Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
Todos os dias, querendo ou não, temos algum tipo de
obrigação que nos faz correr atrás de alguma coisa. Em geral, precisamos
trabalhar para ter acesso a bens e recursos escassos. Podemos dizer que o
capital econômico é uma espécie de “trunfo” nos “jogos sociais” cotidianos.
Comer bem, viajar, ter conforto em casa, poder desfrutar de práticas esportivas
e culturais, todas são atividades que, mais ou menos, estão ligadas a níveis
mínimos de satisfação do capital econômico. Renda e patrimônio possibilitam o
desenvolvimento de uma vida bastante autônoma e com muitos privilégios. A vida
na pobreza é o inverso. O Brasil é um país muito desigual quanto à distribuição
do capital econômico. Uma pequena classe de pessoas concentra volumes
altíssimos de riqueza material, e uma enorme parcela da população vive à míngua.
Se apenas o capital econômico importasse, bastaria desconcentrá-lo,
distribuí-lo melhor. Isso é fundamental e precisa ser feito, mas não é o único “trunfo”
disponível. É o caso de lembrar aquelas ocasiões em que conhecemos pessoas com
muita grana e pouco acesso a bens culturais. Em sociedades complexas como a
nossa, cujo fluxo de informação e conhecimento é muito intenso, rápido e
especializado, o capital cultural emerge como um “trunfo” tão importante e
objetivo quanto o econômico. O capital cultural se define pela familiaridade
com a cultura dominante, no nosso caso com a leitura e a escrita, a música, as
artes plásticas e cênicas, a literatura e a filosofia. Esse capital se
manifesta de três formas entrelaçadas: uma forma objetiva, através da posse de
bens culturais, como quadros, discos, livros e etc.; uma forma
institucionalizada, que é representada pela alta escolaridade, a posse de
“títulos acadêmicos”; e uma forma incorporada, que se manifesta na familiaridade
que a pessoa demonstra em meios culturais como teatros, museus, quanto ao
conhecimento dos grandes filmes e diretores, dos grandes romancistas e
teóricos.
A forma incorporada do capital cultural é determinante nas
nossas vidas e, muitas vezes, passa completamente despercebida. Incorporar a cultura
dominante significa mediar a objetividade do mundo exterior com a produção da
nossa individualidade. Isso formata a maneira como iremos agir diante das
diferentes situações que enfrentamos desde crianças, disposições duráveis mais
ou menos abertas, que nos fazem agir desse ou daquele jeito. Essas disposições
têm íntimas relações com o volume e o tipo de capitais que possuímos, revelando
prováveis homologias entre condições de existência e práticas culturais. As
lutas simbólicas são reconfigurações das lutas sociais objetivas que
classificam e desclassificam as pessoas de acordo com as “regras do jogo”, nas
quais os “trunfos” entram em cena e instrumentalizam as disputas.
Duas perguntas se impõem: quais as regras do “jogo” e por qual
razão, muitas vezes, as classes vulneráveis (com menor acesso aos capitais)
defendem “valores” que favorecem as classes abastadas? As regras do “jogo”, na
verdade, revelam o conteúdo moral que compõe as sociedades modernas. Nossos
valores morais derivam, ao menos em parte, da transformação ocorrida no
cristianismo desde a Reforma Protestante. A ideia dominante de “dignidade”
repousa sob o cidadão que carrega e executa a ética do trabalho produtivo, que
organiza o presente planejando o futuro, que racionaliza suas tarefas e
atividades, que é autocentrado e controla as suas emoções. Essa “dignidade” se
associa ao que poderíamos chamar de um “consenso transclassista” que
operacionaliza nossas concepções morais. Cobramos uns dos outros que não sejamos
“vadios” (esforço e dedicação levariam ao mérito), que nos organizemos, que nos
controlemos, justificando isso tudo porque assim se fortaleceria a igualdade
formal entre todos e, ao mesmo tempo, a possibilidade de sermos nós mesmos,
enquanto indivíduos autônomos.
Só que o consenso moral que nos atravessa culpabiliza o
indivíduo por fracassos que têm raízes relacionais e coletivas, martelando na
tecla da meritocracia sem que a igualdade formal seja efetivada na prática, o
que não deixa de ser contraditório. Assim, ficam nebulosas as relações de
desigualdade entre cada um de nós, sobretudo no tipo e no volume dos “trunfos”
que uns possuem muito mais do que os outros. A posse e a incorporação precária
desses “trunfos” fragiliza o desenvolvimento das disposições exigidas para a
vida nas modernas sociedades ocidentais. Cobra-se um tipo específico de
dignidade do vizinho ou do cidadão comum, sob o manto da “lei que é igual para
todos”, mas negligencia-se que a dinâmica social e as nossas ações produzem e
reproduzem o tempo inteiro as mesmas segregações e privilégios. A combinação
entre disposições precárias para a competição social (vinculadas à ausência de
recursos básicos) e um consenso moral que se apoia numa igualdade formal não
efetivada parece constituir um dos nossos mais graves problemas.
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