ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

sábado, 28 de novembro de 2015

Merecido soco no estômago

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Enquanto o Congresso Nacional pega fogo, os rejeitos da mineradora privada se espalham pelo litoral e o desânimo parece querer nos afogar num mar de lama podre, duas iniciativas micropolíticas ajudam a respirar melhor: além das muitas escolas ocupadas por estudantes em São Paulo, a movimentação feminina nas redes sociais, por meio da tag “Meu Amigo Secreto”.

A iniciativa das minas é corajosa e é um soco no estômago. Sim, no meu estômago e no de praticamente todos os homens que eu conheço. Quase nenhum escapa a, pelo menos, uma história relatada. Eu, certamente, não escapo. O que me enche de vergonha e me põe em estado de reflexão. Só que pensamento, vergonha e apoio a autonomia delas, apenas no âmbito do discurso, parece e é pouco, bem pouco. Mais importante – e difícil – é transformar tudo isso em práxis, em união de teoria e prática cotidiana.

Nunca fui e nunca serei protagonista das pautas feministas. Não sou mulher e desconheço, na pele, o que é ser uma mulher. Acho que uma responsabilidade masculina é produzir a autocrítica entre nós, homens, para dizer e fazer o mínimo. Sério que isso tudo te parece apenas ressentimento? Apenas mimimi? Vitimismo? Sério que te parece que as minas se acham o centro do universo? Por quê? Por que não reconhecemos os nossos privilégios, as violências psicológicas que perpetuamos ou os silenciamentos que produzimos? Não seríamos nós, homens, os autoproclamados donos do universo?

A justa porrada no estômago pode ter um caráter pedagógico. Já tá mais do que evidente que as minas vão se calar cada vez menos e que o protagonismo delas tá só começando. Ponto para um mundo melhor. A hora de aprender a escutar, a respeitar, a deixar de ser um escroto é agora. Não dá pra adiar. Reconhecer que serviu o chapéu pode ser um primeiro minúsculo passo. Reconheço.

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quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Sobre Norbert Elias


Norbert Elias nos ensina a perceber que há aspectos da sociedade que julgamos ter sempre existido, mas que passaram por um longo processo de desenvolvimento até tomar a forma que conhecemos. Isso vale para as formas de governo, para os modelos de família e também para as boas maneiras e os costumes. Aprendemos com ele que as normas são criadas e recriadas para conter os impulsos ou ações instintivas das pessoas e permitir que a sociabilidade ocorra dentro de uma linguagem comum a todos (os códigos de civilidade). Esss normas estão presentes em diversos aspectos da vida social, como nos esportes, na arte, nas relações entre os Estados nacionais etc. Por meio da civilidade, o indivíduo aprende a lidar com os integrantes de seu grupo e com os de grupos diferentes do seu.

Elias se dedicou ao estudo do desenvolvimento da civilidade no Ocidente a partir do século XVI, a que chamou de processo civilizador. Considerava esse período da história importante por um conjunto de razões: naquele momento o fundamento religioso cedeu espaço para o pensamento secular, a urbanização se acentuou e os mercadores abriram o diálogo com grupos diferentes fora do território europeu. Essas transformações se consolidaram em períodos mais avançados, mas foi no século XVI que ocorreu uma sistematização e difusão dos padrões de civilidade, através do manual de Erasmo de Rotterdam. Esse livro, muito lido na época, serviu como recurso para civilizar uma sociedade que deixava o meio rural e se firmava no meio urbano.

Um efeito indesejável do processo civilizador foi o que os antropólogos chamaram de etnocentrismo – uma visão de mundo em que o próprio grupo é tomado como centro de referência, e o diferente é visto de forma depreciativa. As fronteiras entre os civilizados e os bárbaros (ou selvagens) foi o que marcou a história ocidental no período moderno – é só lembrar os desdobramentos históricos do contato entre os brancos europeus, de um lado, e os negros africanos, os indígenas americanos, os orientais e outros grupos étnicos, de outro.

BOMENY, Helena; FREIRE-MEDEIROS, Bianca. Tempos Modernos, Tempos de Sociologia. São Paulo: Editora do Brasil, 2010. Página 103.

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sábado, 21 de novembro de 2015

Kant, Iluminismo e moral


A máxima expresssão do pensamento Iluminista se encontra em Immanuel Kant (1724-1804), que, para além da Crítica da Razão Pura, escreveu Crítica da Razão Política e Fundamentação da Metafísica dos Costumes, nas quais desenvolve a sua teoria moral.

A razão prática diz respeito ao instrumento para compreender o mundo dos costumes e orientar o homem nas suas ações. Analisando os princípios da consciência moral, Kant conclui que a vontade humana é verdadeiramente moral quando regida por imperativos categóricos. O imperativo categórico é assim chamado por ser incondicionado, absoluto, voltado para a realização da ação tendo em vista o dever.

Nesse sentido, Kant rejeita as concepções morais que predominam até então, quer seja da filosofia grega, quer seja da cristã, e que norteiam a ação moral a partir de condicionantes como a felicidade ou o interesse. Por exemplo, não faz sentido agir bem com o objetivo de ser feliz ou evitar a dor, ou ainda para alcançar o céu ou não merecer a punição divina.

O agir moral se funda exclusivamente na razão. A lei moral que a razão descobre é universal, pois não se trata de descoberta subjetiva (mas do homem enquanto ser racional), e é necessária, pois é ela que preserva a dignidade dos homens. Isso pode ser sintetizado nas seguintes afirmações do próprio Kant: “Age de tal modo que a máxima de tua ação possa sempre valer como princípio universal de conduta”; “Age sempre de tal modo que trates a Humanidade, tanto na tua pessoa como na do outro, como fim e não apenas como meio”.

A autonomia da razão para legislar supõe a liberdade e o dever. Pois todo imperativo se impõe como dever, mas a exigência não é heterônoma – exterior e cega – e sim livremente assumida pelo sujeito que se autodetermina.

Vamos exemplificar. Suponhamos a norma moral “não roubar”:

  • para a concepção cristã o fundamento da norma se encontra no sétimo mandamento de Deus;
  • para os teóricos jusnaturalistas (como Rousseau) ela se funda no direito natural, comum a todos os homens;
  • para os empiristas (como Locke, Condillac) a norma deriva do interesse próprio, pois o sujeito que a desobedece será submetido ao desprazer, à censura pública ou à prisão;
  • para Kant, a norma se enraíza na própria natureza da razão; ao aceitar o roubo, consequentemente o enriquecimento ilícito, elevando a máxima (pessoal) ao nível universal, haverá uma contradição: se todos podem roubar, não há como manter a posse do que foi furtado.

O pensamento de Kant foi importante para fornecer as categorias da moral Iluminista racional, laica, acentuando o caráter pessoal da liberdade. Mas, a partir do final do século XIX e ao longo do século XX, os filósofos começam a se posicionar contra a moral formalista kantiana fundada na razão universal, abstrata, e tentam encontrar o homem concreto da ação moral.

É nesse sentido que podemos compreender o esforço de pensadores tão diferentes como Marx, Nietzsche, Freud, Kierkegaard e os existencialistas.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1993. Página 285.

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sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Não fechem a minha escola!

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Um dia, eles disseram que não queriam mais estar na escola. Estavam exaustos daquilo tudo. Tá... havia gente ali que eles não queriam deixar pra trás. Mas, no geral, já não aguentavam mais. Muita cobrança e pouco diálogo.

No outro dia, ele e ela viram na TV que a sua escola iria ser fechada. O governador tinha decidido: já era, aquele e outras dezenas de colégios perderiam a vez. Ficaram confusos. Não sabiam mais o que sentir.

Dias depois, um sentimento estranho tomava conta deles e de muitos amigos. A escola era cheia de problemas e muitas vezes eles quiseram sair correndo dela, sem vontade de voltar. Só que era a escola deles. Era a escola da comunidade, a escola perto de casa. Pertencia a eles.

Num piscar de olhos, muitos outros sentiram coisas parecidas. Ah, não! Eles não iriam mesmo deixar que o pouco que eles tinham, que as poucas e débeis instituições do Estado que eles podiam desfrutar virassem moeda de troca pra um governo qualquer.

Noutro piscar, uma escola era ocupada. Ocupação organizada, tomada por estudantes, com cooperação, luta e alegria. Protagonismo. Esperança. Eles piscaram de novo e... uma, duas, três, oito dezenas de escolas haviam sido ocupadas. Eram eles os protagonistas. E eles não iriam recuar.

De longe, eu me emocionei. Enchi os olhos de lágrimas quando vi, pela TV, num almoço preparado coletivamente, estudantes protagonizando a sua história. Uma história de resistência à arbitrariedade daqueles que a tudo querem capitalizar. Não me segurei quando eles e elas fizeram seus professores desabarem em emoção, lembrando o quanto todos lhes nutriam afeto. A escola era deles e não iria ter arrego.

O arrepio da esperança, por vezes tão distante de mim, mostrou que ainda pode existir. E eu lembrei Mia Couto, emblemático como todo grande escritor: “No mundo que combato morro. No mundo por que luto nasço”.

Há um pedaço de outro mundo nascendo com os secundaristas de São Paulo. E não pode ter arrego.

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segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Paris, 2015

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Paris, 2015. Duas matanças de caráter terrorista. Tristes. Injustificáveis. Se a ideia for entender os acontecimentos, acho que será preciso ir um pouco além do que oferece a cobertura minuto-a-minuto-por-uma-semana da grande mídia. A não ser que se tenha interesse num grau elevado de sensacionalismo e irreflexão. Mais do mesmo.

Acompanhe a entrevista completa do Professor de Relações Internacionais da Unisinos (RS), Bruno Lima Rocha, sobre a origem e as principais características do Estado Islâmico

Iraque, 2005. Seria possível e até necessário ir mais longe do que isso. Porém, seguir os passos das análises do jornalista Patrick Cockburn pode ajudar, através da obra "A origem do Estado Islâmico". Segundo ele, a consolidação do poder do Estado Islâmico (ISIS) está ligada às intervenções militares ocidentais, sobretudo estadunidenses, no Oriente Médio. Trata-se de uma fissura da Al Qaeda, cuja doutrina unifica religião, militarismo e política, numa abordagem semelhante ao que rege o governo da Arábia Saudita – aliado histórico dos Estados Unidos.

Parte da Síria e do Iraque, 2015. Dominadas pelo ISIS, tais regiões são convertidas ao Califado extremista na base da força, do aniquilamento de outras vertentes muçulmanas que não a sunita, da tributação e do ataque ao patrimônio histórico da região - que guardaria uma espécie de memória a ser rejeitada. Só que também se concretiza o poder do ISIS através da prestação de serviços públicos básicos à população, como água e eletricidade, deixando tudo mais complexo.

Mundo, daqui por diante. De maneira contundente, o ISIS ataca muito mais do que as inocentes pessoas mortas: ataca grande parte dos valores idealizados pelo ocidente. Para isso, a França é um alvo perfeito. Local histórico de lutas por direitos civis, políticos e sociais, de defesa do Estado laico. Mas, não nos esqueçamos, nem por isso menos colonialista; nem por isso menos repleto de contradições internas.

O ponto que me faz temer o futuro mais do que esse próprio preocupante presente gira na roda das contradições internas, tanto dos territórios islâmicos (nem todos nas mãos do ISIS), quanto do ocidente. Se o extremismo islâmico é um perigo evidente, não deixa de ser um perigo evidente a islamofobia ou o crescimento do fascismo do século XXI, na civilização ocidental.

Serão capazes de se reorganizar e ganhar força entre os islâmicos os grupos ponderados e que interpretam o profeta Maomé de modo humanista e conciliador, enfrentando a barbárie praticada pelo ISIS dentro e fora dos seus territórios? Seremos capazes de fazer frente aos nossos governos ocidentais e seus grupos de apoio, sempre buscando capitalizar seus interesses geopolíticos e econômicos em qualquer parte "explorável" do planeta, doa a quem doer? Conseguiremos fazer dos valores ocidentais mais reais do que ideais, ou mesmo mais universais e menos seletivos?

Não dá pra ter certezas. Dá pra imaginar, contudo, como vai ser se o baile seguir tocando a mesma música com os mesmos dançarinos em movimento. A Guerra ao Terror e a Guerra ao Ocidente com efeitos semelhantes, espalhando muito sangue, fortalecidas internamente pelo medo, fomentando mais e mais ódios e segregações.

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quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O feminismo no Brasil


Quando Simone de Beauvoir, em 1949, em O segundo sexo, disse que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, expressou a idéia básica do feminismo: a desnaturalização do ser mulher. O feminismo fundou-se na tensão de uma identidade sexual compartilhada (nós mulheres), evidenciada na anatomia, mas recortada pela diversidade de mundos sociais e culturais nos quais a mulher se torna mulher, diversidade essa que, depois, se formulou como identidade de gênero, inscrita na cultura. Com base no movimento feminista brasileiro que se inicia na década de 1970, este texto pretende ressaltar a particularidade do feminismo como uma experiência histórica que enuncia genérica e abstratamente a emancipação feminina e, ao mesmo tempo, se concretiza dentro de limites e possibilidades, dados pela referência a mulheres em contextos políticos, sociais, culturais e históricos específicos.

Sem pretender, evidentemente, esgotar o sentido de uma experiência tão plural quanto polissêmica, dependendo do ângulo a partir do qual se olhe o feminismo, este artigo focaliza inicialmente a relação entre o contexto de autoritarismo político e a forma adquirida pelo feminismo no Brasil, para, a seguir, discutir impasses estruturais do feminismo. Argumenta-se que, embora influenciado pelas experiências européias e norte- americana, o início do feminismo brasileiro dos anos 1970 foi significativamente marcado pela contestação à ordem política instituída no país, desde o golpe militar de 1964. Uma parte expressiva dos grupos feministas estava articulada a organizações de influência marxista, clandestinas à época, e fortemente comprometida com a oposição à ditadura militar, o que imprimiu ao movimento características próprias.

Embora o feminismo comporte uma pluralidade de manifestações, ressaltar a particularidade da articulação da experiência feminista brasileira com o momento histórico e político no qual se desenvolveu é uma das formas de pensar o legado desse movimento social, que marcou uma época, diferenciou gerações de mulheres e modificou formas de pensar e viver. Causou impacto tanto no plano das instituições sociais e políticas, como nos costumes e hábitos cotidianos, ao ampliar definitivamente o espaço de atuação pública da a sociedade brasileira (…).

SARTI, Cynthia. O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma trajetória. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 12(2): 264, 2004.

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