Por Gabriel Torelly Professor e Historiador
1. O capitalismo atual não se apóia nas leis, mas numa esfera muito anterior, muito mais eficaz, que é a própria colonização do desejo. É somente depois de atuar de forma invasiva e predadora na produção da subjetividade que ele passa a incidir sobre as leis, modulando-lhes facilmente o conteúdo e o alcance a partir do momento em que houve sucesso na instância anterior da domesticação do desejo. O mais inquietante é que esse caráter predatório e invasivo não é garantido por meio da coação física ou do exercício direto da força. Ele atua de modo aparentemente dócil e inocente, fazendo proliferar imagens produzidas em profusão diariamente e disponibilizadas com espantosa eficiência nos tempos da tecnologia da informação. Pela exploração da democratização das imagens, aliada à intensa aceleração de sua difusão, o ritmo do capitalismo deixou de inscrever-se somente nos movimentos dos corpos dos trabalhadores e alcançou a possibilidade de instalar-se na própria imaginação. Nos dias correntes, a resistência ao monstro interplanetário que não respeita fronteiras nem restrições legais não poderá triunfar se aferrar-se apenas aos aspectos institucionais e não levar em conta essas agitações preliminares, sem bandeira nem lei, que dizem respeito ao campo do desejo. A verdade é que a natureza predadora de externalidades do capitalismo desferiu um golpe de mestre apropriando-se das pautas subversivas que colocavam o próprio regime em xeque ao final da década de 1960. Toda a crítica à unidimensionalidade de um humano massificado pelas formas do trabalho alienante e repetitivo foi como que engolida e digerida pelo monstro capitalista atual, e hoje em dia as palavras de ordem do mercado não apelam mais às fórmulas alienantes da divisão mecânica e simplificada do trabalho, mas à criatividade, inventividade, imaginação, etc. Na passagem que vivenciamos entre uma sociedade formalizada pela disciplina das fábricas e uma sociedade de controle movida pela tecnologia da informação, qualidades anteriormente consideradas como fontes não capitalizáveis de exteriorização da vida e do pensamento foram interiorizadas e capitalizadas. A dominação deixou de ser um exercício simples de assujeitamento dos corpos e passou a incidir sobre as próprias forças imateriais de produção da vida. Se ontem a resistência passava pela quebra das máquinas e pela rebeldia física e corporal das forças de trabalho, hoje ela precisa estar mais atenta às agitações do desejo, procurando formas de gestar um potencial humano imaginativo arredio à capitalização mercadológica e à integralização imagética colonizadora.
2. Nos meandros da modernidade, o capital engoliu o contrato social. O que era vontade geral de um Povo governado pelo poder soberano transformou-se em opinião pública de uma Massa móvel submetida às formas institucionalizadas do poder disciplinar. De povo governado por uma política palaciana passamos à massa disciplinada pela política representativa. Se o modelo jurídico do contrato social e a noção de povo ruíram juntamente com a forma do poder soberano em algum momento da história da modernidade, parece certo que o descrédito da política representativa e o esvaziamento da noção de opinião pública acompanham hoje a crise da sociedade disciplinar e seus mecanismos de massificação. Ora, não é outra coisa senão essa crise ou mutação que presenciamos hoje. Desse modo, na contramão do que gritavam boa parte dos manifestantes, não foi o povo quem acordou. O povo está morto. E já faz tempo. Ele virou massa, e massa já está deixando de ser. É justamente isso que anda arrepiando os cabelos das pessoas, a impossibilidade de modular uma massa informe como antigamente. Em meio às ondas telemáticas e ao ciberespaço interplanetário a massa escorreu e deslizou para outra coisa, anda assustadoramente insistindo em diferir de si mesma.
3. O Povo está morto. E o que está morto não pode simplesmente renascer. Não é no conjunto de relações contratuais estabelecidas entre governantes e governados que encontraremos respostas para os novos problemas. A Massa diferiu. A modulação do corpo social operada no espaço fechado das fábricas e das escolas e na ordem do tempo da ciência moderna deixou de ressoar. Estamos na crista de uma descontinuidade histórica. O mundo mudou. E não é recorrendo a velhas respostas e esquematismos conceituais gastos e inviabilizados por todos os lados pelo próprio devir da História que alcançaremos uma compreensão razoável dos acontecimentos. Vivemos o tempo da Multidão. Não uma multidão negativa que segundo as análises clássicas de Hobbes e Rousseau caberia ao poder soberano dominar e domesticar. Mas uma nova modalidade de multidão que se assemelha a um estranho tipo de proletariado imaterial, em rede e conectado, que não converge numa vontade geral, escapa a qualquer tipo de unidade política e não se reflete de forma alguma no modelo do Estado. Tratar-se ia antes de uma sorte de rede imperial interplanetária composta por singularidades instáveis e imprevisíveis que respondem a uma multiplicidade de estímulos de ondas telemáticas. Somente observando com olhos atentos esse estranho quadro atual entende-se por que as formas históricas do “governado” e do “representado” foram esvaziadas de sentido e há um descompasso incrivelmente anacrônico entre esse novo modo de existência que vem sendo gestado na velocidade da tecnologia da informação e as instâncias tradicionais da política régia e da representação. Todos tentam canalizar e decifrar a energia potencial da multidão a partir de uma linguagem antiga, como se tentássemos escutar e compreender os sinais de uma nova língua apelando a uma forma de escrita e a uma tábua de significados que foram enterrados nas areias do tempo. Todavia, o grande desafio não será ler os acontecimentos à luz de velhas operações de enquadramento, e sim procurar inventar novas combinações, explorando esse rearranjo de singularidades que observamos como quem olha para uma janela futurista.
4. Embora não seja nem um pouco prudente desconsiderar o conjunto de dilemas extremamente atuais expressados em cartazes e palavras de ordem ao longo dos últimos dias, quando operamos uma raspagem nas camadas mais superficiais e conjunturais e encaramos o acontecimento na sua dimensão existencial é a crise da própria imagem do homem que encontramos. Uma crise que ultrapassa as fronteiras dos Estados nacionais e manifesta o desconforto com o próprio ritmo do mundo. Muito além de uma duvidosa reforma política, da crítica indispensável aos abusos e aos maus usos do erário público, da insatisfação generalizada com a nossa vexatória “mobilidade urbana”, os protestos apelam a uma sorte de ontologia de nós mesmos. O que explodia nas bombas, queimava nas fogueiras improvisadas e vacilava nas barricadas erguidas pelos manifestantes era efetivamente a imagem de um humano desnaturado. O embate entre as forças difusas dos manifestantes e a ordem hierárquica do aparelho de Estado é a expressão de um cansaço em relação a velhas formas de conceber o homem que uma parcela lúcida da juventude não aceita mais. Trata-se de uma juventude que se descolou da televisão; de uma juventude que não se satisfaz com a modalidade hegemônica da escrita jornalística de grande circulação; de uma juventude desconfiada que o princípio norteador da vida não seja adquirir um automóvel ou um apartamento faraônico no ministério dos ares. O que se quer dizer com isso é que “o buraco é mais em baixo”, e que para lá das reivindicações necessárias e atuais existem comportamentos e valores de longa duração sendo colocados em xeque. É a própria imagem do homem burguês que está em questão. O que fazermos dela? O recado dos jovens parece muito claro: há uma “fadiga dos metais”, e a imagem carregada com as tintas do individualismo e do consumo irresponsável deixou de ser uma resposta possível. Muito diferente de um movimento sem causas, sem projetos e sem organização, trata-se antes de uma agitação positivamente descentralizada que manifesta o cansaço das velhas formas e o anseio por novos possíveis.
5. Em nenhuma hipótese, se trata de esvaziar o sentido político mais atual da palavra “reivindicação”. No entanto, o ato de reivindicar só pode se direcionar àquilo que já existe, enquanto o que marcaria mais profunda e positivamente o movimento seria a invenção de uma nova “economia afetiva”, ou o redesenho afirmativo das equações operadas pela energia vital que constrói uma dada ordem perceptiva entre o homem e o conjunto das imagens do mundo. Nesse ponto, a indeterminação e a nudez de um estado puro de Multidão podem mostrar sua face criadora e inventiva, escapando finalmente ao conteúdo pejorativo que lhe era destinado pela tradição jusracionalista. Contudo, quando a energia potencial em estado livre e a força criadora em regime de espera que caracterizam a pura virtualidade da Multidão descambam para uma simples e pobre descarga de irracionalismo destrutivo, toda a panóplia argumentativa dos defensores da violência de Estado ganha força e legitimidade. Para afirmar-se como positividade política, a Multidão precisa utilizar a violência unicamente como vetor para a criação de novas formas. Se o ímpeto de pura irracionalidade de uma violência-catástrofe apodera-se dos rumos do movimento tudo permanece em selvagem estado de caos. E contra o caos em estado selvagem as forças da repressão atuam com facilidade, visto que apenas fazem um uso institucionalizado e organizado do mesmo expediente. Entretanto, contra o caos que cria novas formas, que deságua numa nova economia dos afetos, por exemplo, as forças da repressão se vêem inertes e desarmadas, pois não encontram pela frente a forma da violência-catástrofe que bem conhecem, mas a forma de uma violência artista contra a qual o único expediente possível é a admiração. O verdadeiro vandalismo útil e estratégico, portanto, seria uma sorte de vandalismo existencial, a partir do qual nenhuma vidraça precisará ser quebrada, já que a maior das vidraças estará desfeita pelo exercício de atualização humana do esforço criador: a percepção. Com efeito, tudo parece indicar que a maior violência seria fazer da pura potência da Multidão um novo sentido de comunidade.
6. Como fugir da armadilha da burocratização sem cair ao mesmo tempo na armadilha da militarização? Se a burocratização era uma forma clássica de conversão das potências livres de um movimento no modelo hierarquizado do aparelho de Estado, a militarização não seria outra maneira que a forma-Estado encontra para penetrar o espaço livre do movimento e canalizar suas energias potencialmente criadoras de novas formas para um simples exercício de violência? Que me perdoem todos os simbolistas do quebra-quebra, mas a violência canalizada para a negação e a destruição é uma forma estratégica de desviar toda a potência produtiva da inteligência social para uma alternativa vazia e muito pouco revolucionária, por mais que ela pareça render frutos em curto prazo. Uma violência reativa que não cria formas, mas apenas alimenta um sentimento de cólera impotente que contamina o tecido social com afetos improdutivos. A potência de imaginação coletiva anda sendo seqüestrada por ícones militares. Em grande parte, isso acontece como um mecanismo automático de resposta ao terrorismo de Estado perpetrado criminosamente pela polícia militar. No entanto, aonde poderá nos levar um conflito deflagrado entre um terrorismo de Estado e um terrorismo de Bando? Eis o ponto: embora a violência desproporcional utilizada pelo terror de Estado da polícia militar faça disparar quase inevitavelmente um automatismo de resposta que se serve da mesma moeda, não seria possível ultrapassar essa mecânica de reação em cadeia pela criação de outro tipo de resposta? Como recusar a arbitrariedade do poder constituído sem construir uma réplica espelhada desse mesmo modelo?
7. Parodiando o célebre conto de Kafka “A muralha da China”, poderíamos dizer que na noite de segunda o governador construiu muralhas, mas que os nômades continuarão acampados no coração da cidade. Na capital gaúcha, as muralhas já não são feitas de sólido mineral imóvel. Aqui elas assumiram a forma dos batalhões da polícia militar. Mistura de carne, osso e armas, uma forma meio humana meio armamento, responsável por desferir incontáveis arremessos e covardes investidas contra a multidão. Não seria essa modalidade contemporânea de muralha, supostamente viva e humana, uma forma de mineralização da vida? Em conjunto, agrupados, num aparelho institucional de irracionalidade legitimada, a polícia militar não carregaria algo daquele velho mineral - estúpido estado de pedra? Maldita seja essa pedra cortante. Ela acredita que através da asfixia, da ardência e do derramamento de sangue dissolverá o conjunto de agitações das forças vivas da cidade? Ao fim de tudo, a borracha se tornará escassa e os gases se esfumarão, mas uma voz rouca ainda existirá ao fundo para dizer: abaixo à polícia militarizada, resquício apodrecido de uma ditadura derrotada, para os diabos com os seus malditos estrondos da morte. Nós permaneceremos. Não vamos arrefecer. Até que os cães de guarda do Estado curem sua raiva; até que abandonem a panóplia covarde e mortal que carregam com um falso orgulho que seus olhos mal podem esconder; até que se curvem aos seus verdadeiros senhores e passem a descarregar seus excrementos de irracionalidade em outro lugar; até que tudo isso ocorra, resistir será um dever.
8. A Província de São Pedro verte lágrimas sangrentas. Ponta militarizada de império. República de ditadores e generais. Fonte geradora de rebentos autoritários de projeção continental. Farrapo escravista e traidor: será mesmo um exemplo nacional? É preciso que todos saibam. Aqui, nessa ponta sul, num conluio ao mesmo tempo escandaloso e inconfessável entre a mentalidade medrosa da elite política e o conservadorismo oligárquico das empresas de comunicação, o restabelecimento da ordem enterrou o sentido do progresso. Nesse estado sulista policialesco onde as fortunas se divertem com as formas do autoritarismo, a dualidade de princípios da bandeira nacional foi rasgada. O separatismo estúpido de nossos ancestrais deslizou para um separatismo conceitual. Nesse imbróglio, ficamos com a ordem. Talvez seja preciso procurar o progresso em terras uruguaias. De qualquer forma, resta uma maldita esperança que continua a me provocar: que os ventos de junho afastem daqui esse Cale-se.
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