ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 1 (16)

América do Sul, Brasil,

sábado, 24 de dezembro de 2016

Michael Sandel e a sociedade de mercado

Estaríamos passando de uma economia de mercado a uma sociedade de mercado?

Frase de Sérgio Vaz

A apologia irreflexiva da economia de mercado pode estar nos transformando em sociedades de mercado. Não apenas a produção e circulação de bens materiais, mas praticamente todas as relações nas sociedades humanas podem se tornar relações de compra e venda. Em sociedades muito desiguais, ricos e pobres, pessoas de diferentes origens sociais e estilos de vida podem passar a ter cada vez menos espaços de compartilhamento de experiências. Perde o ideal democrático, pois se não tivermos mais espaços de convivência e negociação das nossas diferenças, o caminho fica livre para o ódio e a intolerância. Essas provocações de Michael Sandel (veja o vídeo no TED), filósofo e professor de Harvard, ajudam a nos fazer pensar no caminho que estamos trilhando enquanto civilização humana. Quem sabe a gente não faz diferente?

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quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

"Estadofobia" x "Estadolatria"

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

A “Estadofobia” de boa parte dos governantes atuais e dos meios de comunicação de massa, na verdade, esconde uma “Estadolatria” indiscutível. O mantra de reduzir e reduzir e reduzir o Estado, a qualquer preço, mascara uma visão de Estado que, na prática, prevê um Estado bastante forte e atuante.

Ora, os governos atuais pretendem reduzir o lado mais “democrático” do Estado, o seu “braço esquerdo”. Ciência, educação, saúde, cultura, meio ambiente e outras pautas que foram incorporadas pelo poder público através de muita luta popular, sobretudo durante o século XX, na busca por expandir para toda a população os serviços básicos que conformam a dignidade humana, passam a ser descartáveis e direcionadas para o mercado - e, portanto, acessíveis para quem puder pagar.

Por outro lado, o monopólio da violência física, dos instrumentos de “justiça” e da máquina administrativa responsável por recolher os tributos da população, em geral, pouco ou nada entram no debate. De fato, por vezes, policiais também acabam pagando o pato da austeridade-para-alguns, tão na moda neste mar de lama chamado 2016. Ainda assim, repressão pesada, vigilância e coerção não correm riscos quando chega a tesoura do pessoal da teoria econômica ortodoxa. Auxílio-moradia a juízes, privilégios de desembargadores, isenções fiscais às grandes corporações, enfim, nada disso importa.

Forja-se uma “Estadofobia” para alguns, ou melhor, para as funções que ajudam a ampliar os horizontes da sociedade, ajudam a estimular a emancipação humana, e uma “Estadolatria” para a regulação e o controle, para o embrutecimento e a segurança das grandes propriedades. Nessa toada, a “Estadofobia”, por incrível que pareça, sequer propõe a garantia legal e real de direitos individuais contra o poder do Estado. Segue o Estado controlando o casamento das pessoas, as substâncias que elas utilizam, suas gestações e, não é de se duvidar para o futuro-presente próximo, o que as pessoas pensam e falam.

A “Estadofobia” de hoje fomenta o inverso daquilo que poderia equilibrar as oportunidades de uma vida digna, considerando o complicado contexto das modernas sociedades capitalistas. Em vez de (a) garantir as liberdades individuais, retirando-se de um jogo que não é seu (b) regular os conflitos entre capital e trabalho, dando suporte para a imensa massa de trabalhadores não ficar a mercê somente dos interesses das oligarquias e grandes corporações (c) incentivando a ciência, o micro, o pequeno e o médio empreendedor, a cultura, o cooperativismo, projetos sustentáveis e educação e saúde para todos, é exatamente o oposto que vira a “solução mágica” a ser aplicada goela abaixo.

Desse jeito, logo estaremos diante de uma “Estadolatria” às avessas dos ideais democráticos, pelo menos os mais utópicos: um Estado cada vez mais regulador, controlador, vigilante, repressor e cobrador de impostos. O resto o mercado absorverá e quem não puder pagar que se vire. A democracia, sobrevivendo por aparelhos, parece só precisar de um empurrão para ir às cucuias de uma vez por todas, em pleno século XXI.

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sábado, 3 de dezembro de 2016

Contra a corrupção

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O atual sistema político apanha de todos os lados. Desde o impeachment-golpe, a esquerda tem tomado as ruas. Em todos os atos que estive presente, deu pra notar, no mínimo, uma diferença entre aqueles que pedem a volta do PT e os defensores de eleições gerais imediatas. Mais recentemente, a possibilidade de congelamento dos gastos da União por duas décadas abrandou as diferenças.

Hoje, o sistema político está em frangalhos. No próximo domingo, os movimentos que canalizaram as ruas contra o PT, meses atrás, estarão nas ruas outra vez. Mesmo com notícias de divergências entre os grupos organizadores, são esperadas milhares e milhares de pessoas nas manifestações. 

O mote dos protestos de domingo é a corrupção. Cresci vendo a esquerda dar porrada na corrupção. Hoje, contudo, em função de mil fatores, a pauta de combate à corrupção é entendida por parte da esquerda como subterfúgio da direita fascista para encher as ruas e defender suas bizarrices ultraconservadoras. Isso não deixa de ser verdade, mas aí parece residir uma armadilha complicada, algo que pode ajudar a explicar a dificuldade da esquerda em dialogar com a população em geral.

Ora, se está surgindo a brecha para desestabilizar de uma vez por todas um sistema político que não dá nenhum sinal de garantir os direitos e trabalhar para melhorar a vida da maioria dos brasileiros, não seria a hora de participar (à esquerda, por óbvio) da panela de pressão? Não se abre uma chance interessante para buscar barrar a PEC 55 e as anomalias do governo do RS, por exemplo? Tática e estratégia não seriam as palavras da vez?

Não tenho respostas e tampouco sou linha de frente no engajamento político. Entretanto, a melancolia que se abateu sobre muitos de nós parece um grave estado paralisante, bem como o reforço ao imaginário de que o PT ainda é a força motriz da esquerda - mesmo que todos os dias a prática desminta a "imagem". Fica difícil defender o PT e criticar a corrupção, nesse momento.

É claro que não é simples somar pautas de direitos e mais democracia em atos tomados por pedidos de intervenção militar e selfies com as forças de repressão. Mas o que não se pode perder de vista é que o mote da corrupção mobiliza muitos "cidadãos médios", que não necessariamente se alinham com a direita*. Há uma multidão insatisfeita, e o pior dos cenários é ver essa massa guiada somente pelos movimentos autoritários e ignóbeis. Se os que estão pela redução das desigualdades e pelos direitos democráticos não encontrarem uma via de aproximação com essa insatisfação, tudo indica que o futuro próximo nos reservará mais desigualdade e autoritarismo.

* Uma pesquisa em São Paulo mostrou questões relevantes sobre valores e concepções políticas da população em geral. Vale uma olhada atenta: http://gpopai.usp.br/pesquisa/relatorio.html

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