ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 1 (16)

América do Sul, Brasil,

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

A polêmica na UFRGS e a superficialidade do jornal Zero Hora

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Este texto foi publicado também no sítio
do Observatório da Imprensa (edição 501)
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A Universidade Federal do Rio Grande do Sul tem se caracterizado, através da sua história, como um espaço de debates e de permanente indagação relacionados aos rumos da sociedade contemporânea. Foi assim com a criação do Campus do Vale, próximo a cidade vizinha de Viamão, quando os militares que dirigiam o país – conforme contam alguns professores – destinaram para esta localidade de distância extremada naquele momento alguns dos cursos que mais argüiam contra a ditadura. Está sendo assim, nestes últimos anos, no que concerne às eleições para o Diretório Central dos Estudantes, às ações afirmativas, ao REUNI, etc.

Pois é nesse contexto que uma parede (sim, uma parede) toma conta das polêmicas que circundam, de tempos em tempos, nossa universidade. Ao entrar no Campus do Vale, aquele mesmo, próximo a Viamão, no qual estão alocados diversos departamentos de ensino e pesquisa, damos de cara com o prédio que abriga as salas de aula do curso de Letras. A parede frontal do edifício das Letras (recinto que outrora era dividido com o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) encontrava-se pichada, com algumas citações, descascada, além de servir de mural para cartazes políticos ou não. De fato, não se tratava de uma visão esteticamente bonita. Não era, todavia, desagradável para os olhos alheios; tratava-se apenas de uma parede.

Há cerca de três ou quatro meses, um grupo de alunos ligado ao Diretório Central dos Estudantes tomou uma iniciativa própria, sem autorização prévia da direção universitária, e reformulou a mencionada parede que dá acesso ao Campus do Vale. No lugar da tinta descascada, das frases soltas e perdidas, dos cartazes e do fundo “branco”, os estudantes pintaram um grande painel, no estilo graffiti, ostentando os seguintes dizeres: “Para que(m) serve o teu conhecimento?”. Estaria por vir a mais nova polêmica.

Pano de fundo: debate ideológico

Outro grupo de estudantes tratou de acionar a Secretaria de Assuntos Estudantis para reclamar o fato de a pintura não ter sido autorizada, e portanto constituir crime de depredação do patrimônio público. De imediato, a SAE arquivou o processo, justificando que aquele espaço estava historicamente ligado às reivindicações e proposições filosóficas dos graduandos, o que de certa forma representa a realidade.

Olhando de fora, sem muita profundidade, parece que estamos diante de um crime e de uma falta de respeito às autoridades, um atentado à autonomia da Universidade Pública. Sob os aspectos legais, sem dúvidas, trata-se de uma atitude pouco aconselhável, na medida em que poderia gerar (e acabou gerando) represálias por parte de quem se sentisse agredido (?) pelo acontecimento. Mas a história não é tão simples assim, tampouco somente de aspectos legais pulsa a vida acadêmica na UFRGS, muito pelo contrário.

O papel do conhecimento científico está na berlinda, digamos assim, há bastante tempo. Inúmeros pensadores fixaram suas atenções naquilo que poderíamos chamar de “conhecimento do conhecimento”, ou epistemologia. A professora do Departamento de Sociologia da UFRGS, Eva Machado Barbosa, conta um pouco dessa trajetória:

A questão do conhecimento de segunda ordem, ou do conhecimento do conhecimento, na expressão de Morin (1987), se fez presente no ocidente, de maneira explícita, pelo menos a partir da lógica aristotélica [...] Com o surgimento da ciência na Idade Moderna, ou melhor, com a diferenciação do conhecimento científico a partir da matriz filosófica original, a questão do conhecimento de segunda ordem, como lógica, gnoseologia, teoria do conhecimento, filosofia da ciência, epistemologia – ou que outro nome ainda se queira dar a esse domínio – tornou-se cada vez mais central, alcançando momentos de auge em obras de pensadores como Descartes, Locke, Hume, Kant e Hegel [BARBOSA, Eva Machado. Conhecendo o conhecimento: questões lógicas e teóricas na crítica da ciência e da razão. In: Cadernos de Sociologia, Porto Alegre, vol. 10 (Teoria Social: Desafios de uma Nova Era), p. 11].

Podemos observar, nesse sentido, que não é de hoje que os sujeitos humanos se debruçam sobre as questões que envolvem o conhecimento. Desde Karl Popper e os critérios de refutação e/ou testabilidade; passando por Gaston Bachelard e sua tentativa de psicanalisar o conhecimento; até chegar em Pierre Bourdieu e a necessidade da chamada vigilância epistemológica, perdura um caminho tortuoso, de rupturas e continuidades, de muitas discussões e interpretações distintas.

No episódio que polariza a universidade, o que está por trás de toda a discussão acerca da pintura da parede são diferentes posições ideológicas, posturas políticas frente ao papel do conhecimento científico construído nas suas entranhas. Para que ou para quem ele deve servir? Para nada, para alguns, para todos, para ninguém? Devemos nos questionar sobre isso?

Mesmo que alguns teóricos pós-modernos tenham decretado o fim das ideologias, do trabalho e da verdade enquanto conceito, na prática, a disputa política e ideológica está presente na rotina diária, visível ou disfarçada, mas presente. Os autores do painel que originou a polêmica defendem sem ruídos um projeto de ensino superior mais popular, voltado para a aproximação com a comunidade e que não apenas privilegie o mercado e o empreendedorismo, mas também procure democratizar o acesso ao saber e a crítica social, fatos ainda muito distantes no que tange à nossa instituição. Por outro lado, seria bastante ingenuidade, amigos leitores, pensarmos que a motivação da pessoa que moveu o processo para a retirada do graffiti em voga esteja vinculada apenas a uma espécie de “legalismo patriótico”, ainda mais se atentarmos para o fato de que tal indivíduo é membro de um movimento específico de atuação contrária às cotas raciais, via de exemplo. Não esqueçamos, porém, que nada impede que optemos pela ingenuidade, desde que possamos identificá-la...

Zero Hora e a desinformação

Tudo o que foi relatado até agora ganhou destaque no maior veículo de comunicação impresso do Rio Grande do Sul. Façamos uma pergunta clara: qual seria o papel deste jornal, para que pudesse cumprir uma função informativa de qualidade?

Independente da possível resposta, Zero Hora trabalhou sua cobertura até o momento em que escrevemos (sábado, 30 de agosto) enfatizando a questão legal dos acontecimentos. Para nosso juízo, é imperativo que tal cobertura abordasse esse viés, na medida em que não devemos esquecer, num piscar de olhos, a existência das legislações vigentes. Neste primeiro comentário, ponto para Zero Hora e seus jornalistas.

No entanto, com o intuito de situar seus consumidores de maneira mais inteligente, Zero Hora investigaria profundamente o pano de fundo citado acima, isto é, o debate ideológico que a própria inscrição polêmica levanta. Ao contrário disso, até agora o impresso mantém uma postura “legalista”, sem explicar o teor dos movimentos políticos que disputam a supremacia nesse conflito, seus projetos e perspectivas.

Ao saber da pintura, o estudante de Ciências Contábeis Anderson Gonçalves, 35 anos, integrante do Movimento Estudantil Liberdade (MEL), abriu processo administrativo junto à universidade para saber se a parede havia sido cedida aos alunos. No documento, ele classificou o ato como vandalismo, identificou um dos responsáveis e pediu a punição do grupo [Zero Hora, 26 de agosto de 2008, p. 44].

Nesse caso, para que a mídia pudesse ser minimamente isenta, comprometida com a sociedade, Zero Hora arcaria com sua responsabilidade e esboçaria uma tentativa (pelo menos) de contextualizar a “questão quente” movimentada por detrás de uma pendência estéril. Para fugir dos grilhões de um assunto vago, qual seja, a legalidade ou não da pintura, a retomada sintética das concepções políticas daqueles que pintaram o painel e daqueles que se opuseram a ele, mas também os respectivos significados que ambos os grupos atribuem ao conhecimento científico e suas “utilidades” promoveriam um nível de qualidade superior ao tradicional periódico.

Numa época em que o jornalismo consiste, ao fim e ao cabo, em um tipo de indústria que fabrica a desinformação, a busca pela profundidade poderia ajudar a salvá-lo do pior. Entretanto, talvez seja mais fácil vender informações superficiais, ao passo em que a profundidade aqui requisitada poderia desestabilizar alguns pilares edificantes na atualidade daquilo que Gramsci [Cf. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Volume 2. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.] alcunhou “aparelhos privados de hegemonia”.

Anexos (endereços para visitar as matérias de Zero Hora, realizadas até o dia 30/08/08, disponíveis durante 30 dias na internet)

26 de agosto de 2008, “Parede pintada gera processo na UFRGS”

27 de agosto de 2008, “Diretor critica decisão da UFRGS que liberou grafite”

27 de agosto de 2008, “’Fui muito ingênua’, diz autora”

28 de agosto de 2008, “Mais tinta na parede da controvérsia”

Autoria: Bernardo Caprara