ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Roteiro para estudo e escrita em Sociologia


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Introdução

Antes de começar a fazer pesquisa sociológica, antes de botar a mão na massa, produzir, organizar ou selecionar e analisar dados empíricos à luz das teorias, o cientista social precisa ter uma capacidade razoável de leitura e produção textual. Como um pressuposto, o cientista social precisa conseguir absorver das leituras que faz, e que precisam ser muitas, os seus pontos principais e as articulações que eles sugerem. Isso acaba inapelavelmente passando por escrever sobre teorias, autores, conceitos, debates e etc.

Essa responsabilidade traz problemas. Primeiro, em função de que, salvo valiosas experiências no âmbito da educação formal, pouco se ensina “a estudar” aos nossos jovens. Medidas básicas de organização das atividades de estudo podem ajudar a fazer a coisa acontecer. Segundo, porque não costumamos nos sentir preparados para sair escrevendo, seja porque a vida acadêmica é altamente competitiva e feita de pressões diversas, seja porque temos dificuldade mesmo de botar para fora as ideias que fervilham nas nossas mentes.

A partir desse problema, elaborei um roteiro básico para minhas atividades de estudo e produção textual em Sociologia, uma parte relevante das minhas atividades profissionais, o que tem me ajudado a ler e escrever de maneira mais organizada. É óbvio que essas dicas em forma de roteiro não se pretendem científicas, muito longe disso. Trata-se apenas de uma forma de organizar as atividades de estudo e escrita para interessados em Sociologia, buscando auxiliar a mim mesmo, nessas que são incumbências intrínsecas ao trabalho sociológico. Se para mais alguém isso for útil, será uma satisfação.

1 Dimensões e passos do roteiro proposto

O roteiro envolve três dimensões: (1) o contexto da temática em estudo; (2) a leitura dos textos da temática em estudo; (3) e a escrita sobre as leituras realizadas. São dimensões que se entrelaçam e, com o tempo, acabam certamente se confundindo. Por exemplo, um praticante que já tenha um acúmulo grande de leituras e textos escritos, já conheceu e versou sobre o contexto da temática, pode transitar com facilidade entre este ou aquele aspecto que pretenda dissertar, inclusive fundindo diferentes perspectivas e criando novos laços conceituais e teóricos. Se o estudioso fizer sempre, em todas as leituras e temáticas que se debruçar, essa espécie de artesanato sociológico, com o passar do tempo acumulará um grande acervo de textos próprios sobre muitos assuntos, autores e teorias, ampliando seus recursos de trabalho. Penso que essa lógica de estudo e produção textual vale para textos variados da Sociologia (metodológicos, teóricos, artigos científicos, teorias, etc.). Sugiro cinco passos básicos para operacionalizar este roteiro de estudo e escrita.

Primeiro passo – A contextualização

A primeira coisa a fazer é procurar algumas informações sobre o assunto/autor que se deseja estudar. Penso que sempre vale a pena começar pelas ideias gerais, pelas pessoas que comentam as grandes obras e grandes pesquisas. Isso significa começar por abordagens mais superficiais, sem dúvidas, mas justamente para abrir os caminhos do estudioso, de modo que ele comece a transitar pelo assunto entendendo o que está sendo dito. Ler de supetão os grandes clássicos, os originais, pode até ser uma estratégia que dê certo para muita gente, e por vezes é o que fazemos a contragosto. Minha sugestão para organizar os estudos e construir crescentemente conhecimentos sobre o objeto de estudo é iniciar pelo conteúdo mais mastigado, a fim de que o estudioso não perca o gosto pelo estudo e siga adiante, até chegar aos pontos mais profundos e complexos.

Segundo passo – A leitura

O segundo passo é aquele impossível de fugir: a leitura. Para aumentar os conhecimentos em Sociologia é inevitável aumentar a carga de leitura. Dói, não é fácil, mas tem que ler. E ler bastante. Mas eu acredito que ler com atenção e com um foco predeterminado ajuda a dinamizar as leituras e não perder tempo naquilo que pouco vai acrescentar ou que é periférico sob o ângulo que o estudioso procura analisar.

Por isso, minha sugestão é fazer as leituras sempre procurando determinadas “dobras” do texto, isto é, procurando em que ponto o texto articula a sua centralidade, que geralmente remete a associação entre teoria e empiria. Quero dizer que procuro nos textos, antes de tudo, a clareza quanto ao seu objetivo principal, para logo depois achar essas dobras entre os argumentos. Procuro também conceitos que façam a “materialidade” dessas dobras, de preferência que possam ser ilustrados por exemplos de caráter empírico utilizados no texto. Em síntese, uma tríade de buscas: objetivos principais, dobras conceituais e dobras empíricas.

Há uma coisa a mais sobre a leitura. Eu sou um daqueles que lê em qualquer lugar, com relativa tranquilidade. Para aqueles que também são assim, sugiro que o façam mesmo com textos pesados e teóricos e mesmo que não haja possibilidade de fazer anotações e marcações. Mesmo assim, leiam. Porém, para aqueles que não lidam bem com leituras em locais movimentados ou transporte coletivo, por exemplo, sem problemas. Isso não necessariamente atrapalha, pois, provavelmente, estes dedicam outros tempos para a leitura.

O fato é que, uma hora ou outra, eu sempre considero importante fazer anotações a lápis no corpo do texto, sobretudo porque não tenho memória suficiente para guardar páginas e argumentos depois de alguns anos me dedicando a pesquisa e a docência em Sociologia. Podem ser marquinhas discretas, anotações ou o que bem o estudioso entender, mas precisa ficar claro que ali há algo que pode ser utilizado em outro momento, há algo importante.

Terceiro passo – A seleção contextualizada

O terceiro passo depende, em parte, da qualidade da leitura realizada. Depois de entender o contexto do assunto, procurar textos introdutórios e começar a lê-los, é preciso que o estudioso tenha capacidade de selecionar partes do texto que leu para organizar as suas ideias sobre o texto, no formato da escrita. Selecionar essas partes pode ser facilitado pelas marcações que o estudioso fizer no texto lido, e pode se ganhar bastante se forem selecionados trechos relativos aos objetivos principais e as dobras conceituais e empíricas supracitadas. É dessa seleção que sairá o texto sobre o texto, ou seja, é desta seleção que se realiza a escrita sobre aquilo que foi lido.

Quarto passo – A escrita

A página está em branco. É chegada a hora de usar o teclado do PC. O estudioso já pode estar mais seguro, já possui mais informações e já tentou selecionar aquilo que lhe cabia no texto lido, de modo a dar inicio a escrita. Proponho que se produzam textos que se localizam entre um fichamento (descrição do que foi dito no texto lido) e uma resenha (descrição com tons analíticos e críticos). Algo que se localize entre as duas propostas, no entremeio do fichamento e da resenha.

Minha sugestão é partir da organização lógica inerente ao próprio texto lido. Isso significa começar a escrever sobre a introdução e assim por diante, seguindo a ordem de início, meio e fim do texto lido. A operação básica é simples, ainda que complexa: escrever com palavras próprias as ideias que foram selecionadas, acrescentando ou não comentários. O estudioso vai escrevendo sobre o que diz o texto e vai compondo a sua escrita, e com o tempo a capacidade de fazer ligações entre assuntos e acréscimos próprios tende a aumentar.

No decorrer dos anos, se o estudioso guardar no seu arquivo de textos de sua autoria cada um dos escritos sobre cada assunto/autor que realizou a leitura, seu acervo será algo interessantíssimo, recheado de ideias, conceitos, referências empíricas e insights do próprio estudioso, constituindo um rico material de base para o ofício da pesquisa sociológica e da docência.

Quinto passo – A organização do acervo

Cada estudioso pode ter a sua organização, é verdade. Eu sugiro, modestamente, que se mantenham temáticas que dialogam próximas, assim como autores e conceitos, de modo a ajudar o estudioso a fomentar mentalmente ligações entre temáticas, autores e conceitos, auxiliando a criação intelectual. Creio que a forma mais organizada de fazer isso é separar os arquivos de Word/Open Office em pastas temáticas, e entre os arquivos nomeá-los a partir do sobrenome do autor, seguido do nome e de um título para o texto. Exemplo: caprara, bernardo – roteiro para estudos.docx. Assim, o acervo fica minimamente organizado.

Considerações finais

Com este breve roteiro, eu espero ter ajudado aos estudiosos da Sociologia a pensar na criação das suas próprias formas de organização dos seus estudos, das suas leituras e produções textuais. Individualmente, desde que comecei a adotar esses procedimentos, consegui organizar melhor essa parte relevante da minha vida profissional. Estes textos, que se localizam entre os fichamentos e as resenhas, no acumulado, ajudam muito na prática cotidiana de pesquisa e docência em Sociologia. Têm sido “ferramentas” essenciais.
.
.