Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
É difícil não se emocionar com os secundaristas de São Paulo. Na real, por que não se emocionar? Pois os adultos são sábios, racionais e centrados? Balela. A cada vídeo, declaração, imagem ou acontecimento protagonizado por essa gurizada, que não aceita quieta o fechamento das suas escolas, a emoção toma conta. Ganha a cidadania, a democracia e a esperança.
Nesse semestre, caiu no meu colo o desafio de ministrar uma cadeira de “Direitos e cidadania”, com uma ementa bastante teórica, racionalista e legalista. Um desafio e tanto para um aventureiro como eu. Sinto que há uma cobrança geral para que o professor universitário enverede com rigor nos labirintos teóricos, fomentando o exercício constante da razão. Esse é, de fato, um caminho fundamental para o ensino superior.
Contudo, acho pouco. Acredito que analisar a realidade racionalmente, aprofundando o conhecimento sobre ela, configura um pressuposto, uma premissa. Ainda mais em tempos de ódio, opressão e apologia ao irracionalismo. Só que a razão não é o único elemento que movimenta nossas mentes e corpos. A gente vibra e pulsa. A gente sente.
Quando o governo quer nos tirar aquilo que nos constitui, como as sucateadas e problemáticas escolas paulistas, por mais que se tenha uma relação de amor e ódio com elas, razão e emoção podem se juntar. Fechar escolas exige estudos profundos e diálogos exaustivos, não apenas um canetaço.
Os secundaristas de São Paulo estão provando que o futuro está por fazer. Que democracia e cidadania podem sair da letra teórica e ganhar vida. E que eles não vão arregar para o despotismo e a repressão. Isso é emocionante.
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Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
Na mesma semana em que fui convidado para fazer uma fala sobre a tão falada crise brasileira em um evento, o processo de impeachment da presidente da República ganhou força. A minha intenção era tentar explicar possíveis razões e dimensões da crise, além de possibilidades futuras. Vou fazer um resumo por aqui.
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Em geral, tem sido dito que há duas dimensões que se retroalimentam na crise atual: uma econômica e outra política. Sigo esse caminho. Acho que há, ainda, um terceiro elemento, uma espécie de bônus (ou seria ônus?) histórico, representado pela instabilidade da democracia liberal no Brasil.
A crise econômica tem um fundo internacional. Mas também se relaciona com as escolhas dos governos petistas. A construção de uma grande frente política liderada por Lula, frente neodesenvolvimentista, marcada pela ideia de crescimento econômico com alguma redistribuição de renda, não mexeu, a meu ver, com as estruturas do Estado neoliberal. A lógica de diminuição do Estado, de relação direta com o capital financeiro, de supressão de direitos trabalhistas e sociais, de concessões e privatizações dos serviços públicos permaneceu de modo atenuado.
A frente neodesenvolvimentista reuniu diferentes frações do grande capital, do agronegócio aos bancos, passando pela indústria de base financiada a juros baixos pelo BNDES. Com o foco no consumo do mercado interno e na exportação de commodities, rendeu bons frutos até a quebra do sistema financeiro, em 2008, dividindo alguns pedaços desse sucesso com os trabalhadores e as classes populares. A estagnação da economia chinesa (que nos vendia produtos industrializados a preços baixos) e a queda no valor das commodities complicou o cenário. A “marolinha” chegou ao Brasil. A resposta do governo foi aumentar os gastos públicos e incentivar ainda mais a inclusão pelo consumo, na tentativa, também, de manter o pacto neodesenvolvimentista.
A segunda dimensão é a dimensão política da crise. Dois aspectos são importantes: a desestabilização da frente neodesenvolvimentista e a perda crescente de legitimidade das instituições políticas perante a população. A crise do pacto neodesenvolvimentista começou a ganhar maior corpo em 2014, quando a economia se deteriorou, mas também quando a polarização ideológica aumentou. Muito em função das eleições e do próprio PT, diga-se de passagem. Aí enquadro uma mea culpa, visto que, no afã de garantir as parcas – mas importantes – conquistas do petismo, entrei com robustez numa polarização cega e desmedida.
A polarização ideológica associada à deterioração econômica impulsionou um recuo das classes dominantes, no que tange ao projeto neodesenvolvimentista, fato acompanhado, como lembra o professor Armando Boito Júnior, da Ciência Política da Unicamp, de uma ofensiva restauradora do capital internacional e das altas classes médias. Essa ofensiva, me parece, segue em curso e pretende recolocar o Brasil nos rumos de um projeto neoliberal genuíno e que se quer ortodoxo.
Em 2015, após vencer um pleito difícil e tumultuado, o governo recuou novamente e tentou atenuar a ofensiva cedendo espaço aos seus algozes. Vem protagonizando um ajuste fiscal recessivo que joga o país ainda mais na lama, cortando mais e mais direitos conquistados, acenando com medidas privatizantes e aumentando, mais ainda, a sanha daqueles que sempre detestaram o PT pelo que acreditam ser o seu verniz esquerdista.
Não só as escolhas atuais do governo, como a própria frente neodesenvolvimentista, hoje em frangalhos, carregam problemas muito graves, exponencialmente demonstrados pelas violências contra os povos indígenas, a ideia de um desenvolvimento explorador e predatório, além da adesão a interesses espúrios eivados de uma corrupção endêmica. Portanto, o PT e o governo tem muita responsabilidade na atual crise e na possibilidade de perda do mandato presidencial.
Ainda na dimensão política, a desmoralização das instituições políticas, fruto das suas mazelas internas, do desinteresse generalizado entre a população e de uma mídia sensacionalista ao extremo, fragiliza a legitimidade dos nossos representantes e incentiva que o imaginário popular associe imediatamente política com corrupção, desmandos e enriquecimentos ilícitos.
O bônus (ou ônus) histórico, por último, remete a instabilidade da democracia liberal brasileira. Se nós realmente temos todos os procedimentos de uma democracia liberal, e me parece que sim, isso não significa que a tentação autoritária não esteja presente no cotidiano. Muitos grupos ideologicamente incomodados com as políticas sociais do petismo, como a massiva entrada de negros e pobres nas Universidades Públicas, a regulamentação das empregadas domésticas, a disseminação de médicos estrangeiros pelo interior do país e etc., têm muitas dificuldades em aceitar a regra da maioria eleitoral e flertam, sem dúvidas, com qualquer possibilidade de retomar o poder pela força ou por manobras, no mínimo, duvidosas.
Por fim, acho que há três posições possíveis para quem defende os interesses dos trabalhadores e das classes populares. A primeira é a defesa incondicional do governo frente à conturbação atual. Considero um enorme equívoco essa postura. O governo é responsável direto pelo que está aí, seja pelas barganhas imorais que vem fazendo desde sempre, seja por suas opções ressaltadas acima. A segunda é o criticismo autoproclamado neutro, que critica por criticar e manda tudo para os ares. Outro grande equívoco.
A última posição rejeita fortemente os rumos da política recessiva do ajuste fiscal governista. Rejeita as barganhas imorais, o desenvolvimento predatório e todas as suas consequências. Defende o fortalecimento da democracia e fomenta uma nova agenda pautada na justiça social. Para isso, é indispensável a mudança nas polícias militares, por exemplo, que precisam parar agora o genocídio dos pobres e negros. Contudo, ainda que considere essa uma posição interessante, eu tenho poucas esperanças que ela se torne uma realidade expressiva.
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Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
Enquanto o Congresso Nacional pega fogo, os rejeitos da mineradora privada se espalham pelo litoral e o desânimo parece querer nos afogar num mar de lama podre, duas iniciativas micropolíticas ajudam a respirar melhor: além das muitas escolas ocupadas por estudantes em São Paulo, a movimentação feminina nas redes sociais, por meio da tag “Meu Amigo Secreto”.
A iniciativa das minas é corajosa e é um soco no estômago. Sim, no meu estômago e no de praticamente todos os homens que eu conheço. Quase nenhum escapa a, pelo menos, uma história relatada. Eu, certamente, não escapo. O que me enche de vergonha e me põe em estado de reflexão. Só que pensamento, vergonha e apoio a autonomia delas, apenas no âmbito do discurso, parece e é pouco, bem pouco. Mais importante – e difícil – é transformar tudo isso em práxis, em união de teoria e prática cotidiana.
Nunca fui e nunca serei protagonista das pautas feministas. Não sou mulher e desconheço, na pele, o que é ser uma mulher. Acho que uma responsabilidade masculina é produzir a autocrítica entre nós, homens, para dizer e fazer o mínimo. Sério que isso tudo te parece apenas ressentimento? Apenas mimimi? Vitimismo? Sério que te parece que as minas se acham o centro do universo? Por quê? Por que não reconhecemos os nossos privilégios, as violências psicológicas que perpetuamos ou os silenciamentos que produzimos? Não seríamos nós, homens, os autoproclamados donos do universo?
A justa porrada no estômago pode ter um caráter pedagógico. Já tá mais do que evidente que as minas vão se calar cada vez menos e que o protagonismo delas tá só começando. Ponto para um mundo melhor. A hora de aprender a escutar, a respeitar, a deixar de ser um escroto é agora. Não dá pra adiar. Reconhecer que serviu o chapéu pode ser um primeiro minúsculo passo. Reconheço.
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Norbert Elias nos ensina a perceber que há aspectos da sociedade que julgamos ter sempre existido, mas que passaram por um longo processo de desenvolvimento até tomar a forma que conhecemos. Isso vale para as formas de governo, para os modelos de família e também para as boas maneiras e os costumes. Aprendemos com ele que as normas são criadas e recriadas para conter os impulsos ou ações instintivas das pessoas e permitir que a sociabilidade ocorra dentro de uma linguagem comum a todos (os códigos de civilidade). Esss normas estão presentes em diversos aspectos da vida social, como nos esportes, na arte, nas relações entre os Estados nacionais etc. Por meio da civilidade, o indivíduo aprende a lidar com os integrantes de seu grupo e com os de grupos diferentes do seu.
Elias se dedicou ao estudo do desenvolvimento da civilidade no Ocidente a partir do século XVI, a que chamou de processo civilizador. Considerava esse período da história importante por um conjunto de razões: naquele momento o fundamento religioso cedeu espaço para o pensamento secular, a urbanização se acentuou e os mercadores abriram o diálogo com grupos diferentes fora do território europeu. Essas transformações se consolidaram em períodos mais avançados, mas foi no século XVI que ocorreu uma sistematização e difusão dos padrões de civilidade, através do manual de Erasmo de Rotterdam. Esse livro, muito lido na época, serviu como recurso para civilizar uma sociedade que deixava o meio rural e se firmava no meio urbano.
Um efeito indesejável do processo civilizador foi o que os antropólogos chamaram de etnocentrismo – uma visão de mundo em que o próprio grupo é tomado como centro de referência, e o diferente é visto de forma depreciativa. As fronteiras entre os civilizados e os bárbaros (ou selvagens) foi o que marcou a história ocidental no período moderno – é só lembrar os desdobramentos históricos do contato entre os brancos europeus, de um lado, e os negros africanos, os indígenas americanos, os orientais e outros grupos étnicos, de outro.
BOMENY, Helena; FREIRE-MEDEIROS, Bianca. Tempos Modernos, Tempos de Sociologia. São Paulo: Editora do Brasil, 2010. Página 103.
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A máxima expresssão do pensamento Iluminista se encontra em Immanuel Kant (1724-1804), que, para além da Crítica da Razão Pura, escreveu Crítica da Razão Política e Fundamentação da Metafísica dos Costumes, nas quais desenvolve a sua teoria moral.
A razão prática diz respeito ao instrumento para compreender o mundo dos costumes e orientar o homem nas suas ações. Analisando os princípios da consciência moral, Kant conclui que a vontade humana é verdadeiramente moral quando regida por imperativos categóricos. O imperativo categórico é assim chamado por ser incondicionado, absoluto, voltado para a realização da ação tendo em vista o dever.
Nesse sentido, Kant rejeita as concepções morais que predominam até então, quer seja da filosofia grega, quer seja da cristã, e que norteiam a ação moral a partir de condicionantes como a felicidade ou o interesse. Por exemplo, não faz sentido agir bem com o objetivo de ser feliz ou evitar a dor, ou ainda para alcançar o céu ou não merecer a punição divina.
O agir moral se funda exclusivamente na razão. A lei moral que a razão descobre é universal, pois não se trata de descoberta subjetiva (mas do homem enquanto ser racional), e é necessária, pois é ela que preserva a dignidade dos homens. Isso pode ser sintetizado nas seguintes afirmações do próprio Kant: “Age de tal modo que a máxima de tua ação possa sempre valer como princípio universal de conduta”; “Age sempre de tal modo que trates a Humanidade, tanto na tua pessoa como na do outro, como fim e não apenas como meio”.
A autonomia da razão para legislar supõe a liberdade e o dever. Pois todo imperativo se impõe como dever, mas a exigência não é heterônoma – exterior e cega – e sim livremente assumida pelo sujeito que se autodetermina.
Vamos exemplificar. Suponhamos a norma moral “não roubar”:
O pensamento de Kant foi importante para fornecer as categorias da moral Iluminista racional, laica, acentuando o caráter pessoal da liberdade. Mas, a partir do final do século XIX e ao longo do século XX, os filósofos começam a se posicionar contra a moral formalista kantiana fundada na razão universal, abstrata, e tentam encontrar o homem concreto da ação moral.
É nesse sentido que podemos compreender o esforço de pensadores tão diferentes como Marx, Nietzsche, Freud, Kierkegaard e os existencialistas.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1993. Página 285.
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Bernardo Caprara
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Um dia, eles disseram que não queriam mais estar na escola. Estavam exaustos daquilo tudo. Tá... havia gente ali que eles não queriam deixar pra trás. Mas, no geral, já não aguentavam mais. Muita cobrança e pouco diálogo.
No outro dia, ele e ela viram na TV que a sua escola iria ser fechada. O governador tinha decidido: já era, aquele e outras dezenas de colégios perderiam a vez. Ficaram confusos. Não sabiam mais o que sentir.
Dias depois, um sentimento estranho tomava conta deles e de muitos amigos. A escola era cheia de problemas e muitas vezes eles quiseram sair correndo dela, sem vontade de voltar. Só que era a escola deles. Era a escola da comunidade, a escola perto de casa. Pertencia a eles.
Num piscar de olhos, muitos outros sentiram coisas parecidas. Ah, não! Eles não iriam mesmo deixar que o pouco que eles tinham, que as poucas e débeis instituições do Estado que eles podiam desfrutar virassem moeda de troca pra um governo qualquer.
Noutro piscar, uma escola era ocupada. Ocupação organizada, tomada por estudantes, com cooperação, luta e alegria. Protagonismo. Esperança. Eles piscaram de novo e... uma, duas, três, oito dezenas de escolas haviam sido ocupadas. Eram eles os protagonistas. E eles não iriam recuar.
De longe, eu me emocionei. Enchi os olhos de lágrimas quando vi, pela TV, num almoço preparado coletivamente, estudantes protagonizando a sua história. Uma história de resistência à arbitrariedade daqueles que a tudo querem capitalizar. Não me segurei quando eles e elas fizeram seus professores desabarem em emoção, lembrando o quanto todos lhes nutriam afeto. A escola era deles e não iria ter arrego.
O arrepio da esperança, por vezes tão distante de mim, mostrou que ainda pode existir. E eu lembrei Mia Couto, emblemático como todo grande escritor: “No mundo que combato morro. No mundo por que luto nasço”.
Há um pedaço de outro mundo nascendo com os secundaristas de São Paulo. E não pode ter arrego.
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Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
Paris, 2015. Duas matanças de caráter terrorista. Tristes. Injustificáveis. Se a ideia for entender os acontecimentos, acho que será preciso ir um pouco além do que oferece a cobertura minuto-a-minuto-por-uma-semana da grande mídia. A não ser que se tenha interesse num grau elevado de sensacionalismo e irreflexão. Mais do mesmo.
Iraque, 2005. Seria possível e até necessário ir mais longe do que isso. Porém, seguir os passos das análises do jornalista Patrick Cockburn pode ajudar, através da obra "A origem do Estado Islâmico". Segundo ele, a consolidação do poder do Estado Islâmico (ISIS) está ligada às intervenções militares ocidentais, sobretudo estadunidenses, no Oriente Médio. Trata-se de uma fissura da Al Qaeda, cuja doutrina unifica religião, militarismo e política, numa abordagem semelhante ao que rege o governo da Arábia Saudita – aliado histórico dos Estados Unidos.
Parte da Síria e do Iraque, 2015. Dominadas pelo ISIS, tais regiões são convertidas ao Califado extremista na base da força, do aniquilamento de outras vertentes muçulmanas que não a sunita, da tributação e do ataque ao patrimônio histórico da região - que guardaria uma espécie de memória a ser rejeitada. Só que também se concretiza o poder do ISIS através da prestação de serviços públicos básicos à população, como água e eletricidade, deixando tudo mais complexo.
Mundo, daqui por diante. De maneira contundente, o ISIS ataca muito mais do que as inocentes pessoas mortas: ataca grande parte dos valores idealizados pelo ocidente. Para isso, a França é um alvo perfeito. Local histórico de lutas por direitos civis, políticos e sociais, de defesa do Estado laico. Mas, não nos esqueçamos, nem por isso menos colonialista; nem por isso menos repleto de contradições internas.
O ponto que me faz temer o futuro mais do que esse próprio preocupante presente gira na roda das contradições internas, tanto dos territórios islâmicos (nem todos nas mãos do ISIS), quanto do ocidente. Se o extremismo islâmico é um perigo evidente, não deixa de ser um perigo evidente a islamofobia ou o crescimento do fascismo do século XXI, na civilização ocidental.
Serão capazes de se reorganizar e ganhar força entre os islâmicos os grupos ponderados e que interpretam o profeta Maomé de modo humanista e conciliador, enfrentando a barbárie praticada pelo ISIS dentro e fora dos seus territórios? Seremos capazes de fazer frente aos nossos governos ocidentais e seus grupos de apoio, sempre buscando capitalizar seus interesses geopolíticos e econômicos em qualquer parte "explorável" do planeta, doa a quem doer? Conseguiremos fazer dos valores ocidentais mais reais do que ideais, ou mesmo mais universais e menos seletivos?
Não dá pra ter certezas. Dá pra imaginar, contudo, como vai ser se o baile seguir tocando a mesma música com os mesmos dançarinos em movimento. A Guerra ao Terror e a Guerra ao Ocidente com efeitos semelhantes, espalhando muito sangue, fortalecidas internamente pelo medo, fomentando mais e mais ódios e segregações.
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Quando Simone de Beauvoir, em 1949, em O segundo sexo, disse que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, expressou a idéia básica do feminismo: a desnaturalização do ser mulher. O feminismo fundou-se na tensão de uma identidade sexual compartilhada (nós mulheres), evidenciada na anatomia, mas recortada pela diversidade de mundos sociais e culturais nos quais a mulher se torna mulher, diversidade essa que, depois, se formulou como identidade de gênero, inscrita na cultura. Com base no movimento feminista brasileiro que se inicia na década de 1970, este texto pretende ressaltar a particularidade do feminismo como uma experiência histórica que enuncia genérica e abstratamente a emancipação feminina e, ao mesmo tempo, se concretiza dentro de limites e possibilidades, dados pela referência a mulheres em contextos políticos, sociais, culturais e históricos específicos.
Sem pretender, evidentemente, esgotar o sentido de uma experiência tão plural quanto polissêmica, dependendo do ângulo a partir do qual se olhe o feminismo, este artigo focaliza inicialmente a relação entre o contexto de autoritarismo político e a forma adquirida pelo feminismo no Brasil, para, a seguir, discutir impasses estruturais do feminismo. Argumenta-se que, embora influenciado pelas experiências européias e norte- americana, o início do feminismo brasileiro dos anos 1970 foi significativamente marcado pela contestação à ordem política instituída no país, desde o golpe militar de 1964. Uma parte expressiva dos grupos feministas estava articulada a organizações de influência marxista, clandestinas à época, e fortemente comprometida com a oposição à ditadura militar, o que imprimiu ao movimento características próprias.
Embora o feminismo comporte uma pluralidade de manifestações, ressaltar a particularidade da articulação da experiência feminista brasileira com o momento histórico e político no qual se desenvolveu é uma das formas de pensar o legado desse movimento social, que marcou uma época, diferenciou gerações de mulheres e modificou formas de pensar e viver. Causou impacto tanto no plano das instituições sociais e políticas, como nos costumes e hábitos cotidianos, ao ampliar definitivamente o espaço de atuação pública da a sociedade brasileira (…).
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Em Ideologia e Utopia, Mannheim, antecipando em décadas tendências da epistemologia e da Sociologia do Conhecimento mais recentes, vai censurar uma reflexão epistemológica normativa e apriorística que insistia em ignorar o “problema de como os homens realmente pensam” nos contextos concretos da vida cotidiana, problema esse, contudo, iniludível numa investigação empírica acerca do conhecimento humano. Segundo ele, os epistemólogos erravam ao identificar o conhecimento tal como o concebiam – o produto lógicolinguístico de um sujeito epistêmico abstrato, isolado, desvinculado de qualquer situação existencial – como a única forma possível do conhecimento confiável, desqualificando, assim, aqueles modos de pensamento que resultavam da vida social, nasciam das práticas e para as práticas desenvolvidas no âmbito dessa vida.
Mannheim concede aos epistemólogos – uma concessão que soaria inaceitável aos defensores do chamado programa forte de Sociologia do Conhecimento – ser, de fato, possível encontrar um saber no qual buscaríamos em vão as marcas distintivas de um mundo social particular, um saber destituído, nesse sentido, de raízes sociais e ativistas, expressão, na verdade, de um “ponto de vista de nenhum lugar”, na formulação tão sugestiva de Thomas Nagel. Tal saber não constituía, portanto, concede Mannheim, uma invencionice filosófica, pura ficção normativa cuja única função seria proporcionar um padrão transcendental com base no qual uma epistemologia normativa e apriorística, cada vez mais distanciada das ciências empíricas particulares, decidia taxativamente acerca daquilo que devia ou não contar como conhecimento racional. Mannheim não vai tão longe assim em sua crítica da reflexão epistemológica! O conhecimento tal como os epistemólogos o concebiam, admite ele, de fato existia. Contudo, prossegue Mannheim, esse conhecimento só podia ser encontrado em campos especiais da investigação científica, nas ciências naturais e exatas, não esgotando, portanto, o universo do conhecimento humano confiável. Cabia incluir também, nesse universo, aquele saber existencialmente condicionado, perspectivista, ligado à ação, do qual os indivíduos (aí se incluindo os epistemólogos!) sempre se valiam quando precisavam tomar decisões práticas nos contextos da vida coletiva. Não havia razão para excluí-lo, não havia razão para estabelecer uma disjunção total, exclusiva, entre tal saber e aquilo que admitíamos como conhecimento confiável. O saber formal, abstrato, desenraizado, cuja expressão mais acabada podia ser encontrada nas ciências naturais e exatas, não constituía, ao contrário do que sugeria a reflexão epistemológica, todo o conhecimento humano possível.
Contra os epistemólogos de seu tempo, mas também, em larga medida, contra a teoria da ideologia em Marx, que insistiam em vincular o erro intelectual, a cegueira ideológica, na linguagem marxista, à influência negativa das situações existenciais no mundo das ideias, Mannheim vai afirmar a possibilidade do conhecimento objetivo existencialmente enraizado (…).
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(…) Desde o início de Monadologia e sociologia, a surpresa é inevitável: em vez de fazer a sociologia surgir de uma ruptura radical com a filosofia, Tarde busca na filosofia os princípios ontológicos de um "ponto de vista sociológico universal" (p. 58). Para tanto, ele convoca uma intrincada noção: "as mônadas, filhas de Leibniz" (p. 19). Em Leibniz (1714), as mônadas são as partículas elementares, as substâncias simples de que os compostos são feitos. Elas são, portanto, diferenciadas (dotadas de qualidades que as singularizam umas em relação às outras) e diferenciantes (animadas por uma potência imanente de mudança contínua ou de diferenciação). Além disso, ou por isso mesmo, elas dizem respeito às nuances ao infinitamente pequeno, ao infinitesimal que constitui toda (a) diferença. A hipótese das mônadas implica, portanto, a afirmação da diferença como fundamento da existência e, conseqüentemente, a renúncia ao dualismo cartesiano entre matéria e espírito e àqueles que lhe são correlatos – particularmente o dualismo natureza/sociedade tão caro a Durkheim, que lhe confere proporções ontológicas no postulado do homo duplex.
O que Tarde propõe, no entanto, é uma "monadologia renovada" (p. 46), vale dizer, uma teoria social que retenha, de Leibniz, o princípio da continuidade (que fundamenta o cálculo infinitesimal) e o dos indiscerníveis (ou da diferença imanente), e que abra mão dos princípios da clausura e da razão suficiente (em suma, da hipótese de Deus) em que Leibniz havia encerrado as mônadas. Nem absolutamente espirituais, nem integralmente materiais, em Tarde as mônadas não são, como em Leibniz, as substâncias simples que entram nos compostos: "esses elementos últimos aos quais toda ciência chega – o indivíduo social, a célula viva, o átomo químico – somente são últimos ao olhar de sua ciência particular", afirma Tarde (p. 23), "eles mesmos são compostos", compostos até o infinitesimal. Tarde rompe a clausura das mônadas leibnizianas da mesma forma que os cientistas haviam quebrado o átomo: se os átomos são turbilhões, as entidades finitas não constituem totalidades sui generis, mas integrações de diferenças infinitesimais, no sentido emprestado ao termo pelo cálculo infinitesimal (pp. 23-24). As mônadas são composições elementares infinitesimais, o que faz de "todo fenômeno [...] uma nebulosa de ações emanadas de uma multiplicidade de agentes que são como pequenos deuses invisíveis e inumeráveis" (p. 55). Para Tarde, portanto, os "verdadeiros agentes seriam [...] esses pequenos seres que dizemos ser infinitesimais, e as verdadeiras ações seriam essas pequenas variações que dizemos ser infinitesimais" (p. 27, g.a.). Surpreendentemente, é em pleno desenvolvimento da ciência que Tarde vai encontrar esses pequenos deuses se atualizando, pois, para ele, o que a ciência tem feito, "a despeito dos próprios cientistas" (p. 19), não é exorcizar as mônadas, mas acolhê-las em seu âmago, procurando por toda parte no pequeno a resposta para o grande, vale dizer, pulverizando o universo e multiplicando indefinidamente os agentes infinitesimais do mundo (p. 31).
(…) Enfim, o que Tarde propõe é que levemos a sério a noção de infinitesimal e o que ela implica: considerar a diferença como relação (e vice-versa) e não como termo (ou unidade discreta), como dinamismo de uma potência e não como atributo de uma essência. Trata-se, com Tarde, de cultivar a possibilidade de uma teoria social que ponha em suspensão (e suspeição) a antinomia entre o contínuo uniforme e o descontínuo pontual ou, mais precisamente, que pense as entidades finitas como casos particulares de processos infinitos, as situações estáticas como bloqueios de movimento, os estados permanentes como agenciamentos transitórios de processos em devir (e não o contrário), com bem notou Milet (1970, pp. 158-159).
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Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
O Enem 2015 deixa um rastro de chorume pela internet. O foco do esgoto verbal se divide em dois: a prova de Ciências Humanas e o tema da redação. Afirma-se que se tratam de evidências cabais do comunismo do MEC/PT/Foro de SP.
A doutrinação do marxismo petista começaria pela prova de Humanas. Aliás, no fundo, o pessoal do chorume considera as Ciências Humanas em si uma doutrinação petralha. Para eles, Lula inventou essas matérias para, junto com Obama, consolidar o comunismo interplanetário. Vai vendo, dizem em tom profético.
Na real, a prova de Humanas tem, sim, um perfil crítico à esquerda. O que é muito diferente de ser uma cartilha socialista. Max Weber, David Hume, Karl Mannheim e Sérgio Buarque de Holanda, para citar só uns exemplos, jamais poderão ser alocados no grupo dos revolucionários esquerdistas. Chega a ser cômico tentar enquadrá-los nesse rótulo.
Poderia se objetar que a prova teria que ser mais "equilibrada" politicamente. Ok, poderia. Só que, outra vez, isso difere bastante do brado contra um "comunismo explícito" do MEC. O que me parece estar por trás dessa verborragia toda é mais um ataque à possibilidade de que um perfil crítico à esquerda possa estar presente numa avaliação educacional. Um ataque à pluralidade em nome da pluralidade.
O chorume fica ainda mais regorgitante nas críticas à Simone de Beauvoir e ao tema da redação. O fato é que, se abordar a necessidade de direitos iguais entre homens e mulheres representa uma posição esquerdista, assim como o fim da violência de gênero, isso diz muito mais da direita do que da esquerda. Isso deveria envergonhar os liberais autênticos, mas no Brasil muitos deles costumam se juntar às fileiras do pessoal do esgoto verbal.
Por fim, embora aparentemente democrático, por tentar valorizar competências e habilidades, o Enem parece enganar mais do que transformar o acesso à Universidade. Sobretudo pelo fato destacado há anos pelo pesquisador Simon Schwartzman: segue a hierarquização escolar e a sua relação com os resultados do exame e não há modificação significativa na estrutura das desigualdades de oportunidades educacionais - estudantes com melhores condições socioeconômicas tendem a pegar as melhores vagas, inclusive longe de casa.
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Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
Seria inacreditável, não fosse realidade. Homens adultos vomitando o seu desejo sexual sobre uma menina de 12 anos, participante de um programa qualquer de televisão. Esse acontecimento escroto, que me deixa envergonhado por ser homem, acionou a lembrança de uma história que uma amiga me contou há bastante tempo.
Ela estava numa reunião de família. Sentada à mesa de jantar, rodeada pelos parentes, escutara nitidamente a fala mansa da sua avó:
- Hoje, pensando bem, se eu pudesse escolher, nasceria homem.
Os adultos têm a mania de tratar os adultos envelhecidos como crianças grandes. Algo análogo acontecera naquela noite. Ninguém entendera nada. Todos julgaram se tratar de um devaneio da senhora, uma viagem de quem já não sabia o que falava.
Contudo, para a sua neta, no auge da juventude, aquela frase parecera carregar algo mais. Não se tratara de afirmar que ser mulher era inerentemente ruim ou que as mulheres eram piores do que os homens. Não se tratara de uma blasfêmia contra si mesma. A jovem sabia que sua avó não pensava assim. Parecera, isso sim, uma sentença bastante pragmática.
Aquela frase deveria dar vergonha a todos os homens presentes. Minha amiga relatou o sentimento de que a frase carregava uma história de piadas, assédios, violências, silêncios, ausências e solidões muito particulares, mas de alguma forma comuns a muitas mulheres. Ocorrências que nenhum homem conhecia, conhece ou conhecerá como uma experiência pessoal. Ela dizia o óbvio.
Diante do meu silêncio envergonhado, sabedora do meu apoio integral e coadjuvante aos seus argumentos, minha parceira confiou uma das mudanças principais na sua vida. Disse-me que, a partir daquela data, botara na cabeça a ideia de fazer tudo o que fosse possível para que nenhuma mulher ao seu redor chegasse à velhice não querendo ser uma mulher. E que, depois daquele dia, não mais seria possível desistir dessa tarefa.
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Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
Certa vez, numa das minhas primeiras experiências como professor, ainda em dúvida quanto a minha capacidade de enfrentar o ofício, uma estudante parou o que fazia, olhou nos meus olhos e disse: “Já sei o que vou ser, vou ser professora”.
Espantado, meio atônito, fiquei uns segundos pensando no que responder. Pensei em alertá-la sobre todas as tretas cotidianas. Pensei em dizer pra ela que muita gente a olharia com desdém; que ela teria baixos salários e condições desumanas de trabalho; lidaria com o desinteresse geral muitas vezes; arriscaria a sua saúde física e mental; provavelmente apanharia da polícia ou seria chamada de doutrinadora; enfim, pensei em resumir pra ela que o bicho pega nessa profissão.
Pensei, ainda, que estava sendo muito pessimista e não poderia passar isso para aquela menina cujos olhos insistiam em brilhar. Pensei em dizer para ela que todos os dias o trampo ia ser diferente; que ela poderia dar boas risadas nas salas de aula lotadas de gente; que um sorriso, um abraço ou uma palavra de conforto sempre chegariam, mesmo que oriundos apenas de alguns dos seus alunos; pensei, sobretudo, em dizer para ela que a vida de professor ainda tem um sentido importante e é tomada por pequenas bonitezas.
Paralisado, só consegui perguntar: “Por que tu queres ser professora?”. A garota, com aquela objetividade adolescente, não titubeou no veredito simples e sincero. Tascou na lata aquilo que por vezes a gente não consegue mais sentir ou ver. “Ah, professor. Com alguns de vocês a gente voa longe, a gente sente o coração bater mais forte e tem vontade de entender o mundo. A gente se sente bem. Eu quero levar isso pra outras pessoas”.
E assim, como se contasse uma obviedade para um amigo, aquela estudante bateu o martelo e dirimiu as minhas dúvidas. Não tinha mais como fugir da docência.
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Paidagogia designava, na Grécia antiga, o acompanhamento e a vigilância do jovem. O paidagogo (o condutor da criança) era o escravo cuja atividade específica consistia em guiar as crianças à escola, seja a didascaléia, onde receberiam as primeiras letras, seja o gymnásion, local de cultivo do corpo.
Nos nossos tempos, o termo pedagogia ganha outras conotações. Três tradições de estudos educacionais se responsabilizam pela sua configuração atual: a francesa, na linha da sociologia de Émile Durkheim (1858-1917), e as tradições alemã e americana, segundo as filosofias e psicologias de Johann Friedrich Herbart (1776-1841) e John Dewey (1859-1952).
Entre o final do século XIX e o início do XX, Durkheim se empenha em conceituar "pedagogia", "educação" e "ciências da educação". A educação é definida como o fato social pelo qual uma sociedade transmite o seu patrimônio cultural e suas experiências de uma geração mais velha para uma mais nova, garantindo sua continuidade histórica. A pedagogia, por sua vez, é vista não propriamente como teoria da educação, ou pelo menos não como teoria da educação vigente, mas como literatura de contestação da educação em vigor e, portanto, afeita ao pensamento utópico. Contrariamente, teorias da educação real e vigente deveriam seguir as ciências da educação. Essas seriam compostas, principalmente, pela sociologia e pela psicologia. À primeira, Durkheim incumbe de substituir a filosofia na tarefa de propor fins para a educação; à segunda caberia o trabalho de fornecer os meios e instrumentos para a didática.
Herbart, antes de Durkheim, e Dewey, concomitante e após ele, compreendem o termo pedagogia no interior de outras constelações conceituais. Herbart não separa ciência e pedagogia; ao contrário, é exatamente ele o formulador, em nossos tempos, da idéia da "pedagogia como ciência da educação". Para tal, fundamenta a pedagogia na psicologia. Dewey, por outro lado, não separa pedagogia e filosofia.
Dewey pertence a uma corrente filosófica denominada pragmatismo. Podemos dizer que a contribuição dessa corrente para a discussão filosófica contemporânea é a contestação da idéia tradicional de verdade — a verdade como correspondência — em favor da idéia pragmática de verdade — "a verdade é o útil". Sendo assim, uma filosofia, ou melhor, uma teoria do conhecimento de cunho filosófico, pode ser vista como verdadeira, para Dewey, a partir de seus resultados práticos — sua "utilidade". Ora, pergunta Dewey, qual o melhor lugar para averiguar a veracidade — a validade — de uma teoria do conhecimento senão na situação de ensino? Desse modo, Dewey subverte a consagrada relação entre filosofia e educação. O importante é menos o estabelecimento de fins para a educação propostos pela filosofia e mais a averiguação da veracidade de uma filosofia (uma teoria do conhecimento) proporcionada pela educação. A educação torna-se o banco de provas da filosofia. A filosofia, então, é uma filosofia da educação. Pedagogia, filosofia e filosofia da educação, na concepção deweyana, tornam-se, em alguma medida, sinônimos.
Herdeiros dessas três tradições, os estudiosos contemporâneos da educação utilizam-se do termo pedagogia, alternada ou concomitantemente, negativa ou positivamente, nas acepções definidas acima, isto é, como utopia educacional, como ciência da educação e como filosofia da educação.
GHIRALDELLI JR., Paulo. O que é pedagogia? – Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006. Páginas 8 e 9.
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Não há para mim, na diferença e na “distância” entre a ingenuidade e a criticidade, entre o saber de pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, uma ruptura, mas uma superação. A superação e não a ruptura se dá na medida em que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser curiosidade, se criticiza. Ao criticizar-se, tornando-se então, permito-me repetir, curiosidade epistemológica, metodicamente “rigorizando-se” na sua aproximação ao objeto, conota seus achados de maior exatidão.
Na verdade, a curiosidade ingênua que, “desarmada”, está associada ao saber do senso comum, é a mesma curiosidade que, criticizando-se, aproximando-se de forma cada vez mais metodicamente rigorosa do objeto cognoscível, se torna curiosidade epistemológica. Muda de qualidade, mas não de essência. A curiosidade de camponeses com quem tenho dialogado ao longo de minha experiência político-pedagógica, fatalistas ou já rebeldes diante da violência das injustiças, é a mesma curiosidade, enquanto abertura mais ou menos espantada diante de “não-eus”, com que cientistas ou filósofos acadêmicos “admiram” o mundo. Os cientistas e os filósofos superam, porém, a ingenuidade da curiosidade do camponês e se tornam epistemologicamente curiosos.
A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta faz parte integrante do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos.
Como manifestação presente à experiência vital, a curiosidade humana vem sendo histórica e socialmente construída e reconstruída. Precisamente porque a promoção da ingenuidade para a criticidade não se dá automaticamente, uma das tarefas precípuas da prática educativo-progressista é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita, indócil. Curiosidade com que podemos nos defender de “irracionalismos” decorrentes ou produzidos por certo excesso de “racionalidade” de nosso tempo altamente tecnologizado. E não vai nesta consideração nenhuma arrancada falsamente humanista de negação da tecnologia e da ciência. Pelo contrário, é consideração de quem, de um lado, não diviniza a tecnologia, mas, de outro, não a diaboliza. De quem a olha ou mesmo a espreita de forma criticamente curiosa.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2010. Páginas 31-32.
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(…) A temática em torno da noção de habitus remete ao debate sobre ação e estrutura, indivíduo e sociedade. Do estruturalismo ao individualismo metodológico, diferentes enfoques foram e são atribuídos a essa discussão. Bourdieu reconfigura o conceito de habitus para tentar dar conta dessa dicotomia que acredita se consolidar como uma falsa dicotomia mutiladora.
(…) O habitus é a maneira como as estruturas sociais se imprimem na racionalidade e no corpo dos agentes, por meio da interiorização da exterioridade. Um sistema de disposições duráveis e transponíveis, em que as múltiplas respostas às variadas situações são dadas a partir de um conjunto limitado de esquemas de ação e pensamento.
(…) O habitus é, em algum sentido, uma história incorporada, uma quase-natureza. Os agentes relegam esses atributos, ainda que eles estejam no âmago das suas práticas. Eles funcionam como uma presença operante do pretérito do qual o habitus é resultante. Justamente é o habitus que dá às práticas o caráter de independência relativa aos condicionamentos exteriores da realidade instantânea.
(…) Trata-se de um princípio gerador, incrementado com contidas improvisações mais ou menos duradouras. Vige na homogeneidade objetiva do habitus de grupos ou classes o produto das relativamente homogêneas condições de existência, fato que institui a possibilidade de as práticas serem exercidas sem o uso de cálculos estratégicos ou indicações conscientes a uma regra ou norma. O habitus configura-se como uma lei imanente impressa no corpo dos agentes por intermédio de semelhantes histórias. Um a um, os sistemas de disposições de cada agente atuam com as feições de variações estruturais uns dos outros, em que se manifestam as singularidades dos agentes nas suas classes e trajetórias.
CAPRARA, Bernardo. A sociologia de Pierre Bourdieu: sistemas de ensino e reprodução social. In: CAPRARA, Bernardo. A influência do capital cultural no desempenho estudantil: reflexões a partir do Saeb 2003. Dissertação de Mestrado Acadêmico, PPG Sociologia UFRGS, 2013.
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(…) O pensamento sociológico, como um poder antifixação, é, dessa maneira, um poder em seu próprio direito. Ele torna flexível aquilo que pode ter sido a fixidez opressiva das relações sociais e, ao fazer isso, abre um mundo de possibilidades. A arte de pensar sociologicamente consiste em ampliar o alcance e a efetividade prática da liberdade. Quanto mais disso aprender, mais o indivíduo será flexível diante da opressão e do controle, e portanto menos sujeito a manipulação. É provável que ele também se torne mais efetivo como ator social, uma vez que passa a ver conexões entre suas ações e as condições sociais, assim como a possibilidade de transformação daquelas coisas que, por sua fixidez, se dizem imutáveis, mas estão abertas à transformação.
Há também o que se encontra para além de nós como indivíduos. Dissemos que a sociologia pensa de forma relacional para nos situar em redes de relações sociais. Faz, assim, uma apologia do indivíduo, mas não do individualismo. Nesse sentido, pensar sociologicamente significa entender de um modo um pouco mais completo quem nos cerca, tanto em suas esperanças e desejos quanto em suas inquietações e preocupações. Podemos então apreciar melhor o indivíduo humano contido nesse coletivo e talvez aprender a respeitar aquilo que toda sociedade civilizada tem de garantir para se sustentar: o direito de cada membro do coletivo escolher e pôr em prática maneiras de viver de acordo com suas preferências (…).
BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. Página 26.
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Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
Um dos fenômenos mais assustadores do Brasil é a violência urbana. O número de mortes por armas de fogo se assemelha a uma guerra. Além do medo no dia a dia, esse cenário de insegurança produz, também, alguns dilemas morais. Gostaria de explorar um deles. No final, não pretendo apresentar uma resposta para ele, mas discutir uma das matrizes filosóficas possíveis para respondê-lo.
Imagine uma das maiores e mais belas cidades do nosso país ardendo em pleno verão. O calor está insuportável. Por sorte, há belas praias na região. Nas areias, todos se sentem mais longe do inferno. Porém, arrastões têm se repetido nas principais orlas e adjacências, o que gera descontentamento da população e estimula um clima belicoso de vingança em alguns grupos autoproclamados “justiceiros”.
Você está num ônibus que saiu do centro, louco para chegar à beira de uma das praias mais requisitadas da metrópole. É sabido que, nas proximidades da praia, a polícia está de prontidão para reter jovens pobres e negros que são considerados os protagonistas dos arrastões. Esses jovens costumam chegar através de linhas de ônibus específicas, não por acaso aquelas que são paradas pela polícia.
Voltemos à sua vontade de chegar à praia. No ônibus, você observa ao seu redor. À esquerda, você acredita enxergar um rapaz do seu bairro. Você não tem certeza de que é ele, mas está quase convicto de que se trata do rapaz. Sua espinha fica gelada. Você lembra que, um dia antes, cruzou pelo rapaz e um grupo de amigos que tramavam um arrastão nas orlas da cidade. Eles estavam cheios de ódio. Você recorda que a combinação deles era a seguinte: quando o rapaz que você acredita estar no seu ônibus chegasse à praia, por meio de uma linha de ônibus não suspeita, todos se encontrariam com outros grupos de jovens e começariam a operação nas areias. A operação só começaria com a chegada do rapaz.
Logo, o seu ônibus irá passar pela batida da polícia. Mas não será parado. Não é um dos coletivos que desperta suspeita. Você começa a ficar nervoso. Não sabe o que fazer. Deve delatar o rapaz ao cobrador, que está localizado ao seu lado, possibilitando que o cobrador peça ao motorista que pare na blitz e que o rapaz seja, no mínimo, revistado? Você não será percebido como o x9, ninguém saberá da sua delação. Por não estar certo de que o rapaz seja mesmo o rapaz que você sabe que será o líder dos arrastões, você deve ficar quieto com seus receios?
Aparentemente, há uma resposta simples para esse dilema moral. No intuito de que o bem-estar geral da população que frequenta a praia esteja garantido, você deve delatar o rapaz. Esse é um princípio que pode ser associado ao pensamento utilitarista, aqui entendido pela filosofia do britânico Jeremy Bentham (1748-1832). A ideia pode ser simplificada, por motivos pedagógicos. Para saber o que é fazer a coisa certa, basta fazer o cálculo da utilidade da ação. Se a consequência da ação maximizar a felicidade e o bem-estar geral, a utilidade, esta será uma ação moralmente correta, independente de sacrifícios individuais que possam advir da ação. O que importa é maximizar o prazer e diminuir a dor da maioria.
Pensando nisso, você está quase certo de que precisa delatar o suposto líder criminoso que você acredita estar presente no ônibus que se aproxima da orla. Quase lá, você observa ao seu redor outra vez. À direita, você visualiza um grupo de cinco ou seis jovens negros. Passa, então, a atentar ao que eles conversam. Eles estão dizendo que fugiram da rota tradicional que fazem para chegar à praia, pois estão com pouco dinheiro e sem documentos, mas querem somente curtir o mar e a paisagem. Combinaram com umas gatinhas de dar um mergulho e umas risadas. Você olha para eles e percebe que eles falam a verdade. Eles não parecem ter mais de 12 anos cada e suas demais conversas são de uma ingenuidade ímpar.
A coisa complica na sua cabeça. Você sabe que ao delatar aquele que você acredita ser o líder dos arrastões que estão por vir, por tabela o grupo de pequenos adoradores do mar será esculachado pela polícia e perderá a chance de contemplar o oceano e afastar o calor. Mesmo não tendo cometido nenhum crime. Você recorda que, na ideia utilitarista, o sacrifício desses jovens é necessário para o bem-estar da maioria de frequentadores da praia. Mas você não sabe mais o que é certo ou errado nesse caso. Você se vê frente a um dilema moral.
Uma objeção óbvia à fórmula utilitarista ressalta que todos nós possuímos direitos individuais que não podem ser sacrificados em função da maioria. Não é moralmente correto sacrificar os pequenos jovens adoradores do mar para maximizar a felicidade geral. Ainda mais porque esses jovens não foram consultados, não consentiram em se sacrificar pelo todo.
Outra objeção diz respeito ao fato de que podemos nos perguntar, nesse caso e em outros casos, se todos os indivíduos possuem oportunidades equânimes de frequentar a praia, ou mesmo de possuir renda para se locomover pela cidade e educação qualificada que lhes ofereça possibilidades promissoras na vida social. Como maximizar o bem-estar geral se esse geral não é tão geral assim? Como sacrificar os direitos da minoria em prol do prazer da maioria, se essa minoria não é tão minoria assim?
Como disse no início desse texto, não apresentarei respostas. Acho que a tarefa das ciências humanas, essa Geni do conhecimento na era da técnica, mais do que bater o pé em defesa de certezas fechadas, reside na intenção de demonstrar a complexidade da vida em sociedade e fomentar a reflexão sobre ela. E, a partir dessas reflexões, ajudar a tirar as nossas ações do imediatismo e da banalidade.
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Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
O presente ensaio tem o intuito de resgatar algumas contribuições de um dos fundadores da sociologia, o francês Émile Durkheim. A partir da exposição de uma parte dos tópicos centrais do seu extenso trabalho, pretende-se demonstrar a sua importância na trajetória das ciências sociais, além de dissertar sobre a sua incidência na temática da moral e suas relações com a área da educação. Para isso, este ensaio divide-se em duas partes, permeadas pela noção de moral proposta pelo autor: a primeira apresenta uma visão grosso modo da obra do autor; a segunda dialoga com os pontos entrelaçados à temática educacional.
CARACTERÍSTICAS GERAIS DO PENSAMENTO DE DURKHEIM
Émile Durkheim (1848/1917) é considerado um dos principais responsáveis pela consolidação da sociologia como disciplina científica. Ele dedicou uma parte dos seus estudos evidenciando a importância do método para uma ciência que ambiciona explicar a sociedade, além de caracterizar os instrumentos basilares para a pesquisa dos fenômenos sociais.
No trabalho intitulado As Regras do Método Sociológico, Durkheim procurou estipular os caracteres básicos que fazem a sociologia operar no escopo da ciência, afastando-a da filosofia e a estabelecendo como uma área específica. Na sua versão, a sociologia é independente daquilo que chamou de “doutrinas da prática”, isto é, ela não deve ser nem determinista, nem individualista, tampouco comunista ou socialista. Seu papel não está atrelado aos partidos políticos; é voltado para a objetividade do método (DURKHEIM, 1977).
Sendo o método sociológico objetivo, ele é dominado pela ideia de tratar os fatos sociais como coisas. Mesmo que sob um prisma um pouco diferente, este princípio esteve presente no pensamento de Auguste Comte. Assim, o sociólogo deve afastar as noções antecipadas que formula acerca dos fatos, no intuito de encarar os próprios fatos, para atingi-los através do exame dos elementos mais objetivos. Isso significa explicar a realidade como ela é, não como ela deveria ser.
Os fatos sociais representam, para Durkheim (1977), maneiras de agir, pensar e sentir que carregam a marcante propriedade de existir fora das consciências individuais das pessoas. São tipos de conduta ou pensamento que não são apenas exteriores ao indivíduo, mas também se impõem a ele. O fato social existe nas partes, na medida em que existe no todo, o que confere a sua característica de generalidade. O sentimento coletivo não revela só aquilo que existe de comum entre as consciências individuais. Ele é produto da vida em comum, resultado das ações e reações estabelecidas entre as consciências individuais. A energia da sua origem coletiva é que repercute em cada consciência individual.
É possível, portanto, resumir o domínio em que a sociologia atua na perspectiva durkheimiana. O fato social é reconhecível pelo poder de coerção externa que exerce ou pode exercer sobre os indivíduos; a presença desse poder é reconhecível pela existência de alguma sanção determinada ou resistência que o fato opõe a qualquer iniciativa individual que vá desestabilizá-la; por fim, estipula uma difusão no interior do grupo, independente das formas individuais que assume ao se difundir (DURKHEIM, 1977).
As contribuições de Émile Durkheim (2003, 1977) também discutem o método para determinar a função da divisão do trabalho nas sociedades contemporâneas. O autor indica que os elementos econômicos originados do trabalho são de pequeno valor, quando comparados ao efeito moral causado pela divisão do trabalho. Sua verdadeira função é criar um sentimento de solidariedade entre as pessoas. Através da divisão do trabalho é que se tornam possíveis as sociedades, passando a vigorar uma ordem moral e social sui generis. Analisada sob essa ótica, a divisão do trabalho garante a coesão social.
Para verificar o papel da divisão do trabalho, entendida como geradora de solidariedade social, e assim conseguir analisá-la, faz-se preciso estudar o seu símbolo mais visível. Durkheim (2003) disserta, então, sobre o direito. A vida social tende, sempre que existe de maneira durável, inevitavelmente a assumir uma forma definida e a se organizar. O direito é o que a própria organização tem de mais estável e conciso. No que concerne ao argumento de que nem toda vida social é regulada por formas jurídicas, o autor defende que, se em dado momento não se deixam claras as letras jurídicas, a regulamentação fica a cargo dos costumes. Todo preceito jurídico pode ser definido assim: uma regra de conduta sancionada.
Há, entretanto, a chamada divisão do trabalho anômica. Ela consiste na situação em que não está organizada a divisão do trabalho, e por isso não ocasiona solidariedade social. A priori, poder-se-ia dizer que o estado de anomia é impossível sempre que os mecanismos de solidariedade estejam em contato bastante e suficientemente prolongado. Se os trabalhadores são reduzidos ao papel de máquina, é porque a divisão do trabalho se encontra em circunstâncias anormais e excepcionais. Normalmente, o desempenho de cada função especial supõe que o trabalhador/indivíduo não se feche estreitamente, mas que mantenha relações constantes com as funções vizinhas, sentindo que serve para alguma coisa mais ampla.
Ainda sobre a questão da solidariedade social, um fenômeno moral, uma distinção demanda ser feita. Estão em jogo dois tipos de solidariedade, na visão durkheimiana: a solidariedade mecânica e a solidariedade orgânica. A solidariedade mecânica expressa uma ligação direta entre o indivíduo e a sociedade. É proveniente das semelhanças, e torna harmônicos inclusive os pormenores dessa conexão. Essa solidariedade social decorre de certo número de estados de consciência comuns a todos os membros da mesma sociedade e é representada materialmente pelo direito repressivo. Pode ser associada às comunidades tradicionais, nas quais o nível de coerção do grupo sobre o indivíduo é tão intenso que quase não há espaço para comportamentos dissonantes (DURKHEIM, 2003).
Por outro lado, a solidariedade orgânica, fruto da divisão do trabalho, só é possível se a personalidade individual não for completamente absorvida pela personalidade coletiva, se houver uma esfera própria de ação para a consciência individual. Isso origina uma coesão social mais forte; cada um depende da sociedade na qual o trabalho é dividido, e a atividade de cada um é tanto mais pessoal quanto mais especializada ela seja.
Não obstante, Durkheim (2003) percebe a preponderância progressiva da solidariedade orgânica sobre a solidariedade mecânica. As sociedades primitivas, alcunhadas de hordas pelo autor, funcionavam na lógica da coesão através das semelhanças – solidariedade mecânica – e iniciaram progressivamente o caminho da divisão do trabalho social. A passagem de um estado para outro se fez por intermédio de uma lenta evolução. A solidariedade orgânica não pode ser compreendida isolada, sozinha; dividindo espaço com a solidariedade mecânica, ela vai progressivamente se fazendo preponderante.
DURKHEIM E A TEMÁTICA EDUCACIONAL
Na obra durkheimiana, a temática educacional aparece associada a processos de socialização e ao conteúdo das concepções morais de determinadas sociedades. Se um determinado indivíduo age conforme as matrizes da sua sociedade, suas ações derivam da educação recebida nestes processos sociais. Tais investidas não ocorrem no vazio, mas, sim, no meio moral estabelecido e numa teia de regras e valores engendrada pelas sucessivas gerações. Que tal uma busca por uma moral laica, erigida num modelo racional?
Há séculos que a educação vem passando por um processo de laicização. Já foi dito algumas vezes que os povos primitivos não possuem qualquer moral. Foi um erro histórico. Não existe povo que não tenha sua moral: o que ocorre é que a moral das sociedades inferiores não é a mesma que a nossa. Aquilo que caracteriza a moral dessas outras sociedades é que se trata de uma moral essencialmente religiosa (DURKHEIM, 2008, p. 22).
Em linhas gerais, a educação indica o processo pelo qual os indivíduos aprendem a se concretizar enquanto membros de uma dada sociedade. Não há a possibilidade de educar os filhos de maneira inteiramente particular, fazendo-os ser aquilo que os pais querem. Um conjunto de regras, costumes e noções não são facultativos na prática educacional. Sua ausência impede o desenvolvimento adequado dos jovens, no que tange à atuação nas condições da vida social dos adultos. Por isso, ideias educacionais demasiadamente antigas ou visionárias podem atrapalhar a colocação dos sujeitos nos processos de socialização em que estão inseridos.
Uma educação sintonizada com o seu tempo precisa estar sintonizada com o meio moral em que o estudante está se desenvolvendo. Considerando cada sociedade desde os seus aspectos próprios, pode-se dizer que cada sociedade detém um sistema de educação que submete os seus indivíduos de modo quase irretocável. O que atua é uma maneira de regulação educacional difícil de ser driblada sem maiores resistências.
Durkheim (1975) diz que tais costumes e ideias não podem ser pensados como criações de indivíduos, como que consequências da ação de um membro da sociedade sobre o todo. Pelo contrário, são indicativos da vida em comum, ilustrações das demandas da vida em comum, do estágio em que a sociedade se encontra e da sua história. O passado da articulação coletiva humana, de alguma forma, acaba colaborando para erigir os princípios que orientam a educação atual. Há um vínculo inter-geracional perceptível nos sistemas de ensino, dependentes que são de fatores políticos, religiosos, científicos, industriais e etc.
O fato é que o ser social não nasce com o indivíduo humano, como uma prerrogativa primitiva natural. Também não pode ser visto como um resultado espontâneo da vivência humana com o passar dos tempos. Para Durkheim (1975), se os acontecimentos da vida humana seguissem um ritmo de espontaneidade, as pessoas não estariam dispostas a aceitar autoridades políticas, disciplinas morais, não se configurariam devotos e sequer praticariam sacrifícios em prol de alguma motivação maior. No sentido oposto dessa força natural inexistente, pode ser visto que a consolidação das diferentes sociedades ocasiona, a cada nova geração, o erguimento das implicações sociais stricto sensu. Adiciona-se aos indivíduos recém nascidos uma vida moral e social, desdobramento da educação.
Em suma, uma definição precisa de educação na sociologia durkhemiana atende à perspectiva de uma socialização metódica das novas gerações de habitantes de uma dada sociedade. Constituir o ser social é a sua tarefa, um ser dotado de uma faceta pessoal e, ao mesmo tempo, dotado de uma faceta intrincada aos complexos de ideias, hábitos e sentimentos que conformam os grupos aos quais os indivíduos se enlaçam.
Toda a educação consiste num esforço contínuo para impor às crianças maneiras de ver, de sentir e de agir às quais elas não chegariam espontaneamente – observação que salta aos olhos todas as vezes que os fatos são encarados tais quais são e tais quais sempre foram. (...) A pressão de todos os instantes que sofre a criança é a própria pressão do meio social tendendo a moldá-la à sua imagem, pressão de que tanto os pais quanto os mestres não são senão representantes e intermediários (DURKHEIM, 1977, p. 5).
Finalmente, este ensaio procurou dissertar sobre algumas das características mais gerais da obra do sociólogo francês Émile Durkheim, expondo alguns dos seus principais conceitos e as suas relações com a temática educacional. Sem dúvidas, a obra durkheimiana permanece imprimindo sentidos relevantes para as abordagens sociológicas contemporâneas e seus desdobramentos teóricos e de pesquisa.
REFERÊNCIAS
DURKHEIM, Émile. A educação moral. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
_______________. Durkheim (Coleção Grandes Cientistas Sociais). Organização José Alberto Rodrigues. São Paulo: Ática, 2003.
_______________. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.
_______________. Educação e sociedade. São Paulo: Melhoramentos, 1975.
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