ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

sábado, 29 de abril de 2017

A dignidade de um trabalho decente


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

A greve, historicamente, é um dos principais instrumentos de pressão dos trabalhadores. O conflito entre capital e trabalho constitui as sociedades capitalistas. Por mais que os agentes econômicos possam querer uma boa vida para todos, capital e trabalho possuem interesses distintos. O capital busca maior rentabilidade; os trabalhadores querem melhores salários e condições de trabalho.

De 1789 a 1917, da Revolução Francesa à Revolução Russa, o capital ditava as regras das relações econômicas sofrendo pressões pontuais, como a Primavera dos Povos, em 1848, ou a Comuna de Paris, em 1871. As condições de vida dos trabalhadores eram terríveis. Jornadas de trabalho de 16 horas diárias, acidentes corriqueiros nas fábricas, crianças pequenas fazendo atividades de adultos, mulheres grávidas trabalhando em contextos insalubres. O capital apregoava um mundo de “liberdades”, no qual os direitos trabalhistas eram entraves para o desenvolvimento.

Em outubro de 1917, quando os camponeses e operários tomaram o poder na Rússia, pela primeira vez quem vivia do suor do seu trabalho enxergava a possibilidade de uma sociedade sem exploração de classes. Anos depois, em 1929, a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque desestabilizava o capitalismo moderno. O Ocidente olhava para Moscou como uma ameaça real. Logo viria a Segunda Grande Guerra e o populismo de extrema direita de Hitler e Mussolini.

De 1933 até o final de 1970, de olho na ameaça Soviética, o Ocidente capitalista se reinventava. Franklin Delano Roosevelt, quatro anos após a Grande Depressão, iniciava as políticas econômicas do New Deal, pelas quais o governo passava a investir maciçamente em obras públicas, criava agências de regulação do mercado, diminuía a jornada de trabalho, instituía o seguro-desemprego e outras medidas para atenuar as mazelas dos trabalhadores estadunidenses. Era o prenúncio do Estado de Bem-Estar Social, consolidado depois da guerra, a partir das orientações de John Maynard Keynes. O Estado passava a regular o mercado efetivamente, e a tributação subsidiava políticas públicas e seguridade social.

O século XX, sociologicamente, terminou em 1989. O fracasso da burocracia Soviética abriu espaço para a dilapidação da estrutura de defesa dos trabalhadores no mundo Ocidental. Um pouco antes, Margareth Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos EUA, aceleraram a desregulamentação financeira, diminuindo impostos dos grandes empresários e fomentando o capital transnacional. As cartas do “fim da História” estavam jogadas. Bancos, seguradoras e grandes corporações dominavam as relações econômicas.

Em 2007, a “crise do subprime”, empréstimos de alto risco e sem lastro, símbolo da desregulamentação, jogava o capitalismo contra a parede. O Estado, mais uma vez, entrava em cena e salvava banqueiros e empresários. Alguns apressados anunciavam o começo de uma era “pós-neoliberal”. Só que a Grécia, a Espanha, a Itália e muitos países seguiam sofrendo a pressão dos credores para detonar direitos e implodir os serviços estatais.

De lá para cá, os rendimentos do capital cresceram e a desigualdade também. É nesse cenário que as reformas colocadas goela abaixo no Brasil estão inseridas: num contexto de ofensiva do grande capital. As mobilizações de trabalhadores pelo mundo demonstram que esse jogo não acabou. A nossa existência, a dignidade de um trabalho decente, essa luta segue viva como há 100 anos.

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sexta-feira, 21 de abril de 2017

Lutas simbólicas no século XXI


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

A violência explícita das ideias e dos discursos autoritários, no fundo, esconde um argumento tão preocupante quanto a sua carcaça. Por trás da gritaria e da simplificação, parece haver uma perspectiva de que “eu e o meu grupo” merecemos uma vida digna e “vocês, os vagabundos”, não se esforçam e não servem para nada.

Não à toa, os “outros” são sempre categorias que remetem às populações em desvantagem na competição pela sobrevivência: os negros, as mulheres, os estrangeiros, os homossexuais e assim por diante. Justificar e legitimar através da atividade simbólica (ideias, argumentos, etc.) o acesso desigual a bens e recursos escassos mostra-se importante para manter as coisas como elas estão na atualidade.

O que pode ajudar a explicar a adesão crescente a essa pauta que fratura a humanidade entre pessoas merecedoras de dignidade e aquelas para as quais só resta o ódio e o desprezo? Penso que os trabalhos de Jessé Souza, polêmico sociólogo brasileiro, oferecem articulações interessantes para esse desafio¹. Não me refiro às críticas do autor às tradições da intelectualidade brasileira, que considero secundárias na sua obra. Acredito que o mais promissor se encontra na tentativa de entender como uma espécie de “ideologia espontânea” das modernas sociedades capitalistas consegue se “fixar” nas instituições e nos indivíduos em pleno século XXI; como esse ideário logra êxito em legitimar sociedades cada vez mais desiguais e excludentes?

Em primeiro lugar, é preciso reconstruir uma “hermenêutica da moralidade moderna”, isto é, estabelecer um processo interpretativo e histórico sobre como chegamos, hoje, a acreditar que determinadas ações são corretas e outras não. Estamos constantemente avaliando uns aos outros e a nós mesmos a partir de uma hierarquia valorativa não percebida. Agimos assim porque seguir ou não uma regra social e moral é, sobretudo, uma prática incorporada. Charles Taylor, filósofo canadense, diz que a identidade do sujeito moderno é constituída pelo “self”, o “eu”, dividido na busca pela dignidade, pela autenticidade e pela mobilização religiosa. O que me interessa aqui é o “princípio da dignidade” que nos conforma. Digno é aquele indivíduo fruto da Reforma Protestante, que relega os seus desejos e abraça uma economia moral calculista, voltada ao pensamento prospectivo, ao autocontrole e ao trabalho produtivo, elementos que justificam a autoestima individual e o reconhecimento social.

Se Taylor está certo em caracterizar o “conteúdo moral” que compõe as hierarquias dos julgamentos que tecemos uns sobre os outros todos os dias, falta entender como essas hierarquias se traduzem nas instituições e nas práticas individuais. No pensamento de Michel Foucault, filósofo francês, a categoria “poder disciplinar” surge dos estudos sobre as novas formas de punição nas sociedades modernas. A punição em praça pública dá lugar, no âmbito institucional, à punição discreta e atomizada. O poder disciplinar não está apenas nos mecanismos de punição, mas transforma os modos de produzir a legitimidade do ordenamento social. O indivíduo moderno se encontra constituído por essas novas “técnicas do poder”. O poder disciplinar faculta a classificação dos indivíduos e o cálculo da força de trabalho, arrolando os corpos numa “rede de relações hierárquicas”. As formatações institucionais da modernidade atualizam o princípio da dignidade descrito por Taylor. Só será recompensado pelo reconhecimento das outras pessoas aquele sujeito que incorporar o autocontrole, a disciplina e o pensamento prospectivo.

Resta investigar como esse poder disciplinar se incorpora nos indivíduos e condiciona o sentido objetivo da ação das instituições sobre a individualidade das pessoas. O conceito de habitus, de Pierre Bourdieu, sociólogo francês, permite analisar as formas como a hierarquia valorativa inarticulada, pormenorizada por Taylor e prescrita por Foucault como elemento central do poder disciplinar nas instituições modernas, capacita-se a “tornar-se corpo” nas pessoas, o que a leva a um automatismo pré-reflexivo. A noção de habitus é capaz de revelar como um sistema de estruturas cognitivas que nos motiva nas ações práticas, um sistema de disposições duráveis inscritas desde as primeiras socializações, organiza e condiciona previamente nossas possibilidades, liberdades, limites e oportunidades. A vida social consciente precisa de uma vida social inconsciente, precisa de um agregado não-dito de competências linguísticas e culturais que autoriza a vida social consciente e, em paralelo, a dinâmica pré-reflexiva do cotidiano.

Dessa forma, com a hierarquia valorativa descrita por Taylor, o poder disciplinar de Foucault e o habitus de Bourdieu, Jessé Souza articula um debate promissor para pensarmos as lutas simbólicas de classificação e desclassificação no nosso tempo². Entender o que faz com que uma multidão de pessoas tenha coragem de berrar e agredir outras pessoas, considerando-se mais merecedora de dignidade e "boa vida" que "os outros, os vagabundos”, pode passar por uma agenda de pesquisa nessa trilha. Talvez isso possa nos ajudar a construir um futuro em que a dignidade não seja um privilégio usufruído por uma parcela cada vez menor de habitantes do planeta.

Notas

¹ Destaco, sobretudo, duas obras: “A construção social da subcidadania” (BH, Editora da UFMG, 2012) e “A tolice da inteligência brasileira” (SP, Leya, 2015), essa última com o foco na “Parte III”.

² Por óbvio, este debate exige muito mais fôlego do que este pequeno texto apresenta. Além disso, o aprofundamento de pesquisas sociológicas com amplo tratamento teórico de dados empíricos pode fazer crescer bastante a compreensão dos referidos fenômenos.

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segunda-feira, 17 de abril de 2017

Sociologia das Desigualdades: 50 artigos científicos sobre desigualdades diversas


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O tema das desigualdades é sempre objeto de muitas discussões e polêmicas. Nas Ciências Sociais, muitas são as contribuições para se pensar sobre o assunto. Na Sociologia das Desigualdades, podemos abordar as desigualdades econômicas, políticas, de gênero, entre etnias e etc. No link abaixo, é possível acessar uma série de artigos científicos, do campo das Ciências Humanas, a respeito das variadas manifestações das desigualdades encontradas no século XXI, suas causas e seus efeitos. São textos de e sobre autores como Amartya Sen, John Rawls, Celi Scalon, Pierre Bourdieu, Jessé Souza, Ruy Braga, Guy Standing, Carole Pateman, Martha Nussbaum, Claus Offe, Ricardo Antunes, Ladislau Dowbor, Adam Przeworski, Celia Kerstenetzky, Marcelo Medeiros, Göran Therborn, Jeffrey Alexander, Ernesto Laclau, Michael Löwy, Boaventura de Sousa Santos, Antonio David Cattani, Carlos Antonio Costa Ribeiro, Elisa Reis e Branko Milanovic - entre outros. Quem procura aprofundar seu conhecimento sociológico sobre as desigualdades na atualidade, encontra nesta lista uma gama de artigos de grande valia.


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quarta-feira, 12 de abril de 2017

Entre o patrimonialismo e as teorias críticas


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Lista atrás de lista, a política brasileira entra em acelerada decomposição. Ficam cada vez mais claras as relações promíscuas entre Estado e mercado. Políticos e agentes públicos recebem propina, investem em campanhas eleitorais, são reeleitos e articulam os interesses das empresas pagadoras, em pleno Congresso Nacional. Há, pelo menos, duas vias para explicar essa promiscuidade a partir da Sociologia: as teses patrimonialistas e as teorias críticas.

As teses patrimonialistas depositam sobre os políticos e os agentes públicos a responsabilidade pelos principais problemas sociais. Ocorre a apropriação do Estado por pessoas e grupos privados, num processo histórico que conforma uma espécie de “estamento”. O estamento manipula as dinâmicas políticas e chantageia os empresários e a sociedade civil, fazendo da corrupção uma prática intrínseca ao poder público. Nessa ótica, o mercado pode ser visto como o espaço da virtude, do trabalho produtivo e da dignidade, enquanto o Estado representa os privilégios e a ineficiência. Resta, portanto, a tarefa de modernizar o Estado, instituindo uma ordem burguesa até então sufocada pela burocracia estamental. Para isso, é preciso diminuir o tamanho do Estado e adotar a racionalidade da gestão empresarial, afastando, assim, a degradação da esfera política.

Já as teorias críticas entendem que, nas modernas formações sociais capitalistas, o Estado é apropriado pelas classes abastadas, a fim de que a política seja a representação dos seus interesses. Porém, isso é reflexo de uma relação mais ampla, o conflito entre classes sociais, marcado pelo conflito entre o capital e o trabalho. Mais recentemente, tem se observado que tais conflitos são atravessados por uma gramática moral, própria à modernidade, pela qual são invisibilizadas, justificadas e legitimadas as desigualdades sociais. Se as pessoas não se dedicam, não se esforçam e não possuem uma ética do trabalho produtivo acima de tudo, não são merecedoras de uma vida digna. Essa ideia não permite que se compreenda os mecanismos de reprodução dos privilégios injustos das classes dominantes, oriundos de uma sociedade que não oferece as mesmas chances para todos de acesso ao capital econômico e cultural, recursos determinantes para uma boa vida.

Parando de procurar a pureza de ambas as abordagens, podemos encontrar pontos de conexão entre elas. Dessa forma, penso que se pode desenvolver uma leitura mais fidedigna da modernização em países periféricos do capitalismo global, como o Brasil. Talvez esteja no tratamento sociológico rigoroso das possibilidades de contato entre as teses patrimonialistas e as teorias críticas o caminho para entender melhor o nosso país. Acontece que, na vida prática, cotidiana, os movimentos da política parecem apontar para a vitória eleitoral, ali na frente, do pensamento gerencialista que enxerga no mercado o reino de todas as maravilhas. Com isso, do Estado pode sobrar somente a repressão e a cobrança de impostos, fazendo da cidadania e da busca por uma sociedade mais harmônica algo totalmente inviável.

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segunda-feira, 10 de abril de 2017

Weber e os tipos de dominação


Weber chamou a probabilidade de encontrar obediência em um grupo de pessoas de dominação. A dominação, para durar, precisa ser legítima: isto é, precisa, de alguma forma, convencer as pessoas de que é certo obedecer. Elas podem se convencer por motivos diferentes. Weber identificou três principais tipos de dominação legítima. Eles não são os únicos possíveis e, na prática, quase sempre se misturam em um processo de dominação. Os três tipos de dominação legítima, segundo Weber, são os seguintes:

  • Dominação tradicional: é a dominação que se baseia no costume - quando se obedece porque "sempre foi assim" - ou em um hábito tão forte que nos pareceria estranhos nos desviarmos dele. Muitas monarquias, por exemplo, foram e são legitimadas pela tradição: obedecer ao rei e à sua família já se tornou parte da maneira de viver de determinada sociedade, e os súditos achariam estranho viver de outro jeito. Em algumas religiões, é comum que os fiéis obedeçam ao líder espiritual porque esse comportamento já se tornou parte importante das crenças daquela religião.
  • Dominação legal-racional: é a dominação que se baseia na crença de que é correto obedecer à lei. Não porque a lei seja inspirada por ordem ou crença divina, ou porque se concorde com todos detalhes de todas as leis, ou porque obedecer seja sempre do seu interesse, mas porque a lei deve ser cumprida.
  • Dominação carismática: é a dominação que se baseia na crença de que o líder político possui qualidades excepcionais, dons extraordinários. Os liderados podem acreditar que o líder é inspirado por Deus, ou que é excepcionalmente capaz de compreender o verdadeiro destino da nação.

Referência

MACHADO; AMORIM; BARROS. Sociologia Hoje. São Paulo: Ática, 2014. Páginas 211-212.

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Excertos de Frantz Fanon


Os parágrafos que seguem trazem apontamentos referentes a dois textos de Frantz Fanon, que dissertam sobre a colonização enquanto prática e teoria, falando da África, dos colonizadores e dos colonizados, abordando aspectos sociais e psicológicos destes processos de dominação e opressão. As obras de Fanon orientam o leitor para uma compreensão dos fenômenos relacionados à temática, além de oferecer subsídios para as reflexões libertárias e pós-colonialistas.

A condição do colonizado: alienação e opressão

Os verdadeiros condenados da terra são os seres colonizados, que viram suas estruturas sociais ruírem com sobrenatural potência. Não sobraram pedras sobre pedras, não restaram vestígios dos sistemas de referência das populações autóctones e um novo mundo foi forçosamente trazido pelos Impérios Coloniais. Tratou-se de um processo incansável de destruição das características dos nativos, substituídas e postas como selvagens, primitivas, sem razão de serem simplesmente consideradas.

O colonizador tem feito e continua a fazer o colonizado, ou seja, o colonizador tira os seus bens e as suas verdades do sistema colonial. As argumentações centrais que procuram legitimar a dominação colonial estão marcadas em sentenças racistas, que estipulam para o colonizado valores como a preguiça, a selvageria, a impulsividade. Parte atuante nesse cenário, o colonizado constrói uma visão em si oriunda de fora de si, renega-se enquanto negro, num complexo que pretende remontá-lo na figura de um não-negro. A cultura metropolitana passa a vigorar com força impressionante, evadindo as identidades dos colonizados, tirando eles de sua terra, fazendo-os assumir, num complexo de inferioridade, os valores culturais dos colonizadores.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

A importância do bom jornalismo


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Qual a importância do jornalismo? No dia do jornalista (07/04), vale refletir sobre isso. Apesar de ser a minha primeira graduação, nunca fui jornalista. Não pretendo vir a ser. Minha praia é a docência e as Ciências Sociais. Ainda assim, há um ponto de conexão entre ambas as profissões que me parece pouco explorado.

Jornalismo é produção de informações. Para produzir informação, é preciso investigar o acontecimento, ouvir as diferentes partes envolvidas e elaborar uma narrativa fidedigna do que realmente ocorreu. Só da frase acima, já poderiam surgir discussões ontológicas (o que é a realidade?) e epistemológicas (como conhecer a realidade?). São debates fundamentais, complexos e demorados. Exigem boa formação e boa interpretação de texto.

Onde estão os bons jornalistas? Estão por aí, com certeza. Muitos labutam em grandes veículos de comunicação. Diversas vezes, são sufocados pela hierarquia das empresas, pelos anunciantes que as financiam e pela disputa feroz no mercado da informação. Quem vai dar a notícia em primeira mão? Quem vai conseguir aquela foto que ninguém tem? Quem vai "perder" tempo investigando a fundo? Velocidade e superficialidade substituem apuração e profundidade.

Informação de qualidade virou artigo de luxo. Boatos e mentiras são usados como verdades, seja na política, na imprensa ou no churrasco de domingo. Nesse cenário, é cada vez mais importante o papel do bom jornalista. Aquele profissional que destrincha os acontecimentos. Investiga com rigor. A credibilidade do jornalismo depende dessa tarefa básica. Falar bem na frente da câmera, produzir releases ou dizer aquilo que agrada ao patrão qualquer um pode fazer.

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sábado, 1 de abril de 2017

Liberalismo e socialismo: um debate


Por André Magnelli
Professor da Faculdade de São Bento (RJ)
Publicado no Blog do Sociofilo

Atualmente nós temos um debate muito tosco sobre a oposição entre duas tradições políticas: o liberalismo e o socialismo.

É importante apresentar alguns termos muito simples da questão, para que possamos contribuir um pouco para argumentações sobre uma problemática que, sendo tão central para todos nós, não  pode ser pensada de modo deveras leviano.

Do lado daqueles que se identificam com o socialismo, a grande maioria tem uma visão equivocada da tradição liberal, reduzindo-a ao que conhecemos como “neoliberalismo”. O neoliberalismo é uma forma reduzida e distorcida do liberalismo. Ele o reduz de modo economicista a uma tese: a de que o livre mercado garante, por si só, as liberdades e os direitos fundamentais. Contudo, ela é contraditória teoricamente e errônea historicamente. Afinal, um regime de livre mercado é completamente compatível com uma ditadura política. A defesa de uma esfera de liberdade de mercado e de livre iniciativa, que é fundamental para o liberalismo, não é igual à defesa do “livre mercado”. Desta forma, o neoliberalismo não apenas expressa incorretamente os valores liberais, como, sobretudo, suprime as possibilidades deles serem efetivados. Cabe então perguntar: o que é liberalismo e em que ele se diferencia e se opõe ao neoliberalismo e aos socialismos?

Doutro lado, uma maioria daqueles que se identificam com o “liberalismo” tem uma visão igualmente equivocada da tradição socialista. Eles a reduzem àquilo que conhecemos como “socialismo real” ou “comunismo” e entendem que todo socialismo é estatista e autoritário. Mas o “socialismo real” foi apenas uma das vias socialistas, que foi formulada e praticada sobretudo na virada do século XIX ao XX, tendo na teoria do Partido de vanguarda revolucionária de Lenin sua grande cartilha e não podendo nem sequer ser identificada completamente ao pensamento do próprio Marx. A partir da Revolução Bolchevique, que faz 100 anos em 2017, tal tradição totalitária participou da minimização, da aniquilação ou do esquecimento de outras vertentes socialistas, plenamente democráticas, como a socialdemocracia – que, vale lembrar, construiu no pós-guerra a base de nosso Estado Democrático de Direito – e os socialismos associacionista, autogestionário e solidarista. Cabe então perguntar: o que é socialismo democrático e em que ele se diferencia e se opõe ao liberalismo, ao neoliberalismo e às vertentes autoritárias e totalitárias de socialismo?

Ao invés de partir de tais problematizações, contudo, nosso debate público atual é alimentado por uma reprodução sistemática de incompreensões e embates vazios. Isso ocorre por causa de pelo menos três coisas:

(a) a inacreditável permanência de interpretações reducionistas das duas tradições no campo intelectual brasileiro, que está presente não apenas em uma intelectualidade tecnicizada com sofrida formação histórica e em humanidades, como também naquela outra intelectualidade, que se identifica com a esquerda, que parece ainda estar em meados do século XX, idolatrizando e apoiando regimes de egocratas como Fidel, Maduro e cia. Esse último caso ocorre por causa da reprodução endógena de um imaginário e de um discurso em descompasso surpreendente com as transformações das democracias contemporâneas e com as expectativas dos cidadãos de todas as classes sociais. Dado o fato dela ser muito barulhenta na esfera pública, querendo-se monopolizadora da única esquerda possível e existente, abre-se caminho a uma ridicularização distorcida, hoje, do que é “esquerda” por qualificativos como “esquerdopata”;

(b) uma ignorância autocomplacente dos indivíduos em uma sociedade midiática alimentada por estereótipos, lugares comuns, frases de efeitos e chavões. Vivemos em uma sociedade de opiniões “patológicas”. Entendo-as como “patológicas” nos três sentidos do termo: como opiniões cheias de emoção, embebidas de “sensacionalismo” e polarizações maniqueístas, com incapacidade de realizar a difícil tarefa de formular raciocínios dialógicos e bem fundamentados; como opiniões “passivas”, pois recebem e reproduzem esquemas de pensamento alheios quase que de forma automática, crendo que aí manifestam alguma ideia “pessoal” e alguma contribuição “única”; e, enfim, como opiniões “doentias”, que contribuem mais como expressão de sintomas de que algo não passa bem no psiquismo individual e coletivo, do que como parte da formação da vontade política na esfera pública democrática. O “patológico” acabou de assumir o poder nos Estados Unidos, o que, felizmente, está fortalecendo afetos positivos de resistência. O importante a perceber é que os muros materialmente erguidos – seja os de Berlim, de Trump ou de condomínios – parecem encarnar algo em comum: a rigidez e compartimentação de pensamentos incapazes de superar a lógica identitária e do interesse próprio e de se tornarem dialógicos, refletindo, debatendo e argumentando com os outros a respeito de questões publicamente substantivas, ou seja, questões que interessam, envolvem e engajam pessoas em torno de problemas públicos a serem enfrentados em si e por si mesmos;

(c) e, como resultado do fato anterior, temos a perda de sentido histórico de uma sociedade voltada à sacralização do presente e do imediato. Com isso, as palavras se tornam, paradoxalmente, ao mesmo tempo muito “evidentes” e “opacas”. As palavras são “evidentes”, pois muitas pessoas as utilizam tal como as crianças fazem com aquelas palavras que tentam aplicar sem ainda ter captado os significados. Como diziam Adorno e Horkheimer no capítulo central da sua Dialética do Esclarecimento (1944), intitulado Indústria Cultural: Esclarecimento como Mistificação das Massas, as palavras na sociedade de massas passam a “designar” sem “significar”. E, com isso, se tornam um meio de exercer violência contra o outro – “coxinha!”, “petista!”, “socialista!”, “liberal!” – e de reproduzir um sistema cultural massificado que tende a aniquilar a capacidade de pensar e refletir. Mas são também palavras “opacas”, porque elas têm em si significados sedimentados pela tradição que são intuídos e acionados nos discursos de combate de modo confuso, de tal forma que poucos conseguem apreender seus valores de “meia verdade”, já que isso demandaria uma consciência histórica que poucos têm ou estão dispostos a adquirir mediante esforço. Isso gera um mal-estar geral diante da dificuldade de dominar os discursos que perpassam o debate, gerando uma impressão difusa de que encenamos uma grande comédia no momento em que queremos encarnar sérios personagens. Há, com isso, um sentimento geral de desvanecimento do valor de verdade dos discursos em que os debates se tornam banais, artificiais, vazios, onde os oponentes se tornam muito parecidos uns com os outros.

Ora, as respostas a tais questões e a saída de uma situação tão paradoxal somente é possível caso façamos um esforço de sair do debate imediato e de adquirir uma consciência histórica das duas tradições políticas e do processo de formação e transformação das democracias modernas e contemporâneas. Contra nossa entropia democrática, é necessária uma neguentropia da educação histórica. Uma forte contribuição poderia vir de um ensino de história, sociologia e filosofia fortalecido – ao contrário do que parece querer o atual governo federal – para além das polarizações partidárias do presente, que apresente, de modo contextualizado, imparcial e processual, as múltiplas trajetórias das tradições políticas e de suas distintas possibilidades de interpretar a nossa situação, deixando aos indivíduos o direito e a capacidade de formar o seu próprio juízo.

Neste sentido, para concluir, acredito que, no século XXI, a polarização entre socialismo e liberalismo deve começar pela aceitação dos simples termos de debate postos, de um lado, por Marcel Gauchet, e, por outro, por Jürgen Habermas.

Marcel Gauchet nos lembra, mandando um recado à tradição socialista, que o liberalismo é um incontornável “fato jurídico e social do indivíduo” nas democracias modernas. Somente a partir do seu reconhecimento é que podemos, portanto, iniciar o debate sobre como interpretá-lo e como regulá-lo tendo em vista o imperativo democrático de igualdade e de formação da vontade geral:
Não esqueçamos jamais: a orientação liberal, muito antes de ser uma doutrina política, é um dado de fato, é uma articulação central de nossas sociedades. Ela tem a força de realidade das barreiras de direito que protegem o domínio das liberdades pessoais, e a densidade material dos prolongamentos da propriedade. Podemos discutir ao infinito, a partir daí, qual é a extensão desejável deste domínio protegido. É aqui que começa o debate entre ‘liberalismo’ e ‘socialismo’. Mas este debate não tem sentido senão em relação a um fato primeiro – digamos que o fato jurídico e social do indivíduo. Liberalismo e socialismo (na medida em que entendamos que esse permaneça democrático) são apenas, aparentemente, interpretações amplificadoras ou corretoras do fato liberal. O grande fato liberal no último século foi a autonomização em relação ao Estado de uma sociedade formada por indivíduos (GAUCHET, Marcel. La religion dans la démocratie. Paris: Gallimard, 1998, p.54).
Habermas, por sua vez, manda um recado ao outro lado do espectro, que saíra aparentemente vitorioso após a queda do mudo de Berlim. Ora, se o liberalismo é um fundamento normativo das constituições democráticas, isso não quer dizer que ele se identifica ao capitalismo tardio, e tampouco isso significa que o socialismo não seja um igual fundamento do Estado Democrático de Direito. Cabe-nos, portanto, ler com atenção esta passagem de Direito e Democracia (1992), a fim de perceber a atualidade da questão socialista (juntamente com a ecológica) para as democracias de nosso próprio tempo, esquivando-nos assim da tentação idiotista presente nos populismos que ganham perigosa força, hoje, no Brasil e no mundo:
O colapso  do socialismo de Estado e o  final da “guerra civil mundial” colocaram em evidência a falha teórica do partido fracassado [o socialista]: descobriu-se que ele confundira o projeto socialista com o esboço – e a imposição forçada – de uma forma de vida concreta. Todavia, se entendermos por “socialismo” um protótipo de condições necessárias para formas de vida emancipadas, sobre as quais os próprios participantes precisam se entender preliminarmente, não é difícil verificar que a auto-organização democrática de uma comunidade jurídica forma o núcleo  normativo do  projeto socialista. De outro lado, o partido que se considera vitorioso [o neoliberalismo] não pode comemorar o seu triunfo. Pois, no momento em que poderia assumir a herança indivisa da autocompreensão prático-moral da modernidade, ele desanima perante a tarefa ingente de levar adiante a domesticação social e ecológica do capitalismo no âmbito de uma sociedade mundial ameaçada. Se, certamente, ele respeita, rapidamente, o sentido epistêmico típico de uma economia orientada pelos mercados e, ao menos, está protegido contra uma dilatação exagerada do medium do poder de burocracias estatais, falta-lhe, contudo, uma semelhante sensibilidade em relação à fonte [da democracia] que está propriamente ameaçada [a saber,] – uma solidariedade social que deve ser recuperada e conservada em estruturas jurídicas (HABERMAS, J. Direito e Democracia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012 [1992] p.12-13, grifos meus; fiz pequenas alterações na tradução para facilitar entendimento).

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