ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Mannheim e a Sociologia do Conhecimento


Em Ideologia e Utopia, Mannheim, antecipando em décadas tendências da epistemologia e da Sociologia do Conhecimento mais recentes, vai censurar uma reflexão epistemológica normativa e apriorística que insistia em ignorar o “problema de como os homens realmente pensam” nos contextos concretos da vida cotidiana, problema esse, contudo, iniludível numa investigação empírica acerca do conhecimento humano. Segundo ele, os epistemólogos erravam ao identificar o conhecimento tal como o concebiam – o produto lógicolinguístico de um sujeito epistêmico abstrato, isolado, desvinculado de qualquer situação existencial – como a única forma possível do conhecimento confiável, desqualificando, assim, aqueles modos de pensamento que resultavam da vida social, nasciam das práticas e para as práticas desenvolvidas no âmbito dessa vida.

Mannheim concede aos epistemólogos – uma concessão que soaria inaceitável aos defensores do chamado programa forte de Sociologia do Conhecimento – ser, de fato, possível encontrar um saber no qual buscaríamos em vão as marcas distintivas de um mundo social particular, um saber destituído, nesse sentido, de raízes sociais e ativistas, expressão, na verdade, de um “ponto de vista de nenhum lugar”, na formulação tão sugestiva de Thomas Nagel. Tal saber não constituía, portanto, concede Mannheim, uma invencionice filosófica, pura ficção normativa cuja única função seria proporcionar um padrão transcendental com base no qual uma epistemologia normativa e apriorística, cada vez mais distanciada das ciências empíricas particulares, decidia taxativamente acerca daquilo que devia ou não contar como conhecimento racional. Mannheim não vai tão longe assim em sua crítica da reflexão epistemológica! O conhecimento tal como os epistemólogos o concebiam, admite ele, de fato existia. Contudo, prossegue Mannheim, esse conhecimento só podia ser encontrado em campos especiais da investigação científica, nas ciências naturais e exatas, não esgotando, portanto, o universo do conhecimento humano confiável. Cabia incluir também, nesse universo, aquele saber existencialmente condicionado, perspectivista, ligado à ação, do qual os indivíduos (aí se incluindo os epistemólogos!) sempre se valiam quando precisavam tomar decisões práticas nos contextos da vida coletiva. Não havia razão para excluí-lo, não havia razão para estabelecer uma disjunção total, exclusiva, entre tal saber e aquilo que admitíamos como conhecimento confiável. O saber formal, abstrato, desenraizado, cuja expressão mais acabada podia ser encontrada nas ciências naturais e exatas, não constituía, ao contrário do que sugeria a reflexão epistemológica, todo o conhecimento humano possível.

Contra os epistemólogos de seu tempo, mas também, em larga medida, contra a teoria da ideologia em Marx, que insistiam em vincular o erro intelectual, a cegueira ideológica, na linguagem marxista, à influência negativa das situações existenciais no mundo das ideias, Mannheim vai afirmar a possibilidade do conhecimento objetivo existencialmente enraizado (…).

GUSMÃO, Luís de. A Crítica da Epistemologia na Sociologia do Conhecimento de Karl Mannheim. Revista Sociedade e Estado, volume 26, número 1, 2011.

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quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Gabriel Tarde, monadologia e sociologia


(…) Desde o início de Monadologia e sociologia, a surpresa é inevitável: em vez de fazer a sociologia surgir de uma ruptura radical com a filosofia, Tarde busca na filosofia os princípios ontológicos de um "ponto de vista sociológico universal" (p. 58). Para tanto, ele convoca uma intrincada noção: "as mônadas, filhas de Leibniz" (p. 19). Em Leibniz (1714), as mônadas são as partículas elementares, as substâncias simples de que os compostos são feitos. Elas são, portanto, diferenciadas (dotadas de qualidades que as singularizam umas em relação às outras) e diferenciantes (animadas por uma potência imanente de mudança contínua ou de diferenciação). Além disso, ou por isso mesmo, elas dizem respeito às nuances ao infinitamente pequeno, ao infinitesimal que constitui toda (a) diferença. A hipótese das mônadas implica, portanto, a afirmação da diferença como fundamento da existência e, conseqüentemente, a renúncia ao dualismo cartesiano entre matéria e espírito e àqueles que lhe são correlatos – particularmente o dualismo natureza/sociedade tão caro a Durkheim, que lhe confere proporções ontológicas no postulado do homo duplex.

O que Tarde propõe, no entanto, é uma "monadologia renovada" (p. 46), vale dizer, uma teoria social que retenha, de Leibniz, o princípio da continuidade (que fundamenta o cálculo infinitesimal) e o dos indiscerníveis (ou da diferença imanente), e que abra mão dos princípios da clausura e da razão suficiente (em suma, da hipótese de Deus) em que Leibniz havia encerrado as mônadas. Nem absolutamente espirituais, nem integralmente materiais, em Tarde as mônadas não são, como em Leibniz, as substâncias simples que entram nos compostos: "esses elementos últimos aos quais toda ciência chega – o indivíduo social, a célula viva, o átomo químico – somente são últimos ao olhar de sua ciência particular", afirma Tarde (p. 23), "eles mesmos são compostos", compostos até o infinitesimal. Tarde rompe a clausura das mônadas leibnizianas da mesma forma que os cientistas haviam quebrado o átomo: se os átomos são turbilhões, as entidades finitas não constituem totalidades sui generis, mas integrações de diferenças infinitesimais, no sentido emprestado ao termo pelo cálculo infinitesimal (pp. 23-24). As mônadas são composições elementares infinitesimais, o que faz de "todo fenômeno [...] uma nebulosa de ações emanadas de uma multiplicidade de agentes que são como pequenos deuses invisíveis e inumeráveis" (p. 55). Para Tarde, portanto, os "verdadeiros agentes seriam [...] esses pequenos seres que dizemos ser infinitesimais, e as verdadeiras ações seriam essas pequenas variações que dizemos ser infinitesimais" (p. 27, g.a.). Surpreendentemente, é em pleno desenvolvimento da ciência que Tarde vai encontrar esses pequenos deuses se atualizando, pois, para ele, o que a ciência tem feito, "a despeito dos próprios cientistas" (p. 19), não é exorcizar as mônadas, mas acolhê-las em seu âmago, procurando por toda parte no pequeno a resposta para o grande, vale dizer, pulverizando o universo e multiplicando indefinidamente os agentes infinitesimais do mundo (p. 31).

(…) Enfim, o que Tarde propõe é que levemos a sério a noção de infinitesimal e o que ela implica: considerar a diferença como relação (e vice-versa) e não como termo (ou unidade discreta), como dinamismo de uma potência e não como atributo de uma essência. Trata-se, com Tarde, de cultivar a possibilidade de uma teoria social que ponha em suspensão (e suspeição) a antinomia entre o contínuo uniforme e o descontínuo pontual ou, mais precisamente, que pense as entidades finitas como casos particulares de processos infinitos, as situações estáticas como bloqueios de movimento, os estados permanentes como agenciamentos transitórios de processos em devir (e não o contrário), com bem notou Milet (1970, pp. 158-159).

VARGAS, Eduardo Viana. Multiplicando os agentes do mundo: Gabriel Tarde e a sociologia infinitesimal. Revista Brasileira de Ciências Sociais, volume 19, número 55, São Paulo, 2004.

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terça-feira, 27 de outubro de 2015

Sem doutrinação

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O Enem 2015 deixa um rastro de chorume pela internet. O foco do esgoto verbal se divide em dois: a prova de Ciências Humanas e o tema da redação. Afirma-se que se tratam de evidências cabais do comunismo do MEC/PT/Foro de SP.

A doutrinação do marxismo petista começaria pela prova de Humanas. Aliás, no fundo, o pessoal do chorume considera as Ciências Humanas em si uma doutrinação petralha. Para eles, Lula inventou essas matérias para, junto com Obama, consolidar o comunismo interplanetário. Vai vendo, dizem em tom profético.

Na real, a prova de Humanas tem, sim, um perfil crítico à esquerda. O que é muito diferente de ser uma cartilha socialista. Max Weber, David Hume, Karl Mannheim e Sérgio Buarque de Holanda, para citar só uns exemplos, jamais poderão ser alocados no grupo dos revolucionários esquerdistas. Chega a ser cômico tentar enquadrá-los nesse rótulo.

Poderia se objetar que a prova teria que ser mais "equilibrada" politicamente. Ok, poderia. Só que, outra vez, isso difere bastante do brado contra um "comunismo explícito" do MEC. O que me parece estar por trás dessa verborragia toda é mais um ataque à possibilidade de que um perfil crítico à esquerda possa estar presente numa avaliação educacional. Um ataque à pluralidade em nome da pluralidade.

O chorume fica ainda mais regorgitante nas críticas à Simone de Beauvoir e ao tema da redação. O fato é que, se abordar a necessidade de direitos iguais entre homens e mulheres representa uma posição esquerdista, assim como o fim da violência de gênero, isso diz muito mais da direita do que da esquerda. Isso deveria envergonhar os liberais autênticos, mas no Brasil muitos deles costumam se juntar às fileiras do pessoal do esgoto verbal.

Por fim, embora aparentemente democrático, por tentar valorizar competências e habilidades, o Enem parece enganar mais do que transformar o acesso à Universidade. Sobretudo pelo fato destacado há anos pelo pesquisador Simon Schwartzman: segue a hierarquização escolar e a sua relação com os resultados do exame e não há modificação significativa na estrutura das desigualdades de oportunidades educacionais - estudantes com melhores condições socioeconômicas tendem a pegar as melhores vagas, inclusive longe de casa.

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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Não se pode desistir

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Seria inacreditável, não fosse realidade. Homens adultos vomitando o seu desejo sexual sobre uma menina de 12 anos, participante de um programa qualquer de televisão. Esse acontecimento escroto, que me deixa envergonhado por ser homem, acionou a lembrança de uma história que uma amiga me contou há bastante tempo.

Ela estava numa reunião de família. Sentada à mesa de jantar, rodeada pelos parentes, escutara nitidamente a fala mansa da sua avó:

- Hoje, pensando bem, se eu pudesse escolher, nasceria homem.

Os adultos têm a mania de tratar os adultos envelhecidos como crianças grandes. Algo análogo acontecera naquela noite. Ninguém entendera nada. Todos julgaram se tratar de um devaneio da senhora, uma viagem de quem já não sabia o que falava.

Contudo, para a sua neta, no auge da juventude, aquela frase parecera carregar algo mais. Não se tratara de afirmar que ser mulher era inerentemente ruim ou que as mulheres eram piores do que os homens. Não se tratara de uma blasfêmia contra si mesma. A jovem sabia que sua avó não pensava assim. Parecera, isso sim, uma sentença bastante pragmática.

Aquela frase deveria dar vergonha a todos os homens presentes. Minha amiga relatou o sentimento de que a frase carregava uma história de piadas, assédios, violências, silêncios, ausências e solidões muito particulares, mas de alguma forma comuns a muitas mulheres. Ocorrências que nenhum homem conhecia, conhece ou conhecerá como uma experiência pessoal. Ela dizia o óbvio.

Diante do meu silêncio envergonhado, sabedora do meu apoio integral e coadjuvante aos seus argumentos, minha parceira confiou uma das mudanças principais na sua vida. Disse-me que, a partir daquela data, botara na cabeça a ideia de fazer tudo o que fosse possível para que nenhuma mulher ao seu redor chegasse à velhice não querendo ser uma mulher. E que, depois daquele dia, não mais seria possível desistir dessa tarefa.

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quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Por que ser professor?

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Certa vez, numa das minhas primeiras experiências como professor, ainda em dúvida quanto a minha capacidade de enfrentar o ofício, uma estudante parou o que fazia, olhou nos meus olhos e disse: “Já sei o que vou ser, vou ser professora”.

Espantado, meio atônito, fiquei uns segundos pensando no que responder. Pensei em alertá-la sobre todas as tretas cotidianas. Pensei em dizer pra ela que muita gente a olharia com desdém; que ela teria baixos salários e condições desumanas de trabalho; lidaria com o desinteresse geral muitas vezes; arriscaria a sua saúde física e mental; provavelmente apanharia da polícia ou seria chamada de doutrinadora; enfim, pensei em resumir pra ela que o bicho pega nessa profissão.

Pensei, ainda, que estava sendo muito pessimista e não poderia passar isso para aquela menina cujos olhos insistiam em brilhar. Pensei em dizer para ela que todos os dias o trampo ia ser diferente; que ela poderia dar boas risadas nas salas de aula lotadas de gente; que um sorriso, um abraço ou uma palavra de conforto sempre chegariam, mesmo que oriundos apenas de alguns dos seus alunos; pensei, sobretudo, em dizer para ela que a vida de professor ainda tem um sentido importante e é tomada por pequenas bonitezas.

Paralisado, só consegui perguntar: “Por que tu queres ser professora?”. A garota, com aquela objetividade adolescente, não titubeou no veredito simples e sincero. Tascou na lata aquilo que por vezes a gente não consegue mais sentir ou ver. “Ah, professor. Com alguns de vocês a gente voa longe, a gente sente o coração bater mais forte e tem vontade de entender o mundo. A gente se sente bem. Eu quero levar isso pra outras pessoas”.

E assim, como se contasse uma obviedade para um amigo, aquela estudante bateu o martelo e dirimiu as minhas dúvidas. Não tinha mais como fugir da docência.

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quarta-feira, 14 de outubro de 2015

O que é pedagogia?


Paidagogia designava, na Grécia antiga, o acompanhamento e a vigilância do jovem. O paidagogo (o condutor da criança) era o escravo cuja atividade específica consistia em guiar as crianças à escola, seja a didascaléia, onde receberiam as primeiras letras, seja o gymnásion, local de cultivo do corpo.

Nos nossos tempos, o termo pedagogia ganha outras conotações. Três tradições de estudos educacionais se responsabilizam pela sua configuração atual: a francesa, na linha da sociologia de Émile Durkheim (1858-1917), e as tradições alemã e americana, segundo as filosofias e psicologias de Johann Friedrich Herbart (1776-1841) e John Dewey (1859-1952).

Entre o final do século XIX e o início do XX, Durkheim se empenha em conceituar "pedagogia", "educação" e "ciências da educação". A educação é definida como o fato social pelo qual uma sociedade transmite o seu patrimônio cultural e suas experiências de uma geração mais velha para uma mais nova, garantindo sua continuidade histórica. A pedagogia, por sua vez, é vista não propriamente como teoria da educação, ou pelo menos não como teoria da educação vigente, mas como literatura de contestação da educação em vigor e, portanto, afeita ao pensamento utópico. Contrariamente, teorias da educação real e vigente deveriam seguir as ciências da educação. Essas seriam compostas, principalmente, pela sociologia e pela psicologia. À primeira, Durkheim incumbe de substituir a filosofia na tarefa de propor fins para a educação; à segunda caberia o trabalho de fornecer os meios e instrumentos para a didática.

Herbart, antes de Durkheim, e Dewey, concomitante e após ele, compreendem o termo pedagogia no interior de outras constelações conceituais. Herbart não separa ciência e pedagogia; ao contrário, é exatamente ele o formulador, em nossos tempos, da idéia da "pedagogia como ciência da educação". Para tal, fundamenta a pedagogia na psicologia. Dewey, por outro lado, não separa pedagogia e filosofia.

Dewey pertence a uma corrente filosófica denominada pragmatismo. Podemos dizer que a contribuição dessa corrente para a discussão filosófica contemporânea é a contestação da idéia tradicional de verdade — a verdade como correspondência — em favor da idéia pragmática de verdade — "a verdade é o útil". Sendo assim, uma filosofia, ou melhor, uma teoria do conhecimento de cunho filosófico, pode ser vista como verdadeira, para Dewey, a partir de seus resultados práticos — sua "utilidade". Ora, pergunta Dewey, qual o melhor lugar para averiguar a veracidade — a validade — de uma teoria do conhecimento senão na situação de ensino? Desse modo, Dewey subverte a consagrada relação entre filosofia e educação. O importante é menos o estabelecimento de fins para a educação propostos pela filosofia e mais a averiguação da veracidade de uma filosofia (uma teoria do conhecimento) proporcionada pela educação. A educação torna-se o banco de provas da filosofia. A filosofia, então, é uma filosofia da educação. Pedagogia, filosofia e filosofia da educação, na concepção deweyana, tornam-se, em alguma medida, sinônimos.

Herdeiros dessas três tradições, os estudiosos contemporâneos da educação utilizam-se do termo pedagogia, alternada ou concomitantemente, negativa ou positivamente, nas acepções definidas acima, isto é, como utopia educacional, como ciência da educação e como filosofia da educação.

GHIRALDELLI JR., Paulo. O que é pedagogia? – Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006. Páginas 8 e 9.

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Paulo Freire e a criticidade


Não há para mim, na diferença e na “distância” entre a ingenuidade e a criticidade, entre o saber de pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, uma ruptura, mas uma superação. A superação e não a ruptura se dá na medida em que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser curiosidade, se criticiza. Ao criticizar-se, tornando-se então, permito-me repetir, curiosidade epistemológica, metodicamente “rigorizando-se” na sua aproximação ao objeto, conota seus achados de maior exatidão.

Na verdade, a curiosidade ingênua que, “desarmada”, está associada ao saber do senso comum, é a mesma curiosidade que, criticizando-se, aproximando-se de forma cada vez mais metodicamente rigorosa do objeto cognoscível, se torna curiosidade epistemológica. Muda de qualidade, mas não de essência. A curiosidade de camponeses com quem tenho dialogado ao longo de minha experiência político-pedagógica, fatalistas ou já rebeldes diante da violência das injustiças, é a mesma curiosidade, enquanto abertura mais ou menos espantada diante de “não-eus”, com que cientistas ou filósofos acadêmicos “admiram” o mundo. Os cientistas e os filósofos superam, porém, a ingenuidade da curiosidade do camponês e se tornam epistemologicamente curiosos.

A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta faz parte integrante do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos.

Como manifestação presente à experiência vital, a curiosidade humana vem sendo histórica e socialmente construída e reconstruída. Precisamente porque a promoção da ingenuidade para a criticidade não se dá automaticamente, uma das tarefas precípuas da prática educativo-progressista é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita, indócil. Curiosidade com que podemos nos defender de “irracionalismos” decorrentes ou produzidos por certo excesso de “racionalidade” de nosso tempo altamente tecnologizado. E não vai nesta consideração nenhuma arrancada falsamente humanista de negação da tecnologia e da ciência. Pelo contrário, é consideração de quem, de um lado, não diviniza a tecnologia, mas, de outro, não a diaboliza. De quem a olha ou mesmo a espreita de forma criticamente curiosa.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2010. Páginas 31-32.

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Bourdieu e a noção de habitus


(…) A temática em torno da noção de habitus remete ao debate sobre ação e estrutura, indivíduo e sociedade. Do estruturalismo ao individualismo metodológico, diferentes enfoques foram e são atribuídos a essa discussão. Bourdieu reconfigura o conceito de habitus para tentar dar conta dessa dicotomia que acredita se consolidar como uma falsa dicotomia mutiladora.

(…) O habitus é a maneira como as estruturas sociais se imprimem na racionalidade e no corpo dos agentes, por meio da interiorização da exterioridade. Um sistema de disposições duráveis e transponíveis, em que as múltiplas respostas às variadas situações são dadas a partir de um conjunto limitado de esquemas de ação e pensamento.

(…) O habitus é, em algum sentido, uma história incorporada, uma quase-natureza. Os agentes relegam esses atributos, ainda que eles estejam no âmago das suas práticas. Eles funcionam como uma presença operante do pretérito do qual o habitus é resultante. Justamente é o habitus que dá às práticas o caráter de independência relativa aos condicionamentos exteriores da realidade instantânea.

(…) Trata-se de um princípio gerador, incrementado com contidas improvisações mais ou menos duradouras. Vige na homogeneidade objetiva do habitus de grupos ou classes o produto das relativamente homogêneas condições de existência, fato que institui a possibilidade de as práticas serem exercidas sem o uso de cálculos estratégicos ou indicações conscientes a uma regra ou norma. O habitus configura-se como uma lei imanente impressa no corpo dos agentes por intermédio de semelhantes histórias. Um a um, os sistemas de disposições de cada agente atuam com as feições de variações estruturais uns dos outros, em que se manifestam as singularidades dos agentes nas suas classes e trajetórias.

CAPRARA, Bernardo. A sociologia de Pierre Bourdieu: sistemas de ensino e reprodução social. In: CAPRARA, Bernardo. A influência do capital cultural no desempenho estudantil: reflexões a partir do Saeb 2003. Dissertação de Mestrado Acadêmico, PPG Sociologia UFRGS, 2013.

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sábado, 10 de outubro de 2015

Bauman, May e a sociologia


(…) O pensamento sociológico, como um poder antifixação, é, dessa maneira, um poder em seu próprio direito. Ele torna flexível aquilo que pode ter sido a fixidez opressiva das relações sociais e, ao fazer isso, abre um mundo de possibilidades. A arte de pensar sociologicamente consiste em ampliar o alcance e a efetividade prática da liberdade. Quanto mais disso aprender, mais o indivíduo será flexível diante da opressão e do controle, e portanto menos sujeito a manipulação. É provável que ele também se torne mais efetivo como ator social, uma vez que passa a ver conexões entre suas ações e as condições sociais, assim como a possibilidade de transformação daquelas coisas que, por sua fixidez, se dizem imutáveis, mas estão abertas à transformação.

Há também o que se encontra para além de nós como indivíduos. Dissemos que a sociologia pensa de forma relacional para nos situar em redes de relações sociais. Faz, assim, uma apologia do indivíduo, mas não do individualismo. Nesse sentido, pensar sociologicamente significa entender de um modo um pouco mais completo quem nos cerca, tanto em suas esperanças e desejos quanto em suas inquietações e preocupações. Podemos então apreciar melhor o indivíduo humano contido nesse coletivo e talvez aprender a respeitar aquilo que toda sociedade civilizada tem de garantir para se sustentar: o direito de cada membro do coletivo escolher e pôr em prática maneiras de viver de acordo com suas preferências (…).

BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. Página 26.

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terça-feira, 6 de outubro de 2015

Um dilema quente

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Um dos fenômenos mais assustadores do Brasil é a violência urbana. O número de mortes por armas de fogo se assemelha a uma guerra. Além do medo no dia a dia, esse cenário de insegurança produz, também, alguns dilemas morais. Gostaria de explorar um deles. No final, não pretendo apresentar uma resposta para ele, mas discutir uma das matrizes filosóficas possíveis para respondê-lo.

Imagine uma das maiores e mais belas cidades do nosso país ardendo em pleno verão. O calor está insuportável. Por sorte, há belas praias na região. Nas areias, todos se sentem mais longe do inferno. Porém, arrastões têm se repetido nas principais orlas e adjacências, o que gera descontentamento da população e estimula um clima belicoso de vingança em alguns grupos autoproclamados “justiceiros”.

Você está num ônibus que saiu do centro, louco para chegar à beira de uma das praias mais requisitadas da metrópole. É sabido que, nas proximidades da praia, a polícia está de prontidão para reter jovens pobres e negros que são considerados os protagonistas dos arrastões. Esses jovens costumam chegar através de linhas de ônibus específicas, não por acaso aquelas que são paradas pela polícia.

Voltemos à sua vontade de chegar à praia. No ônibus, você observa ao seu redor. À esquerda, você acredita enxergar um rapaz do seu bairro. Você não tem certeza de que é ele, mas está quase convicto de que se trata do rapaz. Sua espinha fica gelada. Você lembra que, um dia antes, cruzou pelo rapaz e um grupo de amigos que tramavam um arrastão nas orlas da cidade. Eles estavam cheios de ódio. Você recorda que a combinação deles era a seguinte: quando o rapaz que você acredita estar no seu ônibus chegasse à praia, por meio de uma linha de ônibus não suspeita, todos se encontrariam com outros grupos de jovens e começariam a operação nas areias. A operação só começaria com a chegada do rapaz.

Logo, o seu ônibus irá passar pela batida da polícia. Mas não será parado. Não é um dos coletivos que desperta suspeita. Você começa a ficar nervoso. Não sabe o que fazer. Deve delatar o rapaz ao cobrador, que está localizado ao seu lado, possibilitando que o cobrador peça ao motorista que pare na blitz e que o rapaz seja, no mínimo, revistado? Você não será percebido como o x9, ninguém saberá da sua delação. Por não estar certo de que o rapaz seja mesmo o rapaz que você sabe que será o líder dos arrastões, você deve ficar quieto com seus receios?

Aparentemente, há uma resposta simples para esse dilema moral. No intuito de que o bem-estar geral da população que frequenta a praia esteja garantido, você deve delatar o rapaz. Esse é um princípio que pode ser associado ao pensamento utilitarista, aqui entendido pela filosofia do britânico Jeremy Bentham (1748-1832). A ideia pode ser simplificada, por motivos pedagógicos. Para saber o que é fazer a coisa certa, basta fazer o cálculo da utilidade da ação. Se a consequência da ação maximizar a felicidade e o bem-estar geral, a utilidade, esta será uma ação moralmente correta, independente de sacrifícios individuais que possam advir da ação. O que importa é maximizar o prazer e diminuir a dor da maioria.

Pensando nisso, você está quase certo de que precisa delatar o suposto líder criminoso que você acredita estar presente no ônibus que se aproxima da orla. Quase lá, você observa ao seu redor outra vez. À direita, você visualiza um grupo de cinco ou seis jovens negros. Passa, então, a atentar ao que eles conversam. Eles estão dizendo que fugiram da rota tradicional que fazem para chegar à praia, pois estão com pouco dinheiro e sem documentos, mas querem somente curtir o mar e a paisagem. Combinaram com umas gatinhas de dar um mergulho e umas risadas. Você olha para eles e percebe que eles falam a verdade. Eles não parecem ter mais de 12 anos cada e suas demais conversas são de uma ingenuidade ímpar.

A coisa complica na sua cabeça. Você sabe que ao delatar aquele que você acredita ser o líder dos arrastões que estão por vir, por tabela o grupo de pequenos adoradores do mar será esculachado pela polícia e perderá a chance de contemplar o oceano e afastar o calor. Mesmo não tendo cometido nenhum crime. Você recorda que, na ideia utilitarista, o sacrifício desses jovens é necessário para o bem-estar da maioria de frequentadores da praia. Mas você não sabe mais o que é certo ou errado nesse caso. Você se vê frente a um dilema moral.

Uma objeção óbvia à fórmula utilitarista ressalta que todos nós possuímos direitos individuais que não podem ser sacrificados em função da maioria. Não é moralmente correto sacrificar os pequenos jovens adoradores do mar para maximizar a felicidade geral. Ainda mais porque esses jovens não foram consultados, não consentiram em se sacrificar pelo todo.

Outra objeção diz respeito ao fato de que podemos nos perguntar, nesse caso e em outros casos, se todos os indivíduos possuem oportunidades equânimes de frequentar a praia, ou mesmo de possuir renda para se locomover pela cidade e educação qualificada que lhes ofereça possibilidades promissoras na vida social. Como maximizar o bem-estar geral se esse geral não é tão geral assim? Como sacrificar os direitos da minoria em prol do prazer da maioria, se essa minoria não é tão minoria assim?

Como disse no início desse texto, não apresentarei respostas. Acho que a tarefa das ciências humanas, essa Geni do conhecimento na era da técnica, mais do que bater o pé em defesa de certezas fechadas, reside na intenção de demonstrar a complexidade da vida em sociedade e fomentar a reflexão sobre ela. E, a partir dessas reflexões, ajudar a tirar as nossas ações do imediatismo e da banalidade.

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