ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

sexta-feira, 30 de junho de 2017

A greve e as classes sociais


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

A greve é uma manifestação ligada à divisão da sociedade em classes sociais. O conceito de classes sociais é central para a Sociologia. Venho estudando a temática há seis anos. Podemos pensar as classes sociais, pelo menos, de quatro maneiras: negar completamente a sua existência e/ou importância; defini-las desde a posição ocupada no mundo do trabalho; pensá-las a partir da situação econômica em dado mercado, com o foco na capacidade de consumo; e, por fim, pensar classe com a percepção de que possuímos acessos desiguais a recursos econômicos e culturais e isso conforma nossas práticas.

Negar a existência e/ou a importância das clivagens de classe tornou-se um argumento comum na segunda metade do século XX. Autores chamados de “pós-modernos” ou “pós-estruturalistas” passaram a defender que as pessoas não seriam mais condicionadas pelas identidades coletivas, como o pertencimento de classe. Nossas principais orientações, gostos ou escolhas políticas, seriam frutos de identificações fluidas, sem vinculações à narrativas estruturais, mas adaptadas ao crescente processo de “individuação”. Afora as interessantes discussões que essa perspectiva suscita, o fato é que ela não corresponde à realidade. Diversas investigações sociológicas indicam a relevância dos aspectos de classe na vida contemporânea.

Os fundamentos da noção de classe estão na obra de Marx. Nessa ótica, a produção da vida material antecede o pensamento, sendo a vida concreta a base das sociedades humanas. Os indivíduos ocupariam diferentes posições nas relações de trabalho. No capitalismo, aqueles que possuem os meios de produção (fábricas, máquinas, terras, etc.) exploram a força de trabalho daqueles que não possuem outra coisa senão a sua própria força de trabalho. A luta concreta entre as diferentes classes, com posições desiguais nas relações produtivas, seria o mecanismo primeiro de reprodução ou transformação social. Os trabalhadores, ao perceberem a exploração sofrida, passariam a disseminar uma “consciência de classe”, mobilizando-se politicamente e buscando, no limite, o fim da sua exploração e da divisão em classes sociais. A ação coletiva dos trabalhadores libertaria a humanidade.

Mais recentemente, dada a complexificação da vida em sociedade, as análises de classe avançaram. Inspirados em Marx, mas também em Weber, muitos sociólogos viram que, de fato, permanecem as desigualdades econômicas em diferentes grupos sociais e isso gera desvantagens e privilégios na competição pela sobrevivência. Porém, existiriam muitas “frações de classe” (como as classes médias), associadas ora ao lugar ocupado nas relações trabalhistas, ora às distintas capacidades de consumo. Os neoweberianos, sobretudo, demonstram a relevância das dessemelhantes posições econômicas entre as classes, mas não entendem que essas dessemelhanças formatam preferências políticas, julgamentos morais ou hábitos de consumo. Não haveria uma relação automática entre o pertencimento de classe e essas práticas individuais.

É na matriz derivada da obra de Pierre Bourdieu que podemos ver a noção de classe social atendendo melhor aos pressupostos da atualidade. O sociólogo francês percebeu que as pessoas estão espalhadas pelo espaço social de acordo com a propriedade e o volume de diferentes tipos de capitais, principalmente o econômico e o cultural. Os capitais são “trunfos” para a competição nos diferentes campos da vida coletiva. Agentes (pessoas, dotadas de agência) com maiores volumes de capital econômico e cultural conquistariam e reproduziriam as suas posições dominantes no espaço social. O ponto chave na obra de Bourdieu é a forma como a posição relativa de classe produz ações e percepções de mundo. Através de um mecanismo gerador de práticas (chamado de “habitus”), as estruturas sociais e as propriedades atuantes (capitais) tornam-se incorporadas em cada um de nós, conformando nossas práticas e a exteriorização da nossa individualidade, numa relação sincrônica e diacrônica. Assim, a posição relativa de classe, sempre com fronteiras instáveis e em constante disputa, produziria homologias entre o maior ou menor acesso aos capitais e os gostos, as preferências políticas, alimentares, esportivas e etc. A classe social segue conformando as práticas culturais, e as lutas simbólicas operam o tempo inteiro para legitimar ou desestabilizar a distribuição dos capitais no espaço social.

Se olharmos para os dados da PNAD 2017, fica claro que a imensa maioria dos cidadãos brasileiros vive da renda do seu trabalho. A maioria não é "patrão" – nem se incluirmos os “por conta própria”, como denomina o IBGE. Se observarmos os estratos de renda, a grande maioria possui baixo acesso ao consumo. Se, ainda, atentarmos para o acesso à escolaridade elevada ou ao acesso a bens culturais distintivos, também a imensa maioria fica de fora do jogo. As reformas tocadas goela abaixo no Congresso são defendidas com unhas e dentes pelas classes privilegiadas econômica e culturalmente. Por esta razão, a greve segue um instrumento importante de manifestação política, ainda mais num momento como esse.

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segunda-feira, 26 de junho de 2017

A obediência e a "banalidade do mal"


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Toda segunda-feira é a mesma coisa: recomeçamos nossas rotinas de trabalho. Não é raro o desânimo, a sensação de que estamos jogando a vida fora, que a recompensa é pequena, seja pela grana, reconhecimento, satisfação, etc. Por mais que os “catálogos de sorrisos” expostos nas redes sociais disfarcem um pouco, é difícil encontrar algum trabalhador que não tenha sentido isso uma vez ao menos. Vários, inclusive, já se perguntaram: por que seguir obedecendo ao ritmo desse tipo de vida?

Na Sociologia, temos algumas pistas. Podemos pensar que a exploração do trabalho em sociedades capitalistas faz com que os indivíduos da classe trabalhadora sigam trabalhando, para conseguir a sobrevivência. A ideologia dominante (dos dominantes) não permitiria que se enxergasse a exploração (Marx). Dá pra pensar que a dominação nessas formações sociais se relaciona ao exercício do poder, mas só é efetiva porque as pessoas legitimam a sua “servidão” (Weber). Ou, então, que essas relações são legitimadas pelas pessoas, mas não são consideradas relações de exploração e dominação, sendo tratadas como naturais (Bourdieu).

De qualquer forma, resta a pergunta: por que seguir obedecendo àquilo que não me faz bem? O filósofo Étienne de La Boétie diz que a responsabilidade trazida pela liberdade nos assusta. A "servidão voluntária" tenderia a ser um caminho menos instável e que inspira mais segurança. Na década de 1960, o psicólogo social Stanley Milgram foi mais longe. Ele passou a estudar o comportamento das pessoas em situações que exigiam obediência a uma autoridade reconhecida. Se alguém com autoridade ordenasse, as pessoas machucariam algum desconhecido? Se o desconhecido implorasse o fim das suas dores, mas a ordem fosse mantida, as pessoas seguiriam obedecendo?

Milgram foi, sem dúvidas, um dos mais polêmicos cientistas sociais do último século. Seus métodos experimentais desafiaram as concepções éticas da área e são realmente muito discutíveis. No entanto, os resultados da pesquisa são assustadores. Quando as pessoas foram confrontadas com a ordem de seguir punindo violentamente um desconhecido, mais de 60% foram até o final. A maioria não desobedeceu à autoridade e praticou a violência até o limite, sem qualquer razão sólida para isso, mesmo com a reação desesperada e os apelos do desconhecido. Recentemente, o experimento foi replicado e os resultados foram semelhantes.

Na mesma década de 1960, a filósofa Hannah Arendt refletia sobre a “banalidade do mal”, com base na cobertura jornalística do julgamento de um alto oficial nazista. Sob a firmeza das ordens de uma autoridade, as pessoas seriam capazes de realizar as mais atrozes práticas e, à noite, dormir tranquilamente sem sentir o peso de qualquer responsabilidade. Já Milgram dizia que a crescente divisão do trabalho poderia ter parte na percepção cada vez mais reduzida que possuímos acerca do todo. Sem entender as relações entre as ações, interações e estruturas sociais, a ausência de sentido nos traria medo, incerteza e a sensação de desencontro frequente. Para buscar “segurança” e “estabilidade”, nada seria mais eficaz do que obedecer e “tirar o corpo fora”.

Entre machucar alguém e seguir uma rotina degradante de vida e trabalho, de certo há uma boa distância. Porém, num mundo em que as lutas simbólicas operam classificando e desclassificando as pessoas em termos materiais e culturais, com uma parcela pequena concentrando privilégios variados, a insatisfação completa pode ser como gasolina no meio de um incêndio. O medo, a desilusão e as frustrações diversas parecem depender apenas de uma faísca para que despertem as nossas piores obediências – aquelas que banalizam o mal e não afetam o nosso sono.

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quarta-feira, 14 de junho de 2017

Oportunidades no lugar da vingança


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

São impressionantes as reações ao episódio do suposto roubo de uma bicicleta e da punição dada ao suposto ladrão, por supostos tatuadores. Temos uma verdadeira guerra de narrativas sobre o assunto. Multiplica-se um “argumento” rasteiro que diz existir uma “inversão de valores” no país, porque muitas pessoas defendem que não se deve fazer justiça com as próprias mãos e é preciso ajudar a retirar a tatuagem da testa do suposto ladrão.

Biblioteca em Fogo, Maria Helena Vieira da Silva

Quem prega a justiça com as próprias mãos não percebe, mas, ao invés de fortalecer “valores morais”, enfraquece os mesmos, na medida em que seleciona quais seres humanos devem ser tratados como seres humanos e quais devem ser escorraçados. Fortalecer “valores morais” é tratar os infratores da lei, os viciados ou qualquer um como sujeito de direitos, como alguém que, mesmo tendo cometido um erro (quem nunca?), deve ter a oportunidade de se regenerar. Olho por olho e dente por dente não é justiça, é vingança. Se queremos uma sociedade menos violenta e mais fraterna, a forma como tratamos os “desviantes” precisa ser inclusiva, e não visceral, pois do contrário apenas alimentamos uma bola de neve macabra.

Em sociedades com “valores fortalecidos”, as bibliotecas, o contato com a arte, com os esportes, o aprendizado de ofícios e a oferta de oportunidades diversas são alternativas práticas de regeneração, capazes de fomentar um sentido diferente do que a violência para a vida das pessoas. A obra “Biblioteca em Fogo” (Bibliothèque en Feu, 1974, na foto acima), da pintora portuguesa/francesa Maria Helena Vieira da Silva, pode fazer pensar nos inúmeros horizontes que se abrem quando temos oportunidades na vida. É melhor trocar a porrada pelos livros.

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terça-feira, 6 de junho de 2017

A escola e a justificação da desigualdade


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

No país dos absurdos, talvez poucas coisas sejam tão representativas dos nossos mecanismos de justificação da reprodução de privilégios quanto a “festa” no recreio de uma escola privada, na qual os alunos se fantasiaram de “pessoas que deram errado na vida”.

O “evento” ajuda a esconder a desigualdade brasileira de duas maneiras. Primeiro, passando a ideia indireta de que “dar certo na vida” é uma questão individual, que depende apenas de esforços próprios. É preciso se dedicar para não “dar errado”, como a "ralé" que faz o serviço sujo e pesado. Ocorre que, ao contrário, “vencer” na escolarização e na vida profissional está associado, em geral, a aspectos arbitrários como a classe social ou a cor da pele. A qualidade da escola e as boas práticas pedagógicas podem auxiliar a “driblar” a reprodução dos “destinos originais”, mas estão longe de fazer acreditar que “dar errado” é um destino igualmente provável para todas as pessoas.

Segundo, porque ao desconsiderar que a posição ocupada pelos estudantes no espaço social conforma suas trajetórias, acaba fortalecendo uma espécie de “dominação simbólica” sobre determinados setores do mundo do trabalho, tão essenciais (ou mais até) do que quaisquer outros. Se queremos cidades limpas, atendimentos de qualidade em restaurantes ou entregas rápidas em casa, alguém precisa realizar esses serviços. Ao desvalorizar a labuta de milhões de cidadãos, cujo trabalho é muito explorado e mal remunerado, pessoas que se ferram para sobreviver e fazem a cidade funcionar minimamente, a “festa” dos jovens demarca com clareza as fronteiras classificatórias entre o que é digno ou não, entre o que é valioso e o que é "o lugar da ralé". Uma educação verdadeiramente de qualidade buscaria romper esses paradigmas e incentivar a valorização (econômica e simbólica) de todas as funções necessárias à vida social.

Num simples “evento escolar”, consolida-se o ocultamento das relações objetivas das desigualdades que nos assolam. Vemos, ainda, o processo de incorporação de “valores” classificatórios excludentes, que legitimam privilégios e acirram os nossos principais conflitos. Isso tudo numa rede escolar altamente conceituada e que pretende formar a nossa "elite intelectual".

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