Por Luiz Eduardo Soares*
Antropólogo e Professor
No meu caso, a exaustão provocou insônia e vontade de compartilhar meus "10 mandamentos", que podem ser nove ou vinte e um. São minhas crenças, minha religião, algumas coisas que aprendi ao longo da vida:
1) Prefiro agir, me insurgindo contra o status quo, mesmo errando, do que me resignar a conviver com desigualdades sociais, exploração econômica, opressão política e iniquidades ou injustiças. Mas se me arrisco a errar, que sejam erros novos. Portanto: erremos, mas erremos erros novos. Nada mais melancólico e patético (e regressivo) do que errar erros velhos.
2) A iniquidade mais profunda e grave – porque estruturante –, na sociedade brasileira, é o racismo. Quatro séculos de escravidão moldaram a matriz a partir da qual as demais desigualdades têm sido formatadas e experimentadas. Por isso, ao contrário do que pensa a maioria de meus colegas, considero as desigualdades sócio-econômicas sobredeterminadas pela tirania da cor. A falta de consciência desse fenômeno, a meu juízo, resulta da naturalização do racismo, um processo violento e perverso.
3) Reconhecer a prioridade do racismo e defender com radicalidade ações afirmativas, como as políticas de cotas, não me levam a ver os meus críticos como necessariamente racistas. Há argumentos legítimos e preocupações respeitáveis contra as posições que defendo. Não concordo com a demonização dos meus adversários políticos, assim como rejeito essa atitude quando tomada pelos críticos das cotas, chamando-nos de "racialistas". Acusações generalizantes impedem o debate necessário e enriquecedor.
4) Não creio que o formato partido-político tenha salvação a médio e longo prazos. Temos de conviver com esse animal bizarro que nunca escapou à lei de ferro da oligarquização, mas recomendo manter ligado o sinal de alerta máximo. Uma democracia menos oca e hipócrita que a nossa, menos manipulativa e cúmplice das iniquidades, terá de mobilizar a imaginação e o protagonismo coletivo para que sejam inventadas novas dinâmicas e novos mecanismos de participação, capazes de submeter o Estado e os agentes econômicos ao controle popular, respeitando-se a liberdade, a diversidade e as minorias.
5) Não conheço, por ora, nenhum repertório de valores mais interessante do que aquele que inspira os direitos humanos. A dignidade da pessoa, entendida e tratada como fim, e não meio, é a pedra de toque para dar sentido às ideias de democracia e justiça. Por isso, a individualidade é uma construção, uma categoria e uma experiência matricial para a construção subjetiva de nós mesmos e de nossa vida coletiva. Não há nenhuma obra da arte ou da ciência mais bela e complexa do que uma pessoa em sua singularidade. Daí a importância de sacralizarmos a pessoa (sempre fim, não recurso instrumental, sacrificável em nome de entes supostamente superiores, como a nação, a pátria, a classe, o partido, a revolução, o bem coletivo, a utopia, a religião, Deus, etc…). Valorizar a pessoa em sua individualidade, ou singularidade, significa cultivar e cultuar a diversidade (que não se confunde com desigualdade, como todos sabemos). Por isso, classificar o outro, diagnosticá-lo, dizer quem ou o que ele ou ela é, constitui um ato despótico e brutal. Definir o outro equivale a uma espécie de Vodu ontológico e político: espeto o fetiche com o alfinete, cravo um punhal na imagem e condeno a pessoa a não ser senão aquilo que dela se diz. Identificar a essência ou a natureza de alguém implica reduzir a pessoa à qualidade que lhe atribuo, implica também condená-la a repetir para sempre o ato que justificou a classificação. É isso que faz a justiça criminal retributiva, cujas sentenças tomam a qualidade de um ato como espelho da natureza do sujeito. Por isso, afirmo que a privação de liberdade em uma instituição total é antes de mais nada uma prisão sintática, uma vez que liga um sujeito a um predicado, a um verbo, a um ato, de modo exclusivo, unilateral e inseparável.
6) Nosso grande desafio é transcender o antropocentrismo e pensar/viver uma moralidade pluriespecífica e transnatural. Para isso, impõe-se aprender com as sociedades ameríndias, como nos têm ensinado nossos colegas etnólogos, aqueles com quem mais temos a aprender, hoje. A repugnância que me causa a crueldade, a humilhação, o preconceito, é a mesma que sinto ante a brutalidade do Estado, perpetrada por meio de prisões e instituições policiais (essa violência é praticada antes e sobretudo contra os próprios policiais). E é ainda maior quando observo o instituto da punição, suas práticas, sua filosofia, sua estética, sua ética. A punição é a fusão da vingança – o cativeiro do ódio – com a impotência inconsciente de si, ou com a negação da finitude (cujo nome clássico é Hybris ou onipotência). Em resumo, a punição é a troca do sexo (como entrega e destituição de si, renúncia à identidade) pelo poder, é também a substituição da compaixão pela violência, do êxtase pela propriedade.
7) Os valores, por serem belos e defensáveis, inspiradores e legítimos, não necessariamente são suscetíveis de formar uma unidade, não necessariamente são indivisíveis ou complementares. Podem se contradizer, quando aplicados. A política é o espaço em que o bem precisa da razão pública, coletiva, dialógica, negocial, para realizar-se, tanto quanto possa realizar-se. Ou seja, cumpre à política democrática reduzir os danos recíprocos que a aplicação simultânea dos valores pode produzir: o caso exemplar é o choque entre liberdade e igualdade.
8) Gênero, sexo e corpo se afastarão até esquecerem um do outro, deixando de fazer sentido a geração de identidades como masculino, feminino, heterossexual, homossexual, bissexual ou qualquer outro nome que aprisione a contingência dos afetos, sua complexidade, sua variedade sincrônica e diacrônica.
9) A proibição de drogas, no futuro próximo, causará horror, indignação e incredulidade a qualquer cidadão ou cidadã mediana. Pela irracionalidade, pela hipocrisia, pelo artificialismo contraditório e pelos efeitos genocidas, criminalizando a pobreza. Nesse tempo, que espero não demore, será óbvio que nosso problema crônico com a violência tinha sua origem (a qual ditava as condições de sua reprodução em grande escala) na brutalidade do Estado contra jovens pobres e negros, em territórios vulneráveis. Nesse futuro mais lúcido e menos hipócrita, soará inacreditável que a sociedade brasileira não tenha percebido que o genocídios de jovens negros era o centro de sua agenda. Ou seja, que a questão policial era chave para a democracia.
10) Nem tudo que há na sociedade existe segundo uma vontade e um interesse. Há efeitos de agregação e efeitos perversos – são consequências inesperadas das ações sociais ou que decorrem de suas combinações. Há ignorância – nem tudo é transparente, nem mesmo interesses e os projetos que melhor os expressem e defendam – e, o mais óbvio e menos lembrado: há o erro. Assim sendo, é um equívoco primário deduzir da existência de cada fenômeno, necessariamente, um sujeito oculto, um interesse subjacente, uma lógica latente, uma finalidade estratégica se desdobrando. Portanto, há aquilo que não interessa a nenhum ator social, o que não significa que os mais hábeis e ágeis, os que têm mais poder e condições de atuar, deixem de tentar extrair do que há algum benefício. Entretanto, nem sempre conseguem. Também constitui um equívoco simples, embora bastante comum, mesmo entre aqueles com algum treinamento em ciências sociais, supor que aquilo que existe na sociedade, em expressando o interesse de algum grupo social, fere o interesse de outro grupo social. Se o vocabulário adotado é a da dominação, deduz-se que, necessariamente, o que um polo faz nada mais representa senão a reprodução do domínio ou a resistência a esse domínio. Não têm lugar, nessa visão simplificadora, reducionista, totêmica, as hipóteses de de que algo possa servir a propósitos contraditórios ou possa gerar efeitos ambivalentes ou possa suscitar consequências potencialmente duplas ou indefinidas. Ou seja, não cabe no esquema cognitivo reducionista, a ideia de que nem tudo se encaixa, nem tudo é funcional, nem tudo atende a imperativos de um sistema, nem tudo, mesmo se articulando sistemicamente, se conecta a apenas um sistema. Quando evoca "o sistema", o pensamento simplificador (que, no fundo, busca uma espécie de pureza maniqueísta e certezas finalísticas paranoicas, sonhando mundos em que tudo sempre têm sentido, tudo se encaixa, tudo atende a interesses) sequer se dá ao trabalho de definir sistema, porque, se o fizesse, teria de renunciar ao funcionalismo, pois sistema, enquanto categoria, não exclui desfuncionalidade e contradições, espaços indefinidos, lapsos, intervalos, vazios e irracionalidades – afinal, além de funções, estruturas e dinâmicas, há os atores, há os agentes, que por vezes erram, ignoram e por vezes se autodestróem.
Bem, são apenas anotações insones. Ninguém vai ler um comentário tão longo. Talvez isso seja apenas um desabafo, depois de um ano inteiro ouvindo tantas certezas funcionais sobre o sistema, o capitalismo, a burguesia, o neoliberalismo, e como tudo se explica com tanta singeleza, bastando que o coração bata do lado certo do peito. Quem dera as coisas fossem assim tão simples.Quem dera bastasse pronunciar o nome da besta-fera para que o Outro da besta se revelasse com transparência cristalina. Prefiro a via difícil da dúvida, sempre, e começo sempre perguntando qual é o outro da besta-fera? O que sabemos sobre o socialismo que queremos? Se não é nada parecido com o império soviético e seus satélites, se não se confunde com as tiranias que sobraram e que ainda evocam o santo nome do socialismo em vão, se ainda não foi experimentado em escala industrial ou pós-industrial, será que não nos cabe mais humildade cognitiva, mais esforço imaginativo, mais clareza argumentativa? Afinal, está conosco o ônus da prova. Isso não nos deve desanimar, mas certamente recomenda menos arrogância de nossa parte, menos onisciência, menos onipotência, e mais reconhecimento de que está por ser construído o caminho, de que ainda não o conhecemos e de que temos de ser intelectualmente honestos para admiti-lo e politicamente corajosos para explicitá-lo.
Prefiro quem não sabe a quem tem certeza. E me refiro não só ao projeto estratégico como também às metodologias e aos caminhos. Destes aqui não trato porque já temos assuntos em quantidade e em complexidade suficientes para boas conversas.
* Luiz Eduardo Soares é Antropólogo, Escritor e Professor da UERJ.
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