ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Os livros resistem

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Talvez o meu objeto preferido seja o livro. Todos temos objetos que amamos. Uns amam seu telefone. Outros, suas roupas. Alguns amam raquetes, bolas, pranchas. Entre outras poucas coisas, gosto muito de livros.

O Brasil é ruim pra quem gosta de livros. Vários são caros. Duas das maiores redes de livrarias do país pedem socorro judicial, nesses tempos de armas e ódios. Grandes e pequenas editoras balançam. E a nação que só costuma "ler" best-seller, autoajuda ou "gurus fanáticos" não parece se importar muito.

A leitura é fundamental na minha vida. Embora desconfie que se esteja lendo muito pouco, até nas universidades, digo aos meus alunos que os livros são como janelas que podemos abrir e enxergar o mundo e nossa relação com ele. Abrindo essas janelas, podemos conhecer mais, podemos nos emocionar, embravecer, estimular e, sim, sonhar e agir.

Livros, em geral, são mercadorias. Assim, estão envoltos em relações de poder. As ofertas dependem das demandas. Em dias sombrios, censuras de todos os tipos costumam se abater sobre muitos deles. Diversos já foram queimados aos berros ensandecidos de pessoas que nunca sequer os leram. Nesses ocasos da História, os livros mais perniciosos costumam ser aqueles que revelam, denunciam e mobilizam contra a tirania, a injustiça e as dominações.

São esses os mais belos livros. Esses e aqueles que contam histórias que nos fazem entender ou romper nossos próprios desejos, que nos afetam e nos fazem compartilhar afetos. Que nos fazem rir e chorar. Penso que resistir à barbárie também é fomentar pequenas editoras e livrarias. Fomentar a troca e o empréstimo de livros significativos. Espalhar livros e utopias. Quem puder, que o faça - pois bem sabemos que os armamentistas, no fundo, temem as palavras.
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sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Norbert Elias e o processo civilizador


O intelectual alemão Norbert Elias (saiba mais) transita por diversas áreas das ciências humanas e sociais. Pelo menos na história e na sociologia, seu espaço está garantido como um dos principais pensadores do século 20. Muitas das suas obras marcaram o pensamento social contemporâneo, mas foram, sobretudo, os dois volumes denominados “O processo civilizador” que deram um destaque bastante abrangente ao autor. Abaixo encontra-se uma resenha Norbert Elias [Imagem retirada do sítio http://politikon.fr/wp-content/uploads/2012/12/norbert-elias.jpg]sobre o primeiro dos dois livros, cuja elaboração foi realizada em conjunto por Bernardo Caprara e Janine Prandini Silveira.
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Nem sempre garfos foram utilizados à mesa na sociedade ocidental. O lenço difundiu-se com vasta abrangência pelos estratos da sociedade somente por volta do século XVIII. Até então, como os indivíduos faziam para limpar bocas e narizes? E como eram suas condutas à mesa? Dessas e outras questões aparentemente irrelevantes, o sociólogo alemão Norbert Elias consegue extrair sentido ao abordá-las sob um enfoque analítico longitudinal, isto é, procurando o sentido das minúcias dos hábitos cotidianos da civilização ocidental no curso da história. O problema de que trata Elias em “O processo civilizador”, cuja primeira edição data de 1939, parte da percepção de que os indivíduos ocidentais nem sempre se comportaram da maneira que chamamos de “civilizada”. Por que aconteceu essa transformação nas condutas dos seres humanos? O que versa esse tal processo civilizador? Como ele acontece? Nesse livro, Elias nos fornece algumas respostas a essas questões.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

A apologia e as formigas

 Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Há alguns dias, algumas pessoas têm me dito que o problema maior do Brasil é a “apologia” da homossexualidade, do feminismo e da divisão da sociedade em “raças”.

Há alguns dias, formou-se uma rota de formigas, no pátio de casa. Lá vão elas, sem parar, pra lá e pra cá, organizadamente, carregando pedaços de folhas e flores enormes para o seu tamanho.

Apologia é um discurso que defende, justifica ou elogia alguma coisa. Os dois exemplos recorrentes do tal problema principal do país falavam sobre as manifestações em público de amor e carinho de pessoas do mesmo sexo e da liberdade corporal das mulheres.

Ora, essas pessoas não se importavam nem um pouco, quando perguntadas, a respeito da “apologia” da matança, da tortura e do autoritarismo, tão presente nos últimos tempos. Para isso, elas diziam: “é da boca pra fora, são brincadeiras”.

Quer dizer, então, que o amor e o carinho, a liberdade e autonomia das minas pra lidar com seu próprio corpo, a defesa e o elogio da cultura e da história negra, tudo isso são problemas sociais graves – mas a defesa e o elogio da morte de opositores e da violência como plataforma política são apenas bravatas engraçadinhas?

Acho que o vaivém das formigas, sobre o solo árido e pedregoso, de aparência tão insignificante, soa bem pedagógico: a tarefa é pesada, mas só com organização, disposição e persistência será possível cumpri-la.

Passo a passo, levando a semente para desarmar o ódio e construir uma sociedade que se paute pela comunhão, pela solidariedade, pela pluralidade, pela liberdade e igualdade para todos.

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domingo, 18 de novembro de 2018

Norbert Elias e a sociedade dos indivíduos


Toda sociedade grande e complexa tem, na verdade, duas qualidades: é muito firme e muito elástica. Em seu interior, constamente se abre um espaço para as decisões individuais. Apresentam-se oportunidades que podem ser aproveitadas ou perdidas. Aparecem encruzilhadas em que as pessoas têm de fazer escolhas, e de suas escolhas, conforme sua posição social, pode depender seu destino pessoal imediato, ou o de uma família inteira, ou ainda, em certas situações, de nações inteiras ou de grupos dentro delas. Pode depender de suas escolhas que a resolução completa das tensões existentes ocorra na geração atual ou somente na seguinte. Delas pode depender a determinação de qual das pessoas ou grupos em confronto, dentro de um sistema particular de tensões, se tornará o executor das transformações para as quais as tensões estão impelindo, e de que lado e em que lugar se localizarão os centros das novas formas de integração rumo às quais se deslocam as mais antigas, em virtude, sempre, de suas tensões. Mas as oportunidades entre as quais a pessoa assim se vê forçada a optar não são, em si mesmas, criadas por essa pessoa. São prescritas e limitadas pela estrutura específica de sua sociedade e pela natureza das funções que as pessoas exercem dentro dela. E, seja qual for a oportunidade que ela aproveite, seu ato se entremeará com os de outras pessoas; desencadeará outras sequências de ações, cuja direção e resultado provisório não dependerão desse indivíduo, mas da distribuição do poder e da estrutura das tensões em toda essa rede humana móvel.
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REFERÊNCIA
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ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. Página 48.
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terça-feira, 16 de outubro de 2018

Desamparados e febris

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Um das coisas que fico pensando, agora que o ovo da serpente está eclodindo, é no gigantesco desamparo em que nos encontramos enquanto sociedade. Como parar de agir não é possível, agimos desamparados

Tirando quem legitima e/ou procura justificar assassinatos de opositores políticos, espancamento de homossexuais, mulheres e negros, que não me parece ser a maioria, muitos se sentem perdidos, desamparados, revoltados. Como ajudar para que esses não acabem nadando no esgoto do fascismo?

Pensando rápido com a psicanálise, nossas ações podem se orientar por uma “demanda” ou pelo “desejo”. Uma ação orientada por uma demanda tem o desamparo como ponto de chegada, porque procura no outro um reconhecimento, um amparo narcísico. Só que o outro pode sempre dar de ombros para a nossa demanda, o desamparo prosseguir, e a busca também.

A ação orientada pelo desejo tem o desamparo como ponto de partida. Percebendo o desamparo, os desejos recalcados no inconsciente nos movem, orientam os impulsos para a ação. Agimos e nem pensamos “por que faço isso?!”.

No cruzamento do desamparo como ponto de chegada e partida, tudo aquilo que a sociologia crítica vem dizendo há tempos sai do armário de muita gente. A verdade é que as condições de possibilidade do fascismo permaneceram por aí, década após década, brotando em meio a uma sociedade em que tudo seguia mercantilizado e a maioria excluída e humilhada.

Aí, a demanda por ser reconhecido pelo outro explode em adesão ao homem bruto e autoritário, quase num efeito manada, perfeitamente adequado a uma sociedade que nunca pagou suas contas com seus múltiplos passados e presentes de opressão.

Aí, o desejo recalcado no inconsciente, condicionado por violências diversas, humilhações, vergonhas e impotências, explode no agir desejoso de escolher um caminho perverso, um caminho que replique e multiplique as próprias mazelas num espelho sombrio.

Não acho que tenhamos 50 milhões de fascistas no Brasil. Então parece claro que há uma verdadeira máquina de guerrilha simbólica invadindo nossos desamparos e acessando nossas demandas e desejos mais escondidos, manipulando nossas pulsões de destruição.

Numa das sociedades mais violentas e desiguais do mundo, é urgente conseguir acessar o desamparo em nós mesmos e no vizinho, no colega de aula, no parceiro de trampo.

Para diminuir os efeitos da longa noite que se avizinha, vamos precisar, numa espécie de contra-máquina simbólica, tocar na nossa subjetividade mais íntima, em demandas e desejos que nos façam agir pela comunhão, pela igualdade, pela liberdade e pelo respeito.

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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Potência, substantivo feminino

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Hoje tive um sonho daqueles. Sonhei com três etapas da minha vida: infância, adolescência e vida adulta. Meus sonhos são sempre uma bagunça, mas nesse uma coisa ficava clara: eu estava muito tenso porque não podia falhar, não podia chorar e tinha que ser “macho”.

No sonho, me vi criança, depois de sofrer uma falta num jogo de futebol, começando a “entender” qual era o lugar dos guris nas interações sociais. A necessidade de não fraquejar, não demonstrar inseguranças, não acarinhar os amigos. Melhor era ser bruto.

É verdade que, em casa, isso não acontecia. Já na adolescência, com o mundo invadindo a gente em pitadas, a vida aparentava ser ainda menos subjetiva. Havia uma objetividade no “imaginário” ou no “inconsciente coletivo” sobre o que era ser um homem.

Senti tudo isso fortemente durante o sono. Então me vi adulto, olhando pra mim mesmo, com uma complexidade imensa represada no peito, boquiaberto ao ver que nunca fui aquele homem que durante tempos senti a estranha pressão para ser.

Um pouco antes de acordar, mirando o horizonte como um espelho, eu não cabia no papel que me era atribuído, no qual ser um homem adulto é jamais ser ou parecer uma criança, uma mulher ou um homossexual. Negativas que atravessam o “ser homem”.

Independente de qualquer coisa, eu não podia mais aceitar que o amor, o acolhimento, o carinho, a sensibilidade, a atenção, o afeto, um abraço... Não podia aceitar que essas fossem qualidades a serem reprimidas, ou vomitadas na sua negação, na porrada ou na bala.

Não é possível fugir de si mesmo. Quando despertei, lembrei que vivo num país em que mais da metade da seleção de futebol masculina que jogou a última Copa do Mundo foi formada por homens criados apenas pelas mães. Pensei na força e na potência daquelas minas, e nas merdas que saem do bueiro dessa masculinidade tóxica que está aí.

É evidente que não devo dizer que "toda mulher é assim" ou "todo o homem é assado". Posso dizer, isso sim, que estamos prestes a levar a brutalidade, o cinismo e a reafirmação das nossas mais profundas dominações, desigualdades e violências ao nosso cargo político mais importante. E que são milhões de mulheres e seu arsenal de potência Humana, de crítica, resistência e criação, que lideram as fileiras para evitar que isso aconteça.

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segunda-feira, 16 de julho de 2018

Abrir as gaiolas

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Na minha cabeça, a liberdade era o assunto do momento. O Sol estava alto, mas o meu corpo pedia mesmo era um café. Pássaros voavam livremente num céu de brigadeiro. Perto da padaria, uma loja tipo “agro é pop” expunha mudinhas bonitas e variadas na calçada.

As mudas e a vida a crescer... Ah, divagante, presta atenção! Assim a gritaria de um monte de passarinhos me bateu de frente. Eram muitos, enjaulados, debatendo-se nas suas minúsculas celas, isolados da imensidão que só suas asas livres podem percorrer com a bênção da natureza. Estavam à venda. À venda!

Viajei longe. Um grande sociólogo francês dizia que a emancipação humana na modernidade passa pela psicanálise, por um lado, pra nos mostrar as pulsões inconscientes que nos atormentam; do outro lado, a socioanálise (Sociologia na veia) poderia deflagrar os imperativos sociais que nos constrangem e condicionam nossas práticas.

Tenho vivido ambas as sugestões e, de fato, são caminhos relevantes. Porém, começo a achar que são insuficientes. Como os animais encaixotados me fizeram pensar, logo os bichinhos que mais representam a liberdade, um corpo tolhido ao extremo parece aprisionar nosso ser, limitar demais a nossa existência.

O corpo é um operador analógico das nossas histórias. E tem sido, na cultura ocidental, pelo menos, mais um problema, um tabu, do que uma dádiva. Não sei qual é o caminho, nem o sentido que liberta cada um. Mas eu é que não me sento, no trono de um apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar.

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terça-feira, 29 de maio de 2018

Crônica da Caixa de Pandora

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

No Brasil continental, cheio de águas e perfeito para ferrovias, mas refém das estradas e do petróleo, durante o caos alguém viraliza nas redes sociais: “Abriram a Caixa de Pandora!”.

Do lado direito, bem na ponta, dedos nervosos distribuem suas verdades incontestáveis, recebidas no grupo da família, em perfeito português: “Tanbén, Pandora é uma puta comunista, tem mais é que arregassar a Caixa dela e cagar ela à pal!”.

Ainda à direita, menos na ponta, o tom é acadêmico: “Pandora interveio demais na Caixa, tem que deixar a Caixa se autorregular que tudo acaba livre e justo”.

Há também os dedos ativos à esquerda. Bem na ponta (a ponta que não é ponta, porque ponta é uma construção social e, assim, deve-se desconstruir a ponta), a avaliação é lacradora: “Pandora, no fundo, adora passar pano pra essa cambada toda, ela não joga no nosso time. Eu avisei”.

Como tendo ao canhotismo, sigo atento, agora à ponta esquerda tradicional: “Pandora precisa organizar a Caixa, falta a ela uma vanguarda esclarecida, capaz de conscientizá-la para a Revolução”.

Tem a turma do deixa-disso, os legalistas da época em que uma gambiarra mantinha a Caixa fechada, ou quem se atira no raso e aplaude o circo pegar fogo – a Caixa, no caso.

Nessa confusão toda, só não podem faltar os dedos ativos e os corpos curvados, focados no espelho preto dos dispositivos, reservatório das nossas próprias mazelas.

Pandora, por si só, não deixa por menos: abre mesmo a Caixa, fiel a sua curiosidade. Os males do mundo se debatem. Só a esperança permanece presa. O fogo consome a civilização. Segue o baile. Os de cima, sobem. Já os de baixo, se deixar, vão descer mais e mais.

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sexta-feira, 18 de maio de 2018

Ébria lucidez

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

A cidade grande tem dessas: do nada, é possível conhecer alguém visivelmente fora da casinha e, ao mesmo tempo, como diz a expressão popular, “mais realista que o rei”.

Era tarde da noite, quando a gente desceu do carro pra descarregar as malas. Em menos de um minuto, o rapaz nos abordou, tentando se equilibrar numa árvore ao nosso lado:

- Eu disse... Vai rápido, não rateia, logo vai chegar um maloqueiro qualquer pra nos pedir alguma coisa ou até nos achacar.

Com as malas e coisas de acampamento nas mãos, respondi com um sorriso amarelo, concordando sem concordar. Ele continuou, contando sua história, dizendo que não era ladrão, que há poucos meses vivia numa barraca laranja, embaixo do viaduto ali da esquina.

- Tive que sair da vila, o pai da minha mina não me curte. Ele é da Civil, e quando ela engravidou e eu perdi o emprego, disse pra ela escolher entre ficar em casa ou ficar comigo.

Lamentamos todos a situação. O jovem já não conseguia se equilibrar, embriagado que estava. Trocava algumas palavras, soluçava frases soltas, mas, no fim, as coisas acabavam fazendo sentido.

- Na real, precisava de uma grana pra comprar fralda. Lá na vila vendem fralda avulsa, aqui não. Precisava da grana da passagem, da fralda, da comida...

Grana mesmo a gente não tinha. Já não cabia nada nas nossas mãos e tínhamos que subir com as coisas. Braços e costas doíam. Sem saber como agir, seguimos escutando o garoto, que, no auge do trago, não segurava mais as emoções.

- Isso não tá certo. Vão ali ver... Não tá certo. Ela tem meses de vida. Ela é linda, ingênua, um pedacinho de futuro jogado numa barraca suja, comendo o que sobra e disputando espaço com rato e barata.

De súbito, o assunto mudou para a fome que ele sentia. Pedi pra me dizer o seu nome e esperar na porta do prédio. Largaria as coisas e traria algo pra ele comer. Enquanto entrávamos, ele seguiu seus devaneios de bêbado, escancarando uma realidade que muitos não querem ver.

Ao descer com alguns pães e trocados, encontrei Amilton estirado na porta do edifício. O ponto final do ébrio. Balancei o guri até ele recobrar a mínima consciência. Parecia nada entender. Entreguei os pães e os trocados e pedi pra ele agilizar as fraldas da pequena que aguardava há poucos metros dali.

Amilton repetiu “agilizar as fraldas”, abocanhou um pedaço enorme de pão e agradeceu. Fechei a porta e subi pensativo. Em casa, nossas dores nos braços e nas costas se misturavam com uma tristeza profunda. A mesma tristeza profunda que Amilton transbordava entre loucuras e rompantes de lucidez. Bastava um pouco de atenção para perceber.

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sexta-feira, 4 de maio de 2018

Cadê a boia?

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Sexta-feira, hora de parar um pouco.

Bah, mas tem a tarefa atrasada, o texto que não deu pra ler, o bico pra aumentar a grana, o trabalho doméstico acumulado. Tem quem trabalha no final de semana, cada vez mais.

O espírito do nosso tempo requer uma vida sem pausas. Sem parar a produtividade, porque, dizem os gurus do time is money, ela está pequena demais. Sem parar de consumir, afinal, do que vale a vida sem o consumo?

Parar, ocioso, sem uma tela pra fustigar, um objetivo para cumprir ou uma meta a alcançar, no geral, parece sinônimo de heresia. De vadiagem.

Estamos exaustos, quase todos. Mas não dá nada, é só tomar uma boleta. O negócio é mergulhar, de vez, nessa abissal tempestade de estímulos.

Terminamos afogados, 24 horas por dia, sete dias por semana, numa existência de consumo e mercantilização da vida. Cadê a boia que ajuda a resistir?

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quarta-feira, 18 de abril de 2018

Meritocracias ao avesso

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

À frente, centenas de pessoas descem do trem. É cedo, rua bombando.

À direita, no trânsito, o homem de 40 e poucos anos fala ao celular:

- Pode passar a SUV pra outro... meu guri tá indo pra Inglaterra, não vai mais ficar com a nave.

À esquerda, debaixo do viaduto, uma família faz o fogo de chão pro café da manhã.

O homem à direita segue ao telefone. Sinal fechado. Ele dá risada:

- Porra, irmão! O guri fez o melhor colégio, melhor cursinho e tudo mais. Mas não passou. Essa banda na Europa é pra amenizar o baque.

À sombra do viaduto, toalha perfeitamente esticada sobre a mesa improvisada, talheres, pratos e copos sortidos, duas fatias de pão e um café preto aguado. Quatro pessoas pra comer. Duas crianças lavam o rosto e os dentes, sob o olhar atento dos pais.

Atrás, dois vizinhos comentam a chegada da família ao viaduto.

- Falei com eles ontem. Ele tem curso superior, mas não consegue emprego. Há um ano eles viviam dos bicos de ambos. Até isso rareou. Pode ver, ali tá tudo caprichado, com esmero. Tudo limpo, dentro do possível naquelas condições. Olha a barba super bem feita dele.

Aberto o sinal, o pai do garoto viajante arrancou sua Mercedez. Os vizinhos completaram:

- Viu esse que tava no telefone, falando do filho? Negou três vezes uma vaga pro cara na empresa dele. A mina, nem pra faxina ele aceitou.

- Ué, mas por quê?

- Disse que até tinham um currículo razoável, mas que, morando na rua, só podiam ser vagabundos, gente que não se esforça.

Brasil, século XXI. Meritocracias ao avesso. Vida aviltante - ao cubo.

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terça-feira, 10 de abril de 2018

O perigo da pós-verdade

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Uma das coisas mais preocupantes no tempo presente e no futuro próximo é a avalanche de notícias e informações falsas chegando para cada um de nós, por meio de várias plataformas. Se com a falsificação de textos e imagens uma parcela enorme da sociedade já tem dificuldades de distinguir o que é verdade e o que é mentira, quando se popularizar a manipulação de vídeos e áudios nós estaremos, literalmente, mais que perdidos. Isso já tá rolando, sob a alcunha de “deep fake news” (“falsificação profunda de notícias”, em tradução livre). 

Uma das loucuras nisso tudo é que a discussão sobre o “estatuto da verdade” já existe há muito tempo na Filosofia e nas Ciências Humanas. Entre as notícias que recebemos no cotidiano, em geral temos condições de distinguir o que é falso e o que não é. Em grande parte ainda é simples separar o joio do trigo. Já existem até sites e jornalistas fazendo isso. Ocorre que a noção de “fact check” (“checar os fatos”), esgaçada até o limite, não nos leva a um lugar conclusivo. É fácil questionar diversas conclusões dos “checadores de fatos” sobre determinados temas mais complexos, que envolvem maior subjetividade. A menos que se cheque absolutamente tudo (tarefa insana!), a própria seleção do que checar já denota alguma ausência e pode enviesar um debate.

No fundo, Jornalismo e Ciências Humanas estão diante da popularização de algo que atravessa os nossos fazeres profissionais há um bom tempo, que é a necessidade de estar sempre discutindo o que se entende por verdade. No Jornalismo, temos, sobretudo, a questão da imparcialidade. Nas Ciências Humanas, pra falar só de alguns caminhos, podemos pensar que a verdade é objetiva e basta pesquisá-la; que ela é objetiva, mas é preciso um trabalho de pesquisa metódico e sistemático; podemos pensar que só temos condições de conhecer uma parte dela, porque a verdade é carregada de subjetividades; ou, enfim, que o foco não deve estar na busca da verdade, mas somente nas subjetividades das relações humanas.

Nas últimas décadas, o distanciamento da comunidade científica e a seletividade ideológica dos meios de comunicação de massa ajudaram a pôr essas instituições sob a desconfiança de diferentes setores da sociedade. A essa altura do campeonato, com o mundo em chamas, parece que estamos à deriva, e que diferentes grupos disputam a direção de um barco que ninguém calcula pra onde vai. Nessa batalha, perdemos todos. Sem o mínimo de confiança nas mensagens que nos bombardeiam sem parar, em qual mentira vamos acreditar?

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segunda-feira, 9 de abril de 2018

Aristóteles, a ética e a técnica



"Se devemos a Sócrates o início da filosofia moral, devemos a Aristóteles a distinção entre saber teorético ou contemplativo e saber prático. O saber teorético ou contemplativo é o conhecimento de seres e fatos que existem e agem independentemente de nós e sem nossa intervenção ou interferência, isto é, de seres e fatos naturais e divinos. O saber prático é o conhecimento daquilo que só existe como consequência da nossa ação e, portanto, depende de nós. A ética e a política são um saber prático. O saber prático pode ser de dois tipos: práxis ou técnica.

Na práxis, o agente, a ação e a finalidade do agir são inseparáveis ou idênticos, pois o agente, o que ele faz e a finalidade da sua ação são o mesmo. Assim, por exemplo, dizer a verdade é uma virtude do agente, inseparável de sua fala verdadeira e de sua finalidade, que é proferir uma verdade; não podemos distinguir o falante, a fala e o conteúdo falado.

Na práxis ética, somos aquilo que fazemos e o que fazemos é a finalidade boa ou virtuosa. Ao contrário, na técnica, diz Aristóteles, o agente, a ação e a finalidade da ação são diferentes e estão separados, sendo independentes uns dos outros.

Um carpinteiro, por exemplo, ao fazer uma mesa, realiza uma ação técnica, mas ele próprio não é essa ação nem é a mesa produzida por ela. A técnica tem como finalidade a fabricação de alguma coisa diferente do agente (a mesa não é o carpinteiro, enquanto uma fala verdadeira é o ser do próprio falante que a diz) e da ação fabricadora (a ação técnica de fabricar a mesa implica o trabalho sobre a madeira com instrumentos apropriados, mas isso nada tem a ver com a finalidade da mesa, uma vez que o fim é determinado pelo uso e pelo usuário). Dessa maneira, Aristóteles distingue a ética e a técnica como práticas que diferem pelo modo de relação do agente com a ação e com a finalidade da ação".

Referência

CHAUI, Marilena. Introdução à Filosofia - Ensino Médio, volume único. São Paulo: Ática, 2010. Páginas 271-272.

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sexta-feira, 6 de abril de 2018

O velho Brasil

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O que motiva tanto ódio por um líder político em especial? No fundo, é o velho Brasil dando as caras. O ódio pelo ex-presidente operário, que leva as pessoas não só ao protesto, mas também às vias de fato, não se manifesta quando estão em jogo as denúncias contra o patrão gaúcho, o playboy mineiro, o mafioso carioca ou o bispo paulista. Denúncias graves, como ameaças de morte a um familiar para evitar delação, e com tanta ou mais materialidade do que as que existem contra o sindicalista nordestino. Panelas não batem pelas falcatruas deles.

Deméritos jurídicos à parte, a real é que o combustível desse ódio nunca foi a corrupção. Parece ter mais a ver com o nosso processo de modernização, seletivo, racista e violento, do que com um clamor por retidão moral. Somos um país arcaico, apenas seletivamente moderno. Nossas classes abastadas, com renda alta, patrimônio e escolaridade de ponta, não respeitam sequer o próprio liberalismo de Locke ou Smith, preferindo astrólogos de plantão ou financistas puro sangue. Não estão dispostas a pactuar pela redução do abismo social e racial, pois cultuam sua posição dominante, acham chique a distinção e desprezam os subalternos. Preferem mergulhar no esgoto ideológico, flertando com protofascistas, como aponta a grande adesão dessas classes ao candidato bufão e autoritário que temos por aí.

Em 2014, às vésperas da eleição, perguntei a um amigo muito querido, envolvido desde sempre com o agronegócio, por quais razões o setor alimentava tanto ódio ao ex-presidente e seu partido? O governo não trazia dinheiro e mais lucros pra eles? Eles não estavam enchendo os bolsos exportando cada vez mais carne, soja transgênica, laranja e tudo mais? Eles não são capitalistas? A resposta foi simples: é uma questão ideológica. Ou seja, é o nosso arcaísmo oligárquico mostrando as garras, arriscando suas cartas no acirramento dos conflitos políticos e sociais, seguro da sua dominação estilo Casa Grande.

Nada mais do que o velho Brasil. A Constituição Cidadã forjou a arquitetura de um país aproximado do ideário moderno de uma República Democrática. Muita gente deu a vida por isso. Mas, nesse imenso latifúndio, como nos demais do sul global, a modernidade veio sangrando colonialismo e escravidão. Sobrou uma sociedade cindida pela desigualdade racial e de classes, operando, em paralelo, numa pegada estamental. Nossos distintos doutores estão sempre dispostos a surrupiar as regras do jogo, se for pra manter intacta a concentração das riquezas de todos nas suas próprias mãos. Se acham merecedores de privilégios. Afinal, vestem togas ou ternos comprados em Miami. Ah, e odeiam "vagabundos".

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quarta-feira, 4 de abril de 2018

A corrosão das instituições e a barbárie como gramática social no Brasil

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O buraco em que nos metemos nos últimos anos tem sido debatido à exaustão. Vários pontos importantes vêm sendo abordados por quem se coloca a pensar o que vem acontecendo. Dois pontos em especial têm me tomado as atenções nos últimos dias: a corrosão acelerada das nossas instituições e o avanço da barbárie como gramática legitimada da vida social.

Hoje, não há quem não critique as principais instituições da modernidade, aquelas que dizem respeito ao Estado, mas também ao mercado. No Brasil, o Estado costuma ser o centro das discussões. A ineficiência das suas instituições e a má conduta dos agentes institucionais (corrupção, por exemplo) não são novidade pra ninguém. Escolas, hospitais, parlamentos, judiciário e demais esferas institucionais são vistas como ineficazes e berços de privilégios, muitas vezes sem se fazer distinção entre os diferentes setores, seus orçamentos e a postura dos seus agentes.

Desde Marx, as críticas às instituições modernas se radicalizaram, a ponto de o Estado ser interpretado como um balcão de negócios das classes dominantes. Dessa visão se fortaleceu a análise de que as instituições da democracia liberal-representativa avançaram qualitativamente na comparação com as sociedades absolutistas, mas não deram conta de mitigar o conflito entre o capital e o trabalho, intrínseco à própria lógica das relações de produção capitalistas. As instituições estariam formatadas em prol da igualdade formal para todos, iguais perante as leis, conquanto não se tocasse nos alicerces que garantem a propriedade privada dos meios de produção. Assim, não se radicalizariam as medidas de redistribuição das riquezas materiais ou se democratizariam as relações de poder no âmbito do trabalho.

Se a força dos sindicatos e dos movimentos de trabalhadores foi a tônica das críticas às instituições durante a primeira metade do século passado, pelo menos desde maio de 1968 outras contestações vieram à tona. Não mais apenas a exploração do trabalho servia de base para iluminar as debilidades institucionais. A emergência das vozes silenciadas na arena sociopolítica, a partir das lutas pelos direitos das mulheres, dos negros e indígenas, dos homossexuais e transexuais, além de outras minorias de poder, ampliou o leque de investidas contra a institucionalidade moderna e desnudou as diversas dominações que ela não interditou.

No início do século atual, a perspectiva crítica às instituições ganhou corpo de tal modo que os fatores citados acima passaram a ser pensados em conjunto. Exploração de classe, dominação patriarcal, heteronormatividade e neocolonialismo, para me ater a esses termos, em alguma medida agora podem ser articulados na noção de interseccionalidade das desigualdades. Aí a briga para fazer com que as instituições da democracia liberal atendessem às demandas dessas populações segregadas ganhou fôlego e pressionou a sociedade como um todo, desestabilizando o pretenso equilíbrio normal das estruturas sociais e demonstrando sem máscaras a incapacidade institucional de atender a essas demandas.

Foi no século passado que alguns autores (como Adorno e Horkheimer) perceberam que o desencantamento do mundo assinalado por Weber vinha se transformando numa racionalidade dominante bastante nociva, isto é, a racionalidade instrumental da economia de mercado transbordava as molduras econômicas e atingia a subjetividade das relações humanas. Pouco a pouco, a mercantilização de tudo que nos importa foi tomando conta daquilo que chamamos de "razão", tendo como consequência uma enorme irracionalidade na organização da vida coletiva e na preservação da natureza, adicionando mais obstáculos ao bom funcionamento das instituições e fazendo da convivência entre as pessoas um faroeste marcado pelo poder de compra.

Então, em 2008, a explosão da bolha imobiliária, fruto dos empréstimos de alto risco e sem lastro, sobretudo no epicentro da modernidade avançada, os EUA, fez o mercado radicalizar as suas críticas às instituições que garantem (e garantiram também na crise do subprime) o seu próprio funcionamento. Só que essas críticas vieram pelo lado dos agentes dominantes, na medida em que apontavam para os "gastos exagerados" da sociedade em instituições públicas voltadas para a redistribuição de oportunidades, como escolas, hospitais ou aposentadorias. Na métrica da racionalidade indiscutível da era neoliberal, o privado é o reino da excelência e o público o vazio do "sem donos" ou da "improbidade administrativa". O braço direito do Estado, sobretudo o judiciário, cujos operadores do direito recebem altíssimos rendimentos pagos pelos nossos impostos, completamente retido pela narrativa gerencial das escolas jurídico-empresariais estadunidenses, parece fechar em uníssono em torno da reconfiguração completa das instituições sob a égide dessa racionalidade puramente instrumental.

Chegamos ao momento histórico em que a crítica às instituições da democracia liberal vem de todos os lados. Já não sabemos ao certo, quando ouvimos um amigo ou conhecido criticar um hospital ou o fisco, se a reclamação vem acompanhada de uma busca por fazer dessas instituições locais eficientes e justos, ou se vai trazer um sentimento de tamanho desencantamento que qualquer narrativa contestatória, inclusive as autoritárias ou elitistas, passem a fazer sentido e indicar possíveis bandeiras a serem hasteadas.

No limite, tudo que foi dito até aqui, dessa institucionalidade precária e conectada às diferentes desigualdades até a predominância da racionalidade instrumental, pode ajudar a entender o deslocamento evidente no cotidiano brasileiro das "soluções mediadas" dos nossos conflitos para a falsa solução da "ponta da faca". Se as instituições não funcionam ou funcionam muito mal, se a minha racionalidade orbita na dinâmica do gerenciamento individual, por quais motivos devo apostar minhas escassas fichas da sobrevivência num sistema que não me traz benefícios? De qualquer lado do espectro ideológico, essa postura parece ganhar respaldo nesses tempos de extrema turbulência e polarização.

O caminho para a guerra de todos contra todos ou para a adesão aos autoritarismos messiânicos é pavimentado pela banalização da despersonalização do outro, quer dizer, daquele ao qual eu identifico como o inimigo. Numa sociedade de mercado, movida por uma racionalidade gerencial e sustentada em instituições injustas/ineficientes, o inimigo tende a ser aquele que ameaça a propriedade privada, no "varejo" do cotidiano; no "atacado" das relações políticas, institucionais ou não, o inimigo pode ser associado, por tabela, àqueles que desafiam a propriedade privada dos meios de produção e propõem um governo em comum dos bens e serviços essenciais para uma sociedade livre, justa e fraterna, bem como a total afirmação das diversidades.

Por fim, nesse caldo de violência, ainda com traços coloniais (o racismo segue estrutural por aqui), o inimigo não é mais um time adversário que deve ser derrotado dentro das regras do jogo, mesmo que isso inclua reformatar essas regras: ele deve ser eliminado, trancafiado e, na cabeça de alguns, para deleite do sadismo que a despersonalização do outro faz aflorar, torturado física e simbolicamente. Quando o juiz é sempre ladrão e ninguém mais acredita que ele possa não ser, não se trabalha mais para fazê-lo justo e a pancadaria vira o mote para cada um dos jogadores. Daí, pode só restar o "salve-se quem puder".

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segunda-feira, 26 de março de 2018

Classe social influencia o desempenho escolar no Brasil? (Parte 1)

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor


Quais são os principais aspectos que afetam o sucesso ou o fracasso dos nossos estudantes na escola básica? A classe social em que eles se localizam importa para o seu desempenho educacional? Ter mais ou menos recursos econômicos e culturais produz efeitos nos rendimentos acadêmicos? Essas perguntas são a base da minha tese de doutorado. Pouco a pouco, quero divulgar alguns dos meus principais resultados, em pequenos textos, para tentar ajudar na compreensão da realidade educacional do nosso país¹.

Os resultados da pesquisa mostram que classe afeta desempenho escolar. Se pensarmos o espaço social como um espaço geométrico, os estudantes das classes sociais privilegiadas se localizam próximos das escolas de maior qualidade e das notas mais altas. São, em geral, pessoas de pele branca, que não precisam trabalhar/estagiar durante o período escolar, e possuem computador numa residência ampla. Nunca foram reprovados ou abandonaram a escola, e são incentivados em casa a estudar. Vimos que, também, conforme os alunos vão avançando na seriação escolar, encontramos uma verdadeira peneira de classe. Se os resultados em matemática e português vão melhorando conforme as transições realizadas pelos jovens (no 5º ano são piores do que no 9º do fundamental, e ambos piores do que no 3º ano do médio), vai “sobrando” na escola uma maioria de estudantes das classes mais altas.

Vejamos alguns números que expressam esses efeitos. Na “classe A”, em que se posicionam os alunos com maiores recursos econômicos na família, 29,1% tiraram notas altas em português e 29,6% em matemática. Na “classe D/E”, esse montante é de apenas 8,6% e 7,6%. Se observarmos as notas insatisfatórias, o cenário segue demonstrando a desigualdade de classe. Entre os mais privilegiados, 10,6% obtiveram notas muito baixas e 26,6% baixas em língua portuguesa (totalizando 37,2% de notas ruins), além de 9% e 25,4% (35,3% no total) em matemática. Entre os alunos mais pobres, o quadro é ainda mais assustador. Em língua portuguesa, 27,4% têm notas muito baixas e 38,3% notas baixas. Temos 65,7% dos estudantes com notas ruins em português. Já em matemática, são 27,1% e 40,2%, somando 67,3% dos discentes.

Fica claro que há um conjunto grande de estudantes com proficiências insatisfatórias nas duas pontas da hierarquia de classes, mas o abismo entre as classes se mostra um fator relevante nos resultados educacionais dos nossos jovens. Há ainda muitas outras evidências importantes, como as comparações entre as médias das diferentes classes e os efeitos diretos das diferentes variáveis na pontuação dos alunos, sem esquecer as nuances regionais. A produção de uma grande quantidade de evidências empíricas me parece o ponto alto da minha tese.  Em outros textos pretendo explorá-las. Quem sabe, assim, conseguimos olhar com mais atenção para nossos problemas educacionais.

¹ Não vou me ater aqui aos aspectos teóricos e metodológicos da tese. Cabe dizer que os dados incluem notas em matemática e português de uma amostra de 269 mil alunos brasileiros, do 5º e do 9º ano do ensino fundamental, assim como do 3º ano do ensino médio. Os dados são de 2013 e contemplam todas as redes de ensino (privadas e públicas) e todas as regiões brasileiras. Informações completas sobre a base de dados, o desenho da pesquisa, o referencial teórico, as técnicas estatísticas e a totalidade dos resultados empíricos podem ser acessadas em http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/172397.

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segunda-feira, 5 de março de 2018

Entre Hobbes e Thoreau

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Retomando as atividades profissionais, depois de um detox imprescindível, mais conhecido como “férias”, não dá pra esquecer a situação desse Brasil de minhas Deusas. Daí que lembrei um TCC interessantíssimo que orientei há pouco tempo. A estudante, hoje licenciada em Filosofia, articulou a teoria contratualista de Thomas Hobbes com a desobediência civil pregada por Henry Thoreau.

Ao apresentar a fórmula da necessidade do Estado para Hobbes, ela mostrou que o medo e a insegurança extrema podem levar as pessoas a aderir ao absolutismo, delegando todos os poderes ao “soberano”. Só que, para isso, o “todo-poderoso” precisa garantir, de fato, a segurança dos indivíduos e suas propriedades. Se essa “troca” não se concretiza por parte do “soberano”, os “súditos” teriam alguma brecha para contestar o “contrato”.

Aí poderia entrar a desobediência civil proposta por Thoreau. Quase como um pressuposto moral do indivíduo, que não aceitaria apenas ceder a sua liberdade para um governo com plenos poderes, sem que fosse garantida, na prática, a contrapartida da segurança, desobedecer caracterizaria um ato de resistência legítima.

Duas matrizes de questões se sobrepõem: em primeiro lugar, mesmo que uma maioria esmagadora da sociedade brasileira estivesse disposta a ceder o que resta da sua liberdade em troca de segurança pessoal, está mesmo o Estado apto a cumprir a promessa? Suas instituições, que deveriam promover o mínimo de bem-estar, estão presentes com qualidade nas áreas mais vulneráveis do país? Estão trabalhando para ajudar a diminuir o abismo social que perdura há séculos por aqui? Suas forças de repressão oferecem segurança?

Depois, quais as estratégias válidas e eficazes de desobediência civil num contexto de concentração acentuada de riquezas, no qual borbulham fanatismos e autoritarismos? Poderíamos pensar a desobediência a partir do trabalho de base contra opressões e desigualdades, das práticas de economia colaborativa dispersas em ações de micropolítica ou mesmo da busca por consolidar uma espécie de “gestão comum” (compartilhada, horizontal, cooperativa) de determinados bens prioritários para o planeta e a espécie humana?

A primeira matriz de indagações parece ter respostas óbvias. Já a segunda pode indicar um caminho reflexivo para a proposição de uma nova utopia política, com a cara do século XXI, contra e para além da mercantilização de todos os aspectos da vida, e radicalmente democrática no respeito à diversidade e na horizontalidade das decisões que afetam a vida de todos nós. Uma tarefa e tanto.

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segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Sonhar é preciso

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Perto de completar mais uma volta na Terra, fico sonhando acordado. Desperto para ler Fernando Pessoa, na figura de Álvaro de Campos: “Não sou nada. Não serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.

Venho sendo mais modesto. Há alguns anos, no meio da graduação, comentei com um colega, que já era professor: “meu sonho é dar aula num colégio estadual”. O rapaz sorriu amarelo, como se perguntando: “sério isso?!”.

Anos antes, meu sonho era ver o Internacional campeão. E, quem sabe, campeão dos campeões. Sonho sonhado por uma multidão, mas também pela futilidade de um jovem estudante. Sonho vivido de dentro, nas entranhas da catarse colorada.

Ainda muito antes, sonhei com várias pequenas coisas. Cultivar boas amizades, amar, viajar, ler discos e escutar livros, comer e beber bem. Também arrisquei ousar um pouco: sonhei em escrever diversas coisas, contar muitas histórias para diferentes públicos.

Sigo alimentando sonhos miúdos, utópicos, desacreditados pelas sociedades dominadas por valores de mercado. “Sonhinhos” que me fazem arregaçar as mangas e lutar para que eles, ao se realizarem (ou não), acabem dando lugar para novos rebentos "sonháticos".

O importante é não parar de sonhar. Seja com a igualdade e a liberdade para todos, com uma barraca e um café da manhã à beira da praia ou com uma sociedade feita de pessoas que gostem de ler, entendam o que leem e fomentem a leitura e a escrita.

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terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Utopia e realidade

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

No restinho de 2017, deixamos a Cidade da Bahia. Depois de passar pelo Sertão, chegamos à Chapada Diamantina. Ali, no Vale do Capão, deu pra sentir a conexão com uma vida utópica, em que conta mais o sentir do que o ter, e tudo parece fazer sentido.

Nessa toada de integração com a natureza, de humildade, solidariedade e alegria, subimos o morro rumo à Cachoeira da Fumaça. Na trilha, porém, o "líder" de um grupo de turistas, no auge da ladeira, cantarolava a plenos pulmões: "O Bope tem guerreiros, que matam guerrilheiros...". Aceleramos o passo.

A humanidade é mesmo complexa. Aquela aberração musical não constrangeu a nossa feliz trajetória. No fim de tarde, seguimos para outra cachoeira, batizada de "Angélica". Na estrada, meio perdidos, pedimos informação para uma pedestre qualquer. Acabamos oferecendo uma carona para a moça.

Elaine, natural de Palmeiras, uma cidade da região, mostrou o caminho e contou que estava indo trabalhar. Era seu dia de folga, mas a outra funcionária da pousada havia dado para trás. Bem naquele dia, aniversário de um dos filhos dela. De cara, ela contou que os R$ 70 que tirava por dia eram necessários, mas que a tristeza era grande por estar longe de casa naquele instante.

O pior estava por vir. Consternados, seguimos conversando. Elaine nos mostrou, então, a razão de a exploração do trabalho ainda ser uma pauta central, inclusive em lugares nos quais a utopia se confunde com a realidade. Disse a garota: "O pior é que os patrões são, tipo, formados em direitos humanos. Pra mim, se a gente se forma, a gente deve ajudar a melhorar a vida das pessoas. Faz o cálculo e vê quanto custa a minha hora de trabalho. Eu pego às seis e saio às 20h".

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