ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Karl Popper e o conhecimento científico


“A ciência não é um sistema de enunciados certos ou bem estabelecidos, nem um sistema que avança constantemente em direção a um estado final. Nossa ciência não é conhecimento (episteme): ela nunca pode pretender haver atingido a verdade, ou mesmo um substituto para ela, tal como a probabilidade.

Entretanto, a ciência tem mais que um simples valor de sobrevivência biológica. Ela não é apenas um instrumento útil. Embora não possa atingir a verdade nem a probabilidade, o esforço pelo conhecimento e a procura da verdade ainda são os motivos mais fortes da descoberta científica.

Não sabemos: podemos apenas conjecturar. E nossas conjecturas são guiadas pela fé não-científica, metafísica (embora explicável biologicamente), nas leis ou regularidades que podemos desvendar-descobrir. (…)

Todavia, testes sistemáticos controlam cuidadosa e seriamente essas nossas conjecturas ou ‘antecipações’ maravilhosamente imaginativas e audazes. Uma vez propostas, não sustentamos dogmaticamente nenhuma de nossas ‘antecipações’. Nosso método de pesquisa não consiste em defendê-las para provar que estávamos certos. Pelo contrário, tentamos contestá-las. Empregando todas as armas de nosso arsenal lógico, matemático e técnico, tentamos provar que nossas antecipações eram falsas – com o fim de propor, em seu lugar, novas antecipações injustificadas e injustificáveis, novos ‘preconceitos precipitados e prematuros’, como Bacon pejorativamente as chamou. (…)

Mesmo o teste cuidadoso e sério de nossas ideias pela experiência inspira-se, por sua vez, em ideias: a experimentação é uma ação planejada na qual a teoria guia todos os passos. Não topamos com nossas experiências, nem deixamos que elas nos inundem como um rio. Pelo contrário, temos de ser ativos: devemos fazer nossas experiências. Somos sempre nós que formulamos as questões propostas à natureza; somos nós que repetidas vezes tentamos colocar essas questões para então obter um nítido ‘sim’ ou ‘não’ (pois a natureza não dá uma resposta, a menos que seja pressionada a fazê-lo). E, finalmente, somos nós também que damos uma resposta; somos nós próprios que, após severo escrutínio, decidimos sobre a resposta à qustão que colocamos à natureza – após tentativas insistentes e sérias de obter dela um inequívoco ‘não’. (…)

O velho ideal científico da episteme – do conhecimento absolutamente certo, demonstrável – mostrou ser um ídolo. A exigência da objetividade científica torna inevitável que todo enunciado científico permaneça provisório para sempre. Ele, com efeito, pode ser corroborado, mas toda corroboração é relativa a outros enunciados que, novamente, são provisórios”.

POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. In: CHAUI, Marilena (org.). Primeira filosofia. São Paulo: Brasiliense, 1984. Páginas 213-215.

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terça-feira, 29 de outubro de 2013

A difícil arte de (tentar) ser uma mosca


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Precisei escrever. Quase como terapia. A sala de aula move difíceis situações. Ensinar (aprendendo) sociologia pode ser um barril de pólvora. Por aí, problematizar as desigualdades entre homens e mulheres se assemelha a riscar uma caixa de fósforos. Risquei.

Foi árido propor a possibilidade de um rompimento com a coisificação da mulher. Bater no machismo. Propor que pessoas se fazem em relações, não são propriedades umas das outras. Combater os pronomes possessivos fervilhando pelas bocas. A supremacia do individualismo. A ideia de que o homem pode tudo e a mulher não pode nada. Foi árido.

Penei. Errei na didática. Não consegui atingir os objetivos pedagógicos. Só consegui gerar algum incômodo e irritação. Senti o inacabamento, a minha competência reduzida. Mas aprendi, de uma vez por todas: o mundo e os arbitrários culturais vão muito além das nossas sociabilidades, dos nossos feeds, dos nossos amigos, parceiros, companheiros, reuniões, festas e etc. A sopa é muito maior do que as moscas. Ainda assim, prefiro ser mosca. Ampla lição.

Falhei. Escrevi. Respirei. Agora quero riscar outras caixas de fósforos.

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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Como riem as hienas

Eduardo Barcellos Cientista Político


Ando atônito. Nunca pensei que utilizaria essa palavra para descrever um estado de espírito – atônito. Em seu significado, aqui faço uso total; mistura de admirado, confuso, estupefato, espantado.

Muito me senti o Senhor da Apreensão dos Escaninhos da Análise Social. Baita título pomposo. Mentira de uma alucinação, com personagens mais realistas do que o rei.

Despido da pretensão de compreensão total, percebo. Percebo que o Brasil-político que antes via, hoje é ficção. Eu promulgava a bula: segundo os conceitos vigentes na Ciência Política, vivemos numa democracia. Sentenciava, na verdade.

Pois bem. Peguei esses mesmos conceitos, semanas atrás, e me surpreendi, como dito, atônito. Algo havia se transformado no meio do caminho. E não era apenas meu ser.

Livre, como tenho estado, da busca do categórico, me permito finalmente o hipotético. Kant ficaria alegre, apesar de me condenar pelo mal uso do conhecimento. Oxalá, que assim seja!

Assim livre, me permito extrapolar as raias do duro conceito, transbordando para a rochosa realidade que formamos, ao materializá-la.

Extrapolando, digo, sem receio, ou rodeios: me parece que nem nos conceitos minimalistas de democracia o Brasil anda se enquadrando. “Me passe o foco, foto fora de foco”: escutei isso num rap (instrumento de sabedoria popular, como diria um amigo, nomeado Bernardo Caprara).

Como afirmado, não quero aqui esgotar conhecimento, até mesmo porque ele nunca se esgota. Fonte inesgotável. Em assim sendo, trago superficialmente duas abordagens sobre a democracia, uma minimalista em-si, e uma pluralista, pouco mais abrangente.

Visto que desejo evitar conduzir o Brasil-político ao banco dos réus (em função da presunção de inocência), privilegio o conceito minimalista, mais fácil de ser preenchido, começando por ele.
Competição livre através do voto livre”, dizia Schumpeter. 

A concepção pluralista, tendo Robert Dahl como âncora, entende da seguinte forma. “Todos os cidadãos plenos devem ter oportunidades plenas”; de quê? “De formular suas preferências; de expressá-las a seus concidadãos e ao governo através da ação individual e coletiva; e de ter suas preferências consideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem discriminação decorrente do conteúdo ou da fonte da preferência”. Além dessas oportunidades, as instituições da sociedade devem fornecer oito garantias: liberdade de formar e aderir a organizações; liberdade de expressão; direito de voto; elegibilidade para cargos públicos; direito de líderes políticos disputarem apoio e, mais, disputarem votos; fontes alternativas de informação; eleições livres idôneas; instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferência.

Talvez tenha me alongado. Paciência.

O que anda acontecendo no Brasil? Ao menos no Brasil-político?

A liberdade de formar e aderir a organizações está ameaçada. A liberdade de expressão está recebendo tratamento repressivo digno de episódios da ditadura. O direito de líderes políticos disputarem voto? Combatido pelos“donos do poder”. É aquilo que um ilustre cientista político nos lembra: após entrarem no “jogo”, os recém egressos buscam vetar aos demais a sua entrada. É o velho lema: “para o meu lado, pode”. A garantia de “outras manifestações de preferência”? Igualmente abalada, como o episódio de 15 de outubro no Rio de Janeiro escancara, e outros episódios Brasil afora também – perseguição política a anarquistas, filiados a partidos oposicionistas de esquerda, e cidadãos livres de quaisquer organizações político-institucionalizadas. E as "fontes alternativas de informação"? A questão do marco civil da internet escancara, adicionada a busca do Senado para controle de usuários e acesso.

Estamos saindo de uma semi-oligarquia para uma semi-hegemonia. Mui distantes de uma sonhada poliarquia (isto é, aproximação possível, factual, do "ideal democrático"). O pêndulo, por estas plagas brasílicas, desconhece o caminho do meio. Ele é perdulário por Constituição.

Mas e o conceito minimalista de Schumpeter?

A competição livre começa a ser abalada. Quando uma gama plural de representações sociais e de mundo é vetada de adentrar o espaço institucionalizado da Política, o que temos é o fomento do caos.
Quando um partido, chefiado pelo cacique Paulinho da Força, recebe aval da Justiça Eleitoral e um partido, como a Rede, recebe veto, há escancaramento da falta de institucionalização dos órgãos de Poder. Pouco democrático.

O PT não entende o que anda acontecendo. Ele não representa mais a “voz que vem das ruas”, eis o que acontece. Por isso ele não entende. O PT virou estamento.

Na democracia, quando a voz não recebe atenção, inexiste lealdade, existindo “saída”. E a saída, pela falta de representação, corre o risco de ser pela porta dos fundos – arrombando-a.

A sede de PODER, em detrimento da sede de JUSTIÇA (social, humana, política), conturba o organismo coletivo.

Vivemos convulsões. E quando elas existem é porque falta harmonia orgânica; correspondência entre as partes que formatam, sustentam e formulam o todo.

A voz tem de ser representada, do contrário, caos.

Afora esse quesito meramente político, há um aspecto mais grave – o aspecto humano.

Está escancarado aos que têm olhos de ver, que a humanidade está falida. Falida ética, moral e psicologicamente.

Vemos ódios se cruzarem: de um lado, o ódio encarnado por Black Blocs, de outro, o ódio encarnado por policiais. Eis o que defende Luiz Eduardo Soares.

Ódio com ódio resulta em desumanização do ser individualizado, do ente coletivo e do ambiente em que ambos gravitam na experiência. Digo eu.

Governantes despreparados, os quais sofrem de grave sociopatia, estimulam o caos, fomentando ódios.

Empresários da mídia formulam arquétipos vulgares, e trabalham um simbolismo tortuoso, confundindo as mentes em que tocam.

O órgão Judiciário mexe com simbolismos errados, abalando outro órgão, o Legislativo; corroendo ainda mais, e em velocidade exponencial, a frágil legitimidade de nossa quase-democracia.

Não vamos aliviar aqui os indivíduos – grande parte de nós nos desviamos e justificamos a violência, confusos como estamos.

Sei que tudo o que ocorre, ocorre por alguma razão. Muitas vezes, ou na maioria delas, não as identificamos, justamente por nossa limitação. Não somos os Senhores da Análise Social, e da apreensão total da Realidade.

Mesmo assim, acredito que podemos formar um novo mundo, estabelecer novas conexões, estimular novas relações.

Corremos o sério risco de perder muitas das conquistas alcançadas rumo à democracia. Uma regressão negativa.

Vejo o colapso de um mundo vivido até então. A isto, presto louvor e graças.

Contudo, vejo hienas rindo ininterruptamente. Soltas a vagar pela sociedade brasileira.

Elas são os mantenedores da ordem. Estão na política; estão na burocracia; estão assumindo participação no Estado via concurso público; estão em suas casas, assistindo televisão; estão na polícia; estão nas Universidades; estão ao nosso lado. Estão, até mesmo, em nós.

As hienas riem. E elas riem na cara da democracia. Riem na cara de todos. Riem na, e da, cara do Brasil. 

Elas riem porque o mundo permanece. Negam a Humanidade. E dão gargalhadas porque recebem apoio de mim, de ti.

Elas riem. Mas o mundo chora.
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quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O piloto e o Velho Saravá

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Chove forte. Cedo da manhã, bastante alagada, a cidade ferve. Entro no transporte coletivo. Observo. Procuro o sentido das ações. Um samba toca no radinho do motorista. Lembro-me do Vinicius de Moraes. Do centenário do poetinha. O condutor do veículo, colorado dos pés à cabeça, dialoga com o mundo a cada instante. Demonstra saber todas as rotas, quem pilota quais carros, quem faz corpo mole e tudo mais. Ele abre a janela e grita, aos risos, para o colega da linha São José:

- Te mexe, cachaceiro!!!

O simples trabalhador exibe uma sabedoria enorme acerca da mobilidade urbana na capital gaúcha. Quase ninguém dá bola para o rapaz. O samba permanece. Alegra a manhã. Pelo menos a minha, a do motora e a da cobradora. Recordo-me, outra vez, do Velho Saravá. Parafraseando o branco mais preto do Brasil, atribuo algum sentido para os acontecimentos: “Mesmo com todo o emblema, todo o problema, todo o sistema, toda Ipanema. A gente vai levando...”.

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quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Descartes e o método científico


“Eu estudara um pouco, sendo mais jovem, entre as partes da filosofia, a lógica, e, entre as matemáticas, a análise dos geômetras e a álgebra, três artes ou ciências que pareciam dever contribuir com algo para o meu desígnio. Mas, examinando-as, notei que, quanto à lógica, os seus silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar a outrem as coisas que já se sabem, ou mesmo, como a arte de Lúlio, para falar, sem julgamento, daquelas que se ignoram, do que para aprendê-las. E embora ela contenha, com efeito, uma porção de preceitos muito verdadeiros e muito bons, há todavia tantos outros misturados de permeio que são ou nocivos, ou supérfluos, que é quase tão difícil separá-los quanto tirar uma Diana ou uma Minerva de um bloco de mármore que nem sequer está esboçado. Depois, com respeito à análise dos antigos e à álgebra dos modernos, além de se estenderem apenas a matérias muito abstratas, e de não parecerem de nenhum uso, a primeira permanece sempre tão adstrita à consideração das figuras, que não pode exercitar o entendimento sem fatigar muito a imaginação; e esteve-se de tal forma sujeito, na segunda, a certas regras e certas cifras, que se fez dela uma arte confusa e obscura que embaraça o espírito, em lugar de uma ciência que o cultiva. Por esta causa, pensei ser mister procurar algum outro método que, compreendendo as vantagens desses três, fosse isento de seus defeitos. E, como a multidão de leis fornece amiúde escusas aos vícios, de modo que um Estado é bem melhor dirigido quando, tendo embora muito poucas, são estritamente cumpridas; assim, em vez desse grande número de preceitos que compõe a lógica, julguei que me bastariam os quatro seguintes, desde que tomasse a firme e constante resolução de não deixar uma só vez de observá-los.

O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.

O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las.

O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.

E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir”.

DESCARTES, René. Discurso do método. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Página 41.

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