino público e em transformar educação em mercadoria de uma vez por todas, joga-se para debaixo do tapete as incontáveis discussões e os profundos conhecimentos produzidos por profissionais que dedicaram e dedicam suas vidas para a educação – estudando e praticando. Esses não sabem nada, são ideológicos nas suas pesquisas, como pensam os “gênios” com a caneta na mão. Bancos e empresas privadas ditando os rumos educacionais são neutros e imparciais? São desinteressados?

Vamos mergulhando num pântano de dar asco. A gente vai resistir, é óbvio. Vou seguir produzindo pesquisa sociológica e tentando demonstrar que o que faz um sistema educacional dar errado vai muito além do seu currículo. Vou insistir até o limite das minhas possibilidades. Mesmo profundamente decepcionado, não vou jogar a toalha. Muitos e muitos outros e outras também não vão. Quem vive a educação, quem não sabe fazer outra coisa senão trabalhar com educação, vai seguir lutando por uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade. A roda da História gira sem parar. Apesar deles, amanhã vai ser outro dia. Não podemos desistir.

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sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Interregno

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Dias difíceis. Incertezas predominam. A tensão se alastra de vez. Na cafeteria, nem o café desce redondo. Ao meu lado, uma mesa repleta de homens. Velhos, brancos, bem alimentados, ostentando anéis dourados, sapatos lustrados e sorrisos marotos. Observo. Eles gritam em êxtase:

- Agora vai. Chega de vagabundo ou pobretão no poder. Bando de safado corrupto, tudo comunista. Tem mais é que apanhar na rua mesmo, principalmente as putinhas que ficam gritando “golpe”. Piranhas, isso é falta de rola!

Respiro fundo. Nas ruas, o pau tá comendo. A violência urbana cresce. Protestos também. O policiamento não dá conta da violência urbana. Dá conta, e com muita força, de reprimir protestos de esquerda. Nos domingos de verde e amarelo, só selfie e sorrisos, mesmo se os “de bem”, trajados de CBF, agredirem um ciclista de bike vermelha ou um gaiato qualquer usando barba ou vestindo a cor do capeta.

Nos meios de comunicação oligopolizados, a pauta é clara. Criminalizar os movimentos e o pensamento de esquerda. Atribuir à esquerda o fracasso da civilização ocidental capitalista. Atribuir à esquerda todos os males do mundo. E, por óbvio, fomentar a repressão. A roda do autoritarismo gira à brasileira. Pega o medo, o desespero, o caos, e bota nas costas da Polícia uma tarefa que não é dela: organizar a vida social e fazer política prática anti-esquerda.

Uma parte considerável da juventude simplesmente não cai mais nessa. A conta não fecha. O Brasil é extremamente injusto e desigual. Sim, o mérito e o talento devem ser recompensados. Mas não há mérito e talento que alcancem um lugar ao Sol sem equidade de oportunidades. Não há mérito e talento que se destaquem sem que haja isonomia nas relações políticas e nas oportunidades de acesso aos bens e recursos escassos. As exceções confirmam as regras. Para muitos, está claro que a conta não fecha. Vidas das periferias vão e vêm em condições subumanas, passando em branco na sua existência, acumulando ódios e mais ódios porque os desejos que se vende a todos quase nunca se tornam a sua realidade.

Na rodoviária, observo o pessoal da limpeza, os vigias, os atendentes das lojas, os cozinheiros, os garçons, os motoristas de ônibus, os vendedores de passagens. Dialogamos sobre o mundo. Ninguém desconhece o que acontece no país. Todos sabem que a política está em frangalhos. Mais uma vez, a conta não fecha. Quem me vende o prensado e o café de todas as semanas é taxativo:

- Isso tudo em Brasília... Professor, o senhor sabe, isso é briga deles. Nós, que saímos às cinco da manhã de casa e voltamos às onze da noite, ano após ano, vamos continuar nos fodendo. Política é isso aí, eles roubam e fodem o povo.

Escuto. Sinto. Preocupo-me em duas frentes. Primeiro, com o projeto de governo que vem aí, e que não venceu eleições. Chegou ao poder através de um rito aparentemente legal, mas com conteúdo muito discutível - para dizer o mínimo. Um projeto de desmonte dos direitos trabalhistas, de repressão e autoritarismo, de congelamento nos investimentos em saúde e educação, de privatizações a todo custo e onde quer que seja. Um projeto de poder que, tudo indica, não vai largar o osso com rapidez. Um projeto que de democrático só tem a propaganda de si próprio.

No fundo, preocupa mais ainda o que aprendi com as lições do professor Luiz Eduardo Soares, ainda nos protestos de 2013: se trocamos uma crítica política da situação que vivemos, por uma crítica generalizada à política em si, o abismo chega cada vez mais perto. Aqueles que observam “bestializados”, conforme expressão do professor José Murilo de Carvalho, às oligarquias que se engalfinham pelo poder institucional, cada vez mais parecem desacreditar a política enquanto negociação e organização da vida coletiva. Aí mora o risco de adesão total e irrestrita a messiânicos autoritários e pretensamente apolíticos.

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