ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Sigamos inventando

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Sem saber o caminho, seguiu andando. Dia após dia, mês após mês, ano após ano. No meio do caos e da falsa ordem cotidiana, seguiu em movimento.

Perto de virar mais uma página do calendário, encantou-se com a frase de Mia Couto*: "Os fatos só são verdadeiros depois de serem inventados".

Viajou. Desejou inventar um mundo com menos opressão, miséria e exclusão. Desejou fazer dessa invenção um verdadeiro conjunto de novos fatos.

* COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Página 107.

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quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Para além das minhas posses

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Parado na esquina, observou o poema estampado no muro. Era Verissimo, o Luis Fernando*:

"Estou emigrando
para uma terra mágica
onde os cheques voam
e todas as datas de vencimento
são precoces.
Vou viver além,
muito além
das minhas posses".

Desejou que, dali em diante, mais passos sejam dados na direção daquela magia. Seguiu em frente.

* VERISSIMO, Luis Fernando. Poesia numa hora dessas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. Página 74.
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quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Os “10 mandamentos” de Luiz E. Soares


Por Luiz Eduardo Soares*
Antropólogo e Professor

No meu caso, a exaustão provocou insônia e vontade de compartilhar meus "10 mandamentos", que podem ser nove ou vinte e um. São minhas crenças, minha religião, algumas coisas que aprendi ao longo da vida:

1) Prefiro agir, me insurgindo contra o status quo, mesmo errando, do que me resignar a conviver com desigualdades sociais, exploração econômica, opressão política e iniquidades ou injustiças. Mas se me arrisco a errar, que sejam erros novos. Portanto: erremos, mas erremos erros novos. Nada mais melancólico e patético (e regressivo) do que errar erros velhos.

2) A iniquidade mais profunda e grave – porque estruturante –, na sociedade brasileira, é o racismo. Quatro séculos de escravidão moldaram a matriz a partir da qual as demais desigualdades têm sido formatadas e experimentadas. Por isso, ao contrário do que pensa a maioria de meus colegas, considero as desigualdades sócio-econômicas sobredeterminadas pela tirania da cor. A falta de consciência desse fenômeno, a meu juízo, resulta da naturalização do racismo, um processo violento e perverso.

3) Reconhecer a prioridade do racismo e defender com radicalidade ações afirmativas, como as políticas de cotas, não me levam a ver os meus críticos como necessariamente racistas. Há argumentos legítimos e preocupações respeitáveis contra as posições que defendo. Não concordo com a demonização dos meus adversários políticos, assim como rejeito essa atitude quando tomada pelos críticos das cotas, chamando-nos de "racialistas". Acusações generalizantes impedem o debate necessário e enriquecedor.

4) Não creio que o formato partido-político tenha salvação a médio e longo prazos. Temos de conviver com esse animal bizarro que nunca escapou à lei de ferro da oligarquização, mas recomendo manter ligado o sinal de alerta máximo. Uma democracia menos oca e hipócrita que a nossa, menos manipulativa e cúmplice das iniquidades, terá de mobilizar a imaginação e o protagonismo coletivo para que sejam inventadas novas dinâmicas e novos mecanismos de participação, capazes de submeter o Estado e os agentes econômicos ao controle popular, respeitando-se a liberdade, a diversidade e as minorias.

5) Não conheço, por ora, nenhum repertório de valores mais interessante do que aquele que inspira os direitos humanos. A dignidade da pessoa, entendida e tratada como fim, e não meio, é a pedra de toque para dar sentido às ideias de democracia e justiça. Por isso, a individualidade é uma construção, uma categoria e uma experiência matricial para a construção subjetiva de nós mesmos e de nossa vida coletiva. Não há nenhuma obra da arte ou da ciência mais bela e complexa do que uma pessoa em sua singularidade. Daí a importância de sacralizarmos a pessoa (sempre fim, não recurso instrumental, sacrificável em nome de entes supostamente superiores, como a nação, a pátria, a classe, o partido, a revolução, o bem coletivo, a utopia, a religião, Deus, etc…). Valorizar a pessoa em sua individualidade, ou singularidade, significa cultivar e cultuar a diversidade (que não se confunde com desigualdade, como todos sabemos). Por isso, classificar o outro, diagnosticá-lo, dizer quem ou o que ele ou ela é, constitui um ato despótico e brutal. Definir o outro equivale a uma espécie de Vodu ontológico e político: espeto o fetiche com o alfinete, cravo um punhal na imagem e condeno a pessoa a não ser senão aquilo que dela se diz. Identificar a essência ou a natureza de alguém implica reduzir a pessoa à qualidade que lhe atribuo, implica também condená-la a repetir para sempre o ato que justificou a classificação. É isso que faz a justiça criminal retributiva, cujas sentenças tomam a qualidade de um ato como espelho da natureza do sujeito. Por isso, afirmo que a privação de liberdade em uma instituição total é antes de mais nada uma prisão sintática, uma vez que liga um sujeito a um predicado, a um verbo, a um ato, de modo exclusivo, unilateral e inseparável.

6) Nosso grande desafio é transcender o antropocentrismo e pensar/viver uma moralidade pluriespecífica e transnatural. Para isso, impõe-se aprender com as sociedades ameríndias, como nos têm ensinado nossos colegas etnólogos, aqueles com quem mais temos a aprender, hoje. A repugnância que me causa a crueldade, a humilhação, o preconceito, é a mesma que sinto ante a brutalidade do Estado, perpetrada por meio de prisões e instituições policiais (essa violência é praticada antes e sobretudo contra os próprios policiais). E é ainda maior quando observo o instituto da punição, suas práticas, sua filosofia, sua estética, sua ética. A punição é a fusão da vingança – o cativeiro do ódio – com a impotência inconsciente de si, ou com a negação da finitude (cujo nome clássico é Hybris ou onipotência). Em resumo, a punição é a troca do sexo (como entrega e destituição de si, renúncia à identidade) pelo poder, é também a substituição da compaixão pela violência, do êxtase pela propriedade.

7) Os valores, por serem belos e defensáveis, inspiradores e legítimos, não necessariamente são suscetíveis de formar uma unidade, não necessariamente são indivisíveis ou complementares. Podem se contradizer, quando aplicados. A política é o espaço em que o bem precisa da razão pública, coletiva, dialógica, negocial, para realizar-se, tanto quanto possa realizar-se. Ou seja, cumpre à política democrática reduzir os danos recíprocos que a aplicação simultânea dos valores pode produzir: o caso exemplar é o choque entre liberdade e igualdade.

8) Gênero, sexo e corpo se afastarão até esquecerem um do outro, deixando de fazer sentido a geração de identidades como masculino, feminino, heterossexual, homossexual, bissexual ou qualquer outro nome que aprisione a contingência dos afetos, sua complexidade, sua variedade sincrônica e diacrônica.

9) A proibição de drogas, no futuro próximo, causará horror, indignação e incredulidade a qualquer cidadão ou cidadã mediana. Pela irracionalidade, pela hipocrisia, pelo artificialismo contraditório e pelos efeitos genocidas, criminalizando a pobreza. Nesse tempo, que espero não demore, será óbvio que nosso problema crônico com a violência tinha sua origem (a qual ditava as condições de sua reprodução em grande escala) na brutalidade do Estado contra jovens pobres e negros, em territórios vulneráveis. Nesse futuro mais lúcido e menos hipócrita, soará inacreditável que a sociedade brasileira não tenha percebido que o genocídios de jovens negros era o centro de sua agenda. Ou seja, que a questão policial era chave para a democracia.

10) Nem tudo que há na sociedade existe segundo uma vontade e um interesse. Há efeitos de agregação e efeitos perversos – são consequências inesperadas das ações sociais ou que decorrem de suas combinações. Há ignorância – nem tudo é transparente, nem mesmo interesses e os projetos que melhor os expressem e defendam – e, o mais óbvio e menos lembrado: há o erro. Assim sendo, é um equívoco primário deduzir da existência de cada fenômeno, necessariamente, um sujeito oculto, um interesse subjacente, uma lógica latente, uma finalidade estratégica se desdobrando. Portanto, há aquilo que não interessa a nenhum ator social, o que não significa que os mais hábeis e ágeis, os que têm mais poder e condições de atuar, deixem de tentar extrair do que há algum benefício. Entretanto, nem sempre conseguem. Também constitui um equívoco simples, embora bastante comum, mesmo entre aqueles com algum treinamento em ciências sociais, supor que aquilo que existe na sociedade, em expressando o interesse de algum grupo social, fere o interesse de outro grupo social. Se o vocabulário adotado é a da dominação, deduz-se que, necessariamente, o que um polo faz nada mais representa senão a reprodução do domínio ou a resistência a esse domínio. Não têm lugar, nessa visão simplificadora, reducionista, totêmica, as hipóteses de de que algo possa servir a propósitos contraditórios ou possa gerar efeitos ambivalentes ou possa suscitar consequências potencialmente duplas ou indefinidas. Ou seja, não cabe no esquema cognitivo reducionista, a ideia de que nem tudo se encaixa, nem tudo é funcional, nem tudo atende a imperativos de um sistema, nem tudo, mesmo se articulando sistemicamente, se conecta a apenas um sistema. Quando evoca "o sistema", o pensamento simplificador (que, no fundo, busca uma espécie de pureza maniqueísta e certezas finalísticas paranoicas, sonhando mundos em que tudo sempre têm sentido, tudo se encaixa, tudo atende a interesses) sequer se dá ao trabalho de definir sistema, porque, se o fizesse, teria de renunciar ao funcionalismo, pois sistema, enquanto categoria, não exclui desfuncionalidade e contradições, espaços indefinidos, lapsos, intervalos, vazios e irracionalidades – afinal, além de funções, estruturas e dinâmicas, há os atores, há os agentes, que por vezes erram, ignoram e por vezes se autodestróem.

Bem, são apenas anotações insones. Ninguém vai ler um comentário tão longo. Talvez isso seja apenas um desabafo, depois de um ano inteiro ouvindo tantas certezas funcionais sobre o sistema, o capitalismo, a burguesia, o neoliberalismo, e como tudo se explica com tanta singeleza, bastando que o coração bata do lado certo do peito. Quem dera as coisas fossem assim tão simples.Quem dera bastasse pronunciar o nome da besta-fera para que o Outro da besta se revelasse com transparência cristalina. Prefiro a via difícil da dúvida, sempre, e começo sempre perguntando qual é o outro da besta-fera? O que sabemos sobre o socialismo que queremos? Se não é nada parecido com o império soviético e seus satélites, se não se confunde com as tiranias que sobraram e que ainda evocam o santo nome do socialismo em vão, se ainda não foi experimentado em escala industrial ou pós-industrial, será que não nos cabe mais humildade cognitiva, mais esforço imaginativo, mais clareza argumentativa? Afinal, está conosco o ônus da prova. Isso não nos deve desanimar, mas certamente recomenda menos arrogância de nossa parte, menos onisciência, menos onipotência, e mais reconhecimento de que está por ser construído o caminho, de que ainda não o conhecemos e de que temos de ser intelectualmente honestos para admiti-lo e politicamente corajosos para explicitá-lo.

Prefiro quem não sabe a quem tem certeza. E me refiro não só ao projeto estratégico como também às metodologias e aos caminhos. Destes aqui não trato porque já temos assuntos em quantidade e em complexidade suficientes para boas conversas.

* Luiz Eduardo Soares é Antropólogo, Escritor e Professor da UERJ.
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segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Valeu, 2013!

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Foi-se. Fechamos as atividades. Pelo menos em 2013, a proposta de ensinar Sociologia para a gurizada do ensino médio dá um tempo. Parece que foi ontem o início do ano. Rápida, pesada e intensa temporada.

As férias se anunciam. Além dessa alegria, cabe falar das emoções que atravessaram a jornada. Foram vastas. Uma delas foi a alegria de compartilhar experiências, desafios e aprendizados com os graduandos da Licenciatura em Ciências Sociais da UFRGS, os Pibidianos que comigo trabalharam. Foi incrível. Aprendi demais com vocês. Gratidão, rapaziada! Vocês são, realmente, muito foda. O ensino de Sociologia tem muito a ganhar com vocês. Ficarão as saudades e os saberes que construímos uns com os outros.

Em 2014, sigamos tentando. Dias atrás, um estudante escreveu que, pela lente da Sociologia, passou a entender melhor o que é a humanidade. Temos um horizonte. Afinal, como diria Mia Couto, o sonho é o olho da vida.

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quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Para que serve a tua Sociologia?

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Há perguntas que me tiram o sono. Na semana do dia do Sociólogo, em que foram publicadas avaliações de Universidades e Pós-Graduações brasileiras, uma delas voltou a me afligir. Singela, carrega muita polêmica: “Para que serve a tua Sociologia?”. Não penso que todo saber precise servir para alguma coisa. Mesmo assim, a questão me incomoda. Final de ano, hora de balanços.

As pesquisas da Sociologia e da Antropologia aqui da UFRGS situam-se entre as melhores do país. É o que dizem as avaliações nacionais. Fato importante, um reconhecimento ao trabalho de qualidade exercido por docentes, discentes e funcionários. Digno de comemoração, sim. Sobretudo por se tratar de um espaço acadêmico público e gratuito, localizado fora do eixo Rio-São Paulo.

No entanto, subjazem críticas que precisam aflorar. É inegável o padrão industrial adotado no âmbito do fazer científico vigente, o que fomenta um clima de alta competitividade e de fragmentação exagerada do conhecimento. Fatias e mais fatias de “achados” concorrem na corrida dos currículos oficiais. Por vezes, os próprios rigores teóricos e metodológicos fundamentais nas ciências ficam em segundo plano, dada a obrigatoriedade das produções em série.

Considero de extrema relevância o saber científico. Aposto minhas fichas nesse jogo. Porém, no auge da minha superficialidade, acho pouco perante a complexidade do real. Tento fazer uma Sociologia que dialogue com outros saberes. Que seja capaz de acessar públicos distintos daqueles que possuem os predicados das Ciências Sociais. Uma Sociologia das, nas e para as ruas.

* Acho que essa perspectiva que tento seguir na minha prática profissional cotidiana faz algum sentido. Pelo menos para o CNPq. Na capa do site do conselho para o desenvolvimento de ciência e tecnologia, chama-se um link para "popularização da ciência". Lá, diz-se o seguinte, com todas as letras: "Popularizar o conhecimento científico é contribuir para o desenvolvimento social e a ampliação da cidadania". Quem sabe...

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segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Querer é poder?

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Maria escutava música. Pela janela, enxergava o lema do indivíduo moderno ostentado na avenida: “Querer é poder”. A moça pensava na vida. Nas suas experiências desde pequena. Viajava no tempo e no espaço. Bastaria o mérito para alcançar o que queremos?

Surpresa, ela vasculhava o seu passado. Problematizava o valor das relações que construíra na sua trajetória até ali. Tentava entender a formação das suas vontades, dos seus desejos e das suas ações. Afinal, as coisas nem sempre deram certo. Eram cheias de idas e vindas. Misturavam-se as suas atitudes e as condições das circunstâncias que se apresentavam.

Algumas oportunidades ela havia conquistado. Era habilidosa. Outras surgiam no desenrolar dos acontecimentos. Sem dúvidas, suas qualidades adquiridas socialmente abriam portas e dinamizavam as possibilidades práticas de execução dos seus desejos. Tudo se revelava um movimento de interdependência entre a sua interioridade e a exterioridade mundana.

Maria acordara. Lúcida, sublinhara para si própria a importância da dedicação. Do foco. Porém, fazer disso um paradigma já era demais. Poderia gerar muita competição e individualismo. Desse jeito, as oportunidades para que todos os dedicados se satisfaçam pareciam ficar ainda mais longe.

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quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Um abraço em Mandela

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Um abraço. Gostaria muito de ter dado um abraço em Nelson Mandela. Aliás, em Rolihlahla Mandela. Em Madiba. Hoje, no dia da sua morte, sinto esse desejo com maior profundidade.

Mandela é um vencedor. Representa a vitória da humanidade sobre a opressão. Uma vitória, infelizmente, bastante incompleta. Foi-se o Apartheid na África do Sul. Porém, o racismo insiste.

A batalha que Madiba simboliza permanece quando um garoto de cabelos volumosos é determinado pela sua escola a cortá-los. Quando um jogador de futebol sai do gramado em prantos ao ser comparado a um macaco. Quando são reproduzidas piadas racistas. Quando se diz que os negros são inferiores.

Um abraço para Madiba. Para Zumbi dos Palmares. Para todos os Panteras Negras. Para Martin Luther King. Para Malcom X. Para Abdias do Nascimento, João Cândido e Milton Santos. Para a guerreira Dandara. Para Luíza Mahin. Um abraço para Tereza de Benguela.

Um abraço para a África e a negritude espalhada pelo planeta. Um forte abraço.

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