ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Sonhar é preciso

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Perto de completar mais uma volta na Terra, fico sonhando acordado. Desperto para ler Fernando Pessoa, na figura de Álvaro de Campos: “Não sou nada. Não serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.

Venho sendo mais modesto. Há alguns anos, no meio da graduação, comentei com um colega, que já era professor: “meu sonho é dar aula num colégio estadual”. O rapaz sorriu amarelo, como se perguntando: “sério isso?!”.

Anos antes, meu sonho era ver o Internacional campeão. E, quem sabe, campeão dos campeões. Sonho sonhado por uma multidão, mas também pela futilidade de um jovem estudante. Sonho vivido de dentro, nas entranhas da catarse colorada.

Ainda muito antes, sonhei com várias pequenas coisas. Cultivar boas amizades, amar, viajar, ler discos e escutar livros, comer e beber bem. Também arrisquei ousar um pouco: sonhei em escrever diversas coisas, contar muitas histórias para diferentes públicos.

Sigo alimentando sonhos miúdos, utópicos, desacreditados pelas sociedades dominadas por valores de mercado. “Sonhinhos” que me fazem arregaçar as mangas e lutar para que eles, ao se realizarem (ou não), acabem dando lugar para novos rebentos "sonháticos".

O importante é não parar de sonhar. Seja com a igualdade e a liberdade para todos, com uma barraca e um café da manhã à beira da praia ou com uma sociedade feita de pessoas que gostem de ler, entendam o que leem e fomentem a leitura e a escrita.

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terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Utopia e realidade

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

No restinho de 2017, deixamos a Cidade da Bahia. Depois de passar pelo Sertão, chegamos à Chapada Diamantina. Ali, no Vale do Capão, deu pra sentir a conexão com uma vida utópica, em que conta mais o sentir do que o ter, e tudo parece fazer sentido.

Nessa toada de integração com a natureza, de humildade, solidariedade e alegria, subimos o morro rumo à Cachoeira da Fumaça. Na trilha, porém, o "líder" de um grupo de turistas, no auge da ladeira, cantarolava a plenos pulmões: "O Bope tem guerreiros, que matam guerrilheiros...". Aceleramos o passo.

A humanidade é mesmo complexa. Aquela aberração musical não constrangeu a nossa feliz trajetória. No fim de tarde, seguimos para outra cachoeira, batizada de "Angélica". Na estrada, meio perdidos, pedimos informação para uma pedestre qualquer. Acabamos oferecendo uma carona para a moça.

Elaine, natural de Palmeiras, uma cidade da região, mostrou o caminho e contou que estava indo trabalhar. Era seu dia de folga, mas a outra funcionária da pousada havia dado para trás. Bem naquele dia, aniversário de um dos filhos dela. De cara, ela contou que os R$ 70 que tirava por dia eram necessários, mas que a tristeza era grande por estar longe de casa naquele instante.

O pior estava por vir. Consternados, seguimos conversando. Elaine nos mostrou, então, a razão de a exploração do trabalho ainda ser uma pauta central, inclusive em lugares nos quais a utopia se confunde com a realidade. Disse a garota: "O pior é que os patrões são, tipo, formados em direitos humanos. Pra mim, se a gente se forma, a gente deve ajudar a melhorar a vida das pessoas. Faz o cálculo e vê quanto custa a minha hora de trabalho. Eu pego às seis e saio às 20h".

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