ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Milanovic e a desigualdade de renda ontem e hoje: algumas questões

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Entre um café e um jogo espetacular da Copa do Mundo, penso nas desigualdades. Nos debates políticos, elas quase sempre entram em campo. Podem servir de suporte para diversos argumentos. Sem dúvidas, para olhar o real com densidade é preciso diagnosticá-las minimante. A esquerda diz que as desigualdades têm se fortalecido. Os liberais sentenciam que não. Eu mergulho na leitura. É aí que o economista do Banco Mundial [1], Branko Milanovic [2], tenta oferecer uma espécie de mapa da situação no capitalismo contemporâneo.

Da visão que promove, pode-se partir de três formas de investigar a desigualdade de renda ao longo do tempo [3]. O primeiro tipo é definido a partir dos Estados Nacionais. A estatística é calculada com o PIB ou os rendimentos médios de cada país, sem ponderar as diferenças de populações. Cada país tem um peso igual, independente do seu tamanho. Sob esse prisma, a desigualdade aumentou consideravelmente, pelo menos até a virada do milênio.

Figura 1: Três tipos de desigualdade

A segunda maneira de conceituar a desigualdade ainda utiliza as médias dos países, sem fazer do indivíduo a unidade de análise. Só que, dessa vez, leva em conta os tamanhos populacionais e pondera os dados de cada nação. Nessa curva, a desigualdade se mostra em decréscimo quase constante.

Numa terceira interpretação, a complexidade das relações humanas ganha força com o entendimento de que é necessário que os dados sejam trabalhados no nível dos indivíduos, e não das médias nacionais. Pensa-se acerca das desigualdades globais. Para isso, as pesquisas domiciliares de larga escala são relevantes. Essas estatísticas podem ser encontradas com alguma regularidade para distintos países somente da década de 1980 em diante. Nesse cenário, desponta uma variabilidade entre crescimento e diminuição da desigualdade, que aparece num leve contínuo declínio.

Figura 2: Indicadores globais de desigualdades de renda de 1952 até 2011

Com efeito, Milanovic deixa claro quem mais obteve benefícios com a globalização orientada nas duas recentes décadas: em primeiro lugar, os muitos ricos; depois, o segmento social que chama de “classe média de economias de mercado emergentes”, como China, Índia, Indonésia e Brasil. As pessoas que fazem parte do 1% mais rico do planeta viram a sua renda subir em 60%. As referidas classes médias, 80%. Houve uma evolução da renda também das classes médias baixas. Porém, entre os 5% mais pobres, a perda dos rendimentos reais foi grande e a desigualdade elevou-se. O autor sublinha, sem rodeios, que as pessoas mais afetadas negativamente pela economia mundial de 1998 a 2008 são africanas, alguns latino-americanos e os habitantes da antiga União Soviética.

Agindo segundo uma sociologia reflexiva, sinais de questionamentos surgem e se voltam sobre a temática. Além do fato de que as desigualdades de renda não contemplam com exclusividade as profundezas das relações de poder e dominação em curso nas sociedades contemporâneas, outras perguntas se destacam.

Se houve uma transformação positiva no período assinalado, de acordo com as concepções dois e três, a manutenção dos privilégios dos mais ricos não se faz bastante mais significante, tendo em vista que, para quem já tem muito, aumentar em 60% o seu montante representa uma lógica acentuada de persistência das coisas como elas estão? Mesmo aceitando sem muitas críticas esse movimento, a virada abaixo nas curvas da desigualdade, sendo puxada por países como Brasil e China, não sugere que políticas estatais de interferência concreta nos rumos econômicos são mais eficientes do que práticas de desregulamentação ampla dos mercados? Não foram justamente esses países que não se jogaram numa austeridade excessiva durante o calor da crise de 2008?

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[1] Importa lembrar que o Banco Mundial tem sido concebido por muitos analistas como um organismo multilateral colaborador do mercado financeiro, pautando políticas econômicas de cunho neoliberal. Ver:http://www.administradores.com.br/.../o-banco.../31091/.

[2] MILANOVIC, Branko. Global Income Inequality by the Numbers: in History and Now – An Overview. Policy Research Working Paper 6259. The World Bank, 2012. Disponível em: http://elibrary.worldbank.org/doi/pdf/10.1596/1813-9450-6259.

[3] Além disso, o texto defende que, desde a Revolução Industrial, a humanidade não via uma mobilidade entre classes sociais como a que se pode enxergar por intermédio dos dados citados pelo autor. Essa ideia é referenciada por alguns grupos liberais para sustentar as suas teses.

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quinta-feira, 26 de junho de 2014

Patriarcalismo cosmopolita

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Uma cidade cosmopolita é demais. Muito massa. Mesmo. Mas, de todos os aspectos negativos que a circulação dos estrangeiros evidencia (brigas, assaltos, racismo, etc.), um deles quase independe das nacionalidades: o machismo. Refiro-me exclusivamente às atitudes dos homens. Não estou falando dos locais de festas e encontros de multidões. Apenas das ruas comuns da metrópole. Das situações em que as mulheres são abordadas como pedaços de carne num balcão, e precisam se virar nos trinta para seguir o seu caminho sem arranhões (físicos ou simbólicos). Vi uma série de acontecimentos como esses protagonizados pelos turistas.

Na grande mídia, como sempre, a reprodução: acerca das mulheres no evento que hegemoniza as pautas, só se fala das beldades. Corpos bonitos e nada mais.

O patriarcalismo segue oprimindo. Em boa parte do mundo.

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segunda-feira, 23 de junho de 2014

Pedindo passagem

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O futebol vive um período histórico de sombras. A expressão de Eduardo Galeano faz sentido. Caracteriza bem a inserção do esporte na lógica irrestrita da mercantilização completa. Numa Copa do Mundo como essa que vivemos hoje, no Brasil, vem à tona a magia de jogar bola. Lampejos iluminados ganham espaço. Dentro do campo, o torneio está demais. Incrível. Espetacular. Mas, fora dele, a vida continua.

Se há alguma mudança, ela segue o curso das mazelas já existentes. Aqui, na casa da Copa, milhares de famílias foram removidas por obras que não eram imprescindíveis. Instaurou-se uma espécie de estado de sítio nas zonas centrais das cidades-sedes. O pau tá comendo. A pobreza varrida para baixo do tapete. Está aí, estamos vendo. Basta olhar com agudeza. Verdade é que o país tem condições de abrigar um evento de tamanha magnitude. Porém, verdade é, ainda, que uma nação em dívida eterna com seu povo acaba exibindo as suas feridas. De um jeito ou de outro, nossas brutais desigualdades não passam impunes.

Por outro lado, os russos que estão nos trópicos, por exemplo, não podem esquecer que a sua pátria está envolvida, nesse instante, num conflito violento e de árdua diplomacia com a Ucrânia. A geopolítica pega fogo na região. Os estadunidenses devem recordar que patinam e chafurdam na Guerra do Iraque, mantendo-se atentos aos movimentos do leste europeu, sempre com um viés de cobiça. Todos os europeus equilibrados precisam analisar com criticidade a febre da xenofobia e do racismo operacionalizada pelos votos crescentes na direita fascista para o seu parlamento continental. A lista de durezas não cessará, se inventariarmos com rigor. As desigualdades, as violências e as dominações estão disponíveis a olho nu. Pelo mundo todo.

Não sei se já estivemos mais iluminados, do ponto de vista da qualidade da vida social humana. Não me parece o caso saber agora. Contudo, tanto dentro de campo como fora, as sombras estão com o colete garantido entre o time titular da realidade contemporânea. Mesmo que no banco de reservas o Sol esteja pedindo passagem.

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sexta-feira, 20 de junho de 2014

Lendo Piketty, parte 1

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O livro de Thomas Piketty, professor da Paris School of Economics, tem causado uma histeria feroz naqueles que enxergam comunismo por todos os lados. Sem conseguir refutar os dados da obra “O capital no século XXI”, apelam, como sempre, para os mantras favoráveis à desregulamentação ampla da economia capitalista. Berram como raivosos distantes de qualquer densidade argumentativa.

De fato, minha leitura até agora indica que Piketty não é um esquerdista, revolucionário ou comunista. O que ele faz é ampliar a metodologia de Simon Imagem: Bernardo Caprara.Kuznets, aplicada num estudo da década de 1950. Kuznets afirma que, na fase inicial do desenvolvimento capitalista, as desigualdades crescem razoavelmente. Porém, depois de consolidado o livre mercado, as desigualdades decaem e estabilizam o sistema. Com os dados da época, reduzidos aos Estados Unidos, Kuznets sustentou sua tese e disseminou o sentimento de que o crescimento econômico independente de qualquer política edifica a diminuição das desigualdades de renda.

Piketty, por sua vez, evidencia que os dados do século XX ilustram que a taxa de retorno do capital é maior do que o ritmo do crescimento econômico. O contexto político e social carrega grande importância. Para Piketty, o capitalismo contemporâneo nos países centrais concentra renda, promove desigualdade e está associado a baixo crescimento, privilegiando os mais ricos através da herança.

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segunda-feira, 16 de junho de 2014

Duas vias de crítica ao Brasil

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Enquanto a bola desfila na Copa do Mundo, afloram por aí muitas críticas ao Brasil dos dias de hoje. Elas se direcionam, basicamente, ao governo federal. Parecem caminhar em duas vias distintas. Pelo menos duas que saltam aos olhos.

A primeira reconhece (ou não) os avanços sociais da última década [1]. Porém, volta a sua artilharia para pontos específicos, como a agressividade seletiva das instituições policiais, a persistência das pautas conservadoras no Congresso e a política econômica por demais conciliadora com o capital financeiro. São apenas exemplos. Em resumo, exige a radicalização do combate às desigualdades sociais e o desabamento completo dos privilégios históricos das elites. Evidencia que não se pode esperar mais e que o atual governo é um retrocesso como qualquer outro já foi.

A outra face, por sua vez, padece de consistência argumentativa mínima e aposta na disseminação da raiva e do ódio. Enxerga os governantes da nação como guerrilheiros comunistas, seguidores das categorias gramscianas de uma espécie de revolução cultural. Esse viés crítico irracional sustenta, mesmo que indiretamente, a validade dos privilégios históricos das elites. Esculacha e rotula de ideológicas todas as tentativas de erradicá-los. Começa num discurso contrário ao vermelho e deságua nos mais nefastos valores, travestidos em bravatas vazias contra as classes populares – nas Universidades, nos Aeroportos, nos direitos das domésticas, nos shoppings e etc.

Com os primeiros, compartilho boa parte das arguições, embora divirja de algumas, sobretudo de parte das suas estratégias e ações políticas. Para os segundos, desejo e incentivo que se dediquem a produzir uma análise mais densa, profunda e sofisticada acerca da realidade. Urgentemente.

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[1] Para saber mais, ver texto “Contra o pensamento binário”.

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terça-feira, 3 de junho de 2014

Escutando Paul Krugman

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Em meio às leituras, já na madrugada, viajei para longe. Estava na América do Norte. Como sociólogo estudioso das desigualdades, satisfazia-me com o diálogo que travava. Localizava-me frente a uma artilharia pesada contra o pensamento rasteiro. Conversava com o economista Paul Krugman, vencedor do Prêmio Nobel em 2008, professor da Universidade de Princeton. O assunto girava em torno de dois tópicos duvidosos: os ricos são ricos porque se esforçam; a desigualdade não está aumentando.

Dizia Krugman: “Os conservadores querem levá-lo a acreditar que as grandes recompensas, nos Estados Unidos modernos, são reservadas aos inovadores e empreendedores, pessoas que criam empresas e promovem o avanço da tecnologia. [...] Como aponta Matt Levine, da ‘Bloomberg View’, a renda de muitos dos mais conhecidos administradores de fundos não vêm de investir o dinheiro alheio, mas do retorno sobre sua riqueza – ou seja, a razão para que ganhem tanto é o fato de que já são muito ricos” [1].

Esclarecedor. Kruger seguia derrubando mitos, intercalando os dois tópicos da conversa, elucidando controvérsias: “Portanto, eis o que é preciso saber: sim, a concentração tanto de renda quanto de riqueza nas mãos de uns poucos aumentou imensamente nas últimas décadas. Não, as pessoas que recebem essa renda e possuem essa riqueza não formam um grupo sempre mutável: é comum que pessoas se movimentem entre os 10% mais ricos e o 1% mais rico, e vice-versa, mas histórias de alguém que tenha ascendido da pobreza à riqueza, ou feito o percurso oposto, são raras” [2].

Como professor, aprendia demais naquela troca de ideias. Despertei reflexivo. Pensativo. Um duro golpe no conservadorismo tinha atravessado os meus sonhos. Ah, mas talvez muitos dos aderentes à lógica binária argumentassem que Paul Kruger é comunista, que Princeton é uma instituição comunista e que o The New York Times, jornal centenário, é uma publicação vermelha. Vai entender...

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[1] Ver em http://www1.folha.uol.com.br/.../1451852-quanta-riqueza....
[2] Ver em http://www1.folha.uol.com.br/.../1463757-sobre-a-negacao....

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