ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Contra o pensamento binário

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
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Junho chegou. Há um ano, o Brasil fervia e sacudia os incautos. Agora, às vésperas da Copa do Mundo e das eleições de outubro, um ponto em particular chama a atenção. Trata-se das análises sobre a realidade brasileira. Podemos pensar sobre ela a partir de vários focos. Sugiro três, especialmente: aquele que achincalha o país dos petralhas corruptos; aquele que venera as conquistas das últimas décadas e solta o verbo contra a tucanada conservadora; e, por fim, aquele que não acha o seu lugar nesse complexo contexto.

Nas redes sociais e também nas ruas, existe um sentimento de que é necessário mudar. O período de reinado dos petralhas frente ao governo federal precisa terminar. O país está virando muito comunista (?), dá bolsas demais, oferece serviços demais para a população. Sendo que os direitos imperativos (saúde e educação) nunca melhoram. Sem falar dos mensaleiros, da violência e da impunidade constante. Esse é o Brasil que muita gente enxerga. Lugar onde ninguém quer trabalhar, mas muitos gostam de viver nas costas dos outros. Ninguém quer estudar, mas muitos ganham vagas nas Universidades. Ninguém quer fazer nada, mas muitos conseguem tudo a partir do Estado.

Na outra ponta, os rivais da tucanada conservadora apontam para o passado e demonstram que tudo está muito melhor agora. Que, agora, muitos milhões de brasileiros saíram da miséria através de incentivos estatais. Hoje, as universidades se tornaram populares e coloridas. Vivemos em pleno emprego. A desigualdade está caindo. Nossa economia figura entre as dez maiores do planeta. Não somos mais o país do futuro. Somos a nação do presente. Se voltarmos ao passado, se colocarmos a tucanada no poder de novo, nós jogaremos fora todas as vitórias duramente conquistadas. Recordar é ter medo daquilo que passou.

O terceiro foco possível desconjura as perspectivas acima e, assim, desconfigura qualquer localização binária nesse cenário político. É inegável que os governos dos petralhas modificaram alguns setores. A desigualdade de renda, medida pelo Coeficiente de Gini, diminuiu como nunca na história nacional. O índice passou de 0,594 em 2001 para 0,527 em 2011[1]. O salário dos 10% mais pobres aumentou 91,2% de 2001 a 2011[2]. A população autodeclarada negra teve um aumento de 66,3% na sua renda na última década, e a parda 85,5%[3]. De 1997 até 2011, o número de estudantes negros nas Universidades cresceu de 4% para 19,8%[4]. Não resta dúvida de que as cotas raciais e as demais Políticas de Ações Afirmativas têm imensa responsabilidade positiva nesse avanço do processo de democratização do ensino superior.

Outro detalhe intrigante direciona-se ao programa de assistência social mais rechaçado por parte da sociedade brasileira. O Bolsa Família demonstra algumas faces distintas daquelas sentenciadas pelos seus opositores. Diz-se que gera preguiça e acomodação. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), 72% dos adultos beneficiários do programa estão trabalhando no mercado formal ou informal; as crianças das famílias participantes possuem frequência escolar acima de 85% (dados de 2013). A Organização das Nações Unidas (ONU), por sua vez, declara que o Bolsa Família reduziu em 17% a mortalidade infantil nas áreas em que sua cobertura é profunda e extensa[5].

E aí, o que pensar? Acho que o caminho é não aderir ao pragmatismo eleitoreiro que se aproxima. Parece que, perto do pleito que está por vir, ou devemos defender a tucanada conservadora ou a petralhada no poder. É promissor ir além dessa falsa única dicotomia. Sim, houve mudanças no Brasil. Porém, essas mudanças, ainda que muito importantes, não alteraram a estrutura política e econômica sob a qual desenvolvemos as nossas vidas. A política econômica parece permanecer orientada pelo tripé câmbio flutuante, metas de inflação e superávit primário – embora os economistas divirjam sobre uma continuidade ortodoxa ou flexível[6]. Os bancos calculam lucros de dar inveja a qualquer agiota[7]. As manifestações populares dão a entender, no mínimo, que as pessoas não se sentem integradas às instituições políticas e aos seus representantes.

Vejamos exemplos mais concretos. O Estado brasileiro, desde as instituições policiais, mata e mata demais. Amarildos e DG’s não são casos isolados. O já clássico livro do jornalista Caco Barcellos, Rota 66, para não citar pesquisas científicas, ilumina uma das séries históricas de violência exercida pela coerção institucionalizada. A sonegação de impostos é altíssima (cerca de 415 bilhões de reais por ano, o que representa um valor superior a tudo o que foi arrecadado pelo Imposto de Renda em 2011[8]). Os ricos no Brasil têm sua renda menos taxada do que os ricos na maioria das nações que compõem o G20[9]. As favelas dividem espaço com os poucos, mas exuberantes bairros europeus cravados nos trópicos. A educação básica e a saúde pública patinam.

Neste ensaio, tentei refletir sobre três possíveis abordagens acerca da atual realidade brasileira. Com o recurso de alguns dados quantitativos, tornou-se possível evidenciar as transformações ocorridas, sobretudo, na última década. Entretanto, a estatística mapeia horizontes amplificados e por isso carrega o prejuízo de não explicar as subjetividades intrínsecas aos pontos fora das curvas. O fato de defendermos as conquistas das últimas décadas não pode obliterar as nossas visões sobre as mazelas que persistem e insistem. O real se mostra, portanto, muito mais complexo do que as assertivas formuladas pela (in)capacidade do pensamento binário.

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[1] Conforme o estudo “A década inclusiva”, produzido pelo IPEA em 2012.
[2] Conforme o estudo “A década inclusiva”, produzido pelo IPEA em 2012.
[3] Conforme o estudo “A década inclusiva”, produzido pelo IPEA em 2012.
[4] Segundo o Censo da Educação Superior, produzido pelo IBGE em 2011.
[5] Disponível em http://www.onu.org.br/estudo-avalia-impacto-do-programa-bolsa-familia-na-reducao-da-mortalidade-infantil/.
[6] Debate em http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=
com_content&view=article&id=20234
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[7] Ver em http://www.feebpr.org.br/lucroban.htm.
[8] Dados divulgados pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (SINPROFAZ), em 2013.
[9] Ver em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014
/03/140313_impostos_ricos_ms.shtml
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sexta-feira, 23 de maio de 2014

Como amigos próximos

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Que semana. Desafios, diálogos e muita reflexão. Trocas intensas. Quase não deu pra escrever. Só que sem escrever a semana não estaria completa. Viajando nisso tudo, observo um palestrante entretendo alguns jovens. Bastante didático, o rapaz não produz nenhum significado. Apenas reproduz ideias vagas e rasteiras. Preconceituosas e estigmatizantes, inclusive.

Recordo os dias anteriores. Quantos significados. Quantas vozes se cruzando, pensando as suas realidades, confrontando argumentos. Protagonizando experiências, arriscando novas significações. Libertando coisas que não podem ficar presas. Quantos crescimentos.

De volta ao mundo real, lá está o palestrante. Cheio de ginga. Vazio de argumentos. Um discurso estilo mais do mesmo. Uma ode à competição e ao indivíduo autossuficiente. Convincente, numa escuta ligeira. Cabisbaixo, eu não desisto. Defendo-me contra meus próprios dilemas: sensibilidade e razão não são como rivais, não posso deixar que sejam; quero que sejam como amigos próximos, bastante próximos.

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segunda-feira, 12 de maio de 2014

À brisa de um encontro improvável


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Aquela era uma história que qualquer um poderia viver.

Numa tarde qualquer, sentado de frente para o Guaíba, ele fumava um cigarro e se esquentava sob o Sol. Era um dia estranho. Ao sair de casa rumo à orla, uns cinco ou seis moleques apareceram. Agressivos, todos tentaram tirar alguma vantagem, coagir ou botar uma pressão nele. Esquivou-se como conseguiu, tentando frear os ímpetos dos pequenos valentões e entender o que diabos ocorria.

Viajava. Enquanto apreciava as águas à sua feição, um rapaz de pele escura aproximou-se. Seu semblante continha um tempero tipo sangue no olhos, uma mirada carregada de melancolia e apimentada por algum ódio. Bem de perto, o cara indagou-lhe:

- Dá uns pega desse crivo?
- Pô, fuma aí. Tá sereno. – ele respondeu, automaticamente.

E ali ficaram. Por uns bons 20 minutos, partilharam daquela interação. Falaram das ruas, das suas quebradas, de tudo um pouco. Ambos foram se reconhecendo humanos, sinergizados em símbolos e experiências paralelas que se cruzavam naquele instante.

Em casa, horas depois, impactado pelas últimas palavras do jovem morador de rua, nada mais conseguia roubar-lhe a atenção. “Bah, tu é tri humilde”, ressoava. Só se permitia indagar: por quê? Por que havia lhe concedido uma centena de frases e palavras? Por que havia lhe dado uns pegas de um cancerígeno qualquer? Ou, simplesmente, porque o havia tratado como um semelhante, alguém com o qual dividia o seu espaço entre o mundo dos vivos?

Vai saber. Aquilo tudo poderia ser artigo de luxo naquelas bandas.

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sexta-feira, 9 de maio de 2014

Desinformação na era da informação


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Ah, tá. Dizem que agora a moda dos cidadãos de bem é fazer justiça com as próprias mãos. Irônico, pois isso é ilegal, pelo menos no Brasil. Criminosos caçando criminosos, então? Trágico, visto que se materializa em mais e mais injustiças.

Não há evidências de uma enfermidade ou loucura geral. Parece haver, aí sim, uma imensa dificuldade de enxergar o outro e uma preguiça para pensar. Mas, além disso, parece estabelecer-se um paradoxo cruel: nunca tivemos tanto acesso a informação e muitos estão cada vez menos informados.

Quem linchou, não sabia as razões de tê-lo feito. Não mudaria nada se soubesse, continuaria comentendo um crime bárbaro, mas o fato é que não sabia. Quem leu a manchete, acreditou e se deu por satisfeito. Não foi atrás de mais nada. Cegou-se e foi para o conflito com a opinião rival. “Informado”, desinformou-se. Não quis o diálogo. Extravasou sabe-se lá o quê. Treinado pela maioria da mídia padrão, que também investiga muito pouco e dita meias verdades. Quase retornou à Idade Média europeia e aos suplícios públicos, aplaudidos de pé por manadas sedentas pelo sangue alheio. E ainda se julgou cidadão de bem – conceito mais vazio, impossível.

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segunda-feira, 5 de maio de 2014

Alguns fantasmas

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Fantasmas o rodeavam. Um deles, vira e mexe, assustava. Afinal de contas, como entender a realidade social? Haveria alguma forma segura de conhecimento, superior às demais, capaz de hegemonizar a compreensão sobre o que se passa entre os seres humanos?

Conversava. Por ali, por aqui. Agia. Observava. Numa imensidão de experiências, postulava caminhos. Chegava sempre ao namoro com as Ciências Sociais, essa prática tão abstrata e profunda que, por vezes, carrega o risco de se transformar em densas abstrações quase nada práticas. Iam e vinham teorias. Conceitos. Métodos. Seguia um apaixonado, como se pintasse pequenos retratos da vida real, tracejados pelas tintas de uma rigorosa Sociologia.

Entretanto, nunca bastava. Lá estavam velhos e novos fantasmas. Circulavam as pessoas, os acontecimentos e os saberes do cotidiano que viabilizam as nossas vivências. Uma mistura incandescente. Razão e emoção se espreitavam com vontade. No fundo, vários conhecimentos hibridizavam o seu olhar. Um olhar de uma vida barata.

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