Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
Sociólogo e Professor
De férias, alegre, vinha pedalando e cantando “O bêbado e a
equilibrista”. O rapaz destoava de todo o resto ao seu redor. Quietos, sisudos
e fechados, todos naquela esquina mais pareciam máquinas. Absortos pelo
trabalho, ninguém dava a mínima, mas vários estranhavam a tal cantoria.
Durante todo o ano, o cantor de fim de tarde também ignorara
as vicissitudes do cotidiano, mergulhado que estivera no trabalho. Mas, agora,
cantava. Cantava e pensava, sem pestanejar: isso as leis de mercado ainda não pegaram.
Naquela cantoria pedalante, não haveria quaisquer relações de troca, não
haveria transação comercial.
Assim algumas coisas deviam estar e ser: alheias aos
negócios, distantes das atividades de compra e venda. Não é que a
economia de mercado, nos moldes de uma sociedade capitalista, não possa ser um
instrumento eficiente, se regulado, para a alocação de recursos e incentivo à
inovação tecnológica.
Ocorre que um “instrumento” não pode se transformar na
lógica de organização de uma coletividade. Em outras palavras, uma “economia de
mercado” não pode virar uma “sociedade de mercado”. No país símbolo do
capitalismo, hoje uma sociedade de mercado, conta o filósofo Michael Sandel,
professor de Harvard, guardar um lugar numa fila demorada pode significar um
bom negócio.
Na terra do “tempo é dinheiro”, há
casos em que o incentivo à leitura entre estudantes está relacionado a recompensas
financeiras. Quanto mais livros lidos, mais dólares são recebidos pelos jovens.
Por óbvio, a prioridade se torna ler livros menores, e engordar a carteira. É por isso que devemos gostar de ler?
Uma sociedade de mercado pode modificar os valores morais de
bens imateriais (como a aprendizagem, por exemplo) e o significado de práticas
sociais. Num contexto de aumento das desigualdades, ricos e pobres tendem a
viver vidas cada vez mais separadas, frequentando lugares muito diferentes,
criando seus filhos de maneiras e com condições muito distantes.
Isso não é nada bom para a democracia. A democracia não requer
uma igualdade total, mas precisa que as pessoas compartilhem uma vida em comum.
As pessoas de origens e condições dessemelhantes precisam, além de
oportunidades para exercer sua liberdade e suas capacidades, contar com espaços
em que possam compartilhar experiências comuns.
Sem esses espaços, com o fortalecimento dos “guetos”
ideológicos tão presentes em tempos de redes sociais, traduzidos em condomínios
fechados e grandes favelas, ficamos cada vez mais longe de conseguir negociar
nossas diferenças. Tematizar as disparidades de poder e buscar o
equilíbrio acaba em medo e guerra. Cuidar do bem comum vira uma tarefa quase impossível.
Quando abriu a sinaleira, o cantante seguiu seu rumo. Não
sabia sobre o dia de amanhã – estava de férias. Esse direito ainda lhe cabia. O
rapaz sabia, contudo, que uma dor assim pungente, como a que assolava os
habitantes na megalópole, não haveria de ser inutilmente. E que a esperança
equilibrista, mesmo dançando na corda bamba, de sombrinha, sabe que o show de
todo artista, tem que continuar.
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