ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Casamento Real a ferro e fogo

Imagem retirada do sítio http://farm4.static.flickr.com/3114/2340382922_f62bbed72a.jpgAssim a monarquia britânica tratava seus súditos: a ferro e fogo

Nas últimas semanas, ao ligar a televisão, acessar os principais portais da internet, ou mesmo abrir as páginas de um jornal, tive a sensação de viver no século XV, guardadas todas as aberrações que um anacronismo como esse pode gerar. Há de convir, ilustre leitor, tamanha a referência (ou seria reverência?) dos grandes meios de comunicação ao famigerado (que ousadia!) casamento entre um descendente da monarquia britânica e uma plebeia, abstraindo um pouco, seria possível sentir-se entre castelos, cavaleiros e todos os requintes dos períodos áureos das realezas europeias.

Pois bem, quanta bobagem. Tais espúrias considerações que lancei acima carregam, entretanto, uma ponderação importante, que está diretamente vinculada à qualidade dos veículos de comunicação e percorre o fato de que esses estão mais preocupados em oferecer aos seus consumidores um entretenimento sem conteúdo do que qualquer outra coisa. Se bem que, a rigor, não se encontram grandes elementos de diversão num evento como o referido casório – a não ser nos noivos, por obviedade.

Creio ser mais relevante problematizar a inexistente faceta reflexiva da imprensa, em tempos de um jornalismo pautado pela velocidade, pelos ganhos econômicos e pela concorrência declarada. Já que não se faz nada (ou quase, para não ser injusto) de reflexão, proponho pensar um pouco sobre a realidade britânica atual e sobre o próprio caráter da sua monarquia. Do passado para o presente, assim estarão estruturados os próximos parágrafos.

É sabido que vivemos em sociedades organizadas economicamente através de relações capitalistas de produção, ou seja, nas quais existe o conflito entre capital e trabalho, além de inúmeras outras decorrências. Nos confins do século XIV, na Inglaterra, a servidão estava praticamente desaparecida, e grande parte da população vivia cultivando suas próprias terras, “[...] quaisquer que fossem os títulos feudais com os quais protegiam os seus direitos de posse”[1]. No processo de acumulação primitiva de capital, esses camponeses livres foram, gradualmente, vendo suas terras serem expropriadas, e seu modo de ganhar a vida transformado radicalmente. Não obstante, os anais da Economia Política parecem demonstrar uma caminhada tranquila, sem violência, com traços idílicos, parafraseando Marx. Quando nos debruçamos sobre a história, não é bem dessa forma que os fatos aparecem.

Para se ater ao mundo britânico, a expropriação dos cultivadores e a modificação da produção em suas terras, que se tornavam pastos e atiravam grupos de pessoas à busca pela sobrevivência (nas cidades, nas fábricas que surgiriam, vejam só!), foi acompanhada por legislações verdadeiramente sanguinárias voltadas contra os próprios expropriados. Uma pequena citação cai bem nesse momento, sintetizando alguns argumentos:

Os despojos dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do Estado, a pilhagem dos terrenos comunais, a transformação usurpadora e terrorista da propriedade feudal e mesmo a patriarcal, em propriedade privada moderna, a guerra às cabanas, foram os processos idílicos da acumulação primitiva. Conquistaram a terra para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e entregaram à indústria das cidades os braços dóceis de um proletariado sem lar nem pão[2].

Os indivíduos não se adaptaram com facilidade aos novos rumos impostos às suas vidas, ao fato de terem sido destronados das suas ocupações normais, e assim apareciam grupos de ladrões, vagabundos e mendigos. Surgiam então legislações para determinar suas novas vidas, na Inglaterra a partir de Henrique VII (opa, eis a monarquia britânica!). Essas leis começaram “suaves”, mas em Henrique VIII o cerco se fechava, e à “[...] primeira reincidência o vagabundo deve ser açoitado novamente, devendo-se-lhe cortar meia orelha; à segunda reincidência é tratado como traidor e executado como inimigo do Estado”[3]. Bastante carinho, atenção e preocupação da monarquia e seu parlamento para com seus súditos, expropriados das suas terras. Difícil entender, mas as pessoas que foram destituídas das suas terras, ao não se adequarem aos padrões forçosamente recém estabelecidos, eram julgadas pelos intitulados “Juízes de Paz” (proprietários de terras, fabricantes, pastores protestantes, todos eles investidos de jurisdição criminal) como vadios, mendigos. “A legislação os tratou como criminosos voluntários, supondo que dependia de seu livre arbítrio o continuar trabalhando como no passado e como se não tivesse sobrevindo nenhuma mudança em sua condição de existência”[4].

Vamos ao reinado de Elizabeth, 1572: mendigos deveriam ser açoitados e marcados com ferro em brasa na orelha esquerda (quão dócil!), isso se nenhum cidadão os quisesse como serviçais durante dois anos. Segue:

Sob o reinado tão maternal quão virginal de Queen Bees, enforcavam-se os vagabundos às fornadas, arrumados em longas fileiras. Não se passava nenhum ano sem que houvesse 300 ou 400 enforcados num ou noutro lugar, diz Strype em seus Anais; segundo ele, só no condado de Somersetshire contaram-se num ano quarenta executados, trinta e cinco marcados com ferro em brasa, trinta e sete açoitados e cento e trinta e oito “folgazões incorrigíveis” postos em liberdade[5].

Ora, vistas as feições delicadas da realeza britânica, por quê não comentar vagamente a situação da Inglaterra nos dias de hoje? O pós-guerra contra o nazifascismo emergiu, sob o ponto de vista econômico, permeado de contestações ao Estado de bem-estar social, aos direitos conquistados pelos trabalhadores e aos mecanismos sociais de proteção. De Hayek a Friedman, até chegar a Reagan e Thatcher, a cortina de ferro soviética era sempre apontada como o equívoco do sistema planificado, o antagonismo absurdo dos prazeres do capitalismo. Na Inglaterra, a responsável por desmontar o conjunto de sustentações do Estado aos seus cidadãos – desmonte justificado por intermédio de sentenças economicistas pouco compreensíveis à maioria da população – chamava-se Margaret Thatcher, a dama de ferro. Há tempos a monarquia não manda nada, vive às custas do povo, ostentando uma simbologia atrasada e por completo desnecessária. Thatcher implantou o neoliberalismo no seu país, atribuiu à iniciativa privada setores que outrora cabiam ao Estado e apostou no individualismo crescente como “filosofia do ser” dos habitantes contemporâneos.

Na sociologia, Anthony Giddens, respeitável intelectual, diz-se pai de uma espécie de “terceira via” entre a direita e a esquerda, deveras questionável sob os mais distintos ângulos. Tenta também resolver as querelas sociológicas que dizem respeito à preponderância do indivíduo ou da sociedade, da ação ou das estruturas, defendendo uma posição um tanto mais próxima da ação, na medida em que se foca na “reflexividade” dos agentes e na sua teoria da estruturação.

Talvez tudo isso não sirva para nada, é cabível. No entanto, tenho convicção que o “casamento real” mais apropriado para o momento da humanidade poderia advir de uma relação profunda da mídia com a reflexão. Toda sorte de parâmetros que a pautam na sociedade ocidental capitalista contemporânea, porém, destroem qualquer utopia acerca dessa possibilidade. Entretenimento como meio e fim, cada vez mais desqualificado, eis o retrato das empresas responsáveis por informar, em pleno século XXI.

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

NOTAS

1 Cf. MARX, Karl. A origem do capital – A acumulação primitiva (Coleção Bases, Economia, n. 3). São Paulo: Global Editora, 1977. Página 19.

2 Idem, página 55.

3 Idem, página 58.

4 Idem, página 57.

5 Idem, página 62.

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terça-feira, 26 de abril de 2011

O exemplo de Silvia Waiãpi


Silvia Waiãpi, brasileira de verdade, em programa de TV

Nesta semana, uma entrevista no programa de Jô Soares (TV Globo) chamou a atenção. Silvia Waiãpi, nascida numa sociedade indígena do Amapá, conta a sua história em conversa com o comediante, que a deixa falar, embora permaneça discreto por parecer ter pouco a contribuir. Vale bastante assistir ao material, na medida em que retrata as faces discriminatórias da realidade neste país, e ao mesmo tempo indica que nem tudo está perdido.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Bourdieu, Realengo e as relações entre o indivíduo e a sociedade

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor


Um rapaz invade a escola em que estudou, armado até os dentes, dispara contra crianças desprevenidas e comete  suicídio, deixando um rastro de violência e tristeza. A notícia se espalha pelo planeta, discussões são propostas, soluções balbuciadas pelos meios de comunicação, a comoção se generaliza. Esse poderia ser o roteiro do mais novo sucesso cinematográfico norteamericano; no entanto, infelizmente, faz parte dos acontecimentos recentes no Rio de Janeiro.

Mais do que comentar o caso, exaurir o assunto ou esbravejar contra o assassino, indicações comuns ao conhecimento tácito, parece caber à sociologia a busca por compreender o que há de socialmente relevante. Nesse sentido, a primeira e norteadora pergunta, mediante a tragédia em Realengo, diz respeito às razões do atirador, ao processo pelo qual o referido indivíduo transformou o que pulsava como revolta interior, desejo oculto ou descontrole emocional, numa prática injustificável com drásticas conseqüências nas vidas de diversas famílias. Quais seriam os elementos geradores dos caminhos para responder ao questionamento recém proposto? Desde já, os argumentos geneticistas, biológicos ou neurológicos, tanto pelo desconhecimento declarado deste que vos escreve, quanto pelas suas derivações, que podem chegar ao que no século XIX e início do XX se traduzia na antropologia física e no racismo científico, serão considerados pressupostos secundários na tarefa de compreender (e não explicar) as razões do homicida de Realengo. Com efeito, tal postura não significa que os caracteres inatos não atuem de algum jeito no comportamento humano.

Para as ciências sociais, parafraseando Max Weber, é interessante compreender a vida a nossa volta, que nos rodeia, pretendendo capturar as conexões e a significação cultural das suas diferentes manifestações. No infinito da realidade social, o sociólogo, sujeito finito por excelência humana, poderá engendrar um conhecimento reflexivo sobre ela, sustentando-se na premissa de que somente um fragmento limitado do infinito real poderá ser objeto de compreensão científica[1]. Fundamental nesse instante é salientar ao leitor que o objetivo desse ensaio é oferecer subsídios destinados a reflexão, sem representar o fazer científico, a despeito de carregar pretensões sociológicas. Se a sociologia permanece mirando um resultado satisfatório para determinar, em última instância, a preponderância da ação ou das estruturas na realidade social; se ainda está nesse emaranhado de sentenças fundadas em pesquisas sérias e teorizações concisas, ou não; se tudo isso fizer qualquer sentido, defender um posicionamento acerca dos condicionantes que, em tese, podem ser compreendidos na execução protagonizada por um jovem carioca no seu ex-colégio cintila como uma boa aventura intelectual.

Do estruturalismo ao individualismo metodológico, passando por sofisticadas percepções, os cientistas sociais e a própria filosofia tentaram designar os contornos mais próximos de quais os componentes nevrálgicos da conduta das pessoas. Por seu turno, a sociologia contemporânea, nas figuras consolidadas de Pierre Bourdieu e Anthony Giddens, para citar de forma caricatural os debates, sintetizou as concepções dos chamados clássicos e estabeleceu complexas versões relativas à temática.

Optou-se por seguir as colocações de Bourdieu, no intuito de pensar os fatores causais do nefasto evento fluminense. Não obstante, o envolvimento forte do campo escolar, de um lado por ter sido o local dos atos violentos, de outro por ser a sociabilidade do assassino durante grande parte da sua vivência, não deve se mostrar senão como o ponto de partida a ser ponderado. Na frase anterior, usou-se o termo campo escolar não por acaso, mas por se tratar da linguagem conceitual proposta por Bourdieu, na medida em que o francês desenha a realidade social com a imagem de microcosmos relativamente autônomos, os campos, que seriam universos intermediários nos quais estariam situados os agentes e as instituições que “produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência[2]”, noutras palavras, mundos sociais que correspondem a leis sociais mais ou menos específicas.

Os pioneiros trabalhos de Bourdieu e seus parceiros de pesquisa que obtiveram maior sucesso estavam justamente relacionados ao estudo do campo escolar[3]. Sugerindo a definição de violência simbólica, o sistema escolar e a própria ação pedagógica deteriam o caráter de reprodução do arbitrário cultural dominante, mascarando-se com falsas alternativas de sucesso aos despossuídos do capital cultural necessário para resultados satisfatórios. A escola transformadora, dotada do esperançoso ideal de melhorias sociais, não passaria de uma falácia. As escolas brasileiras, vistas de dentro, para além dos seus muros, para além das matérias especiais feitas pelos grandes canais de televisão, observadas no calor do cotidiano, apresentam sinais de que a violência simbólica e a reprodução das desigualdades convivem com honestas tentativas de mudança. Estão presentes as considerações de Bourdieu, em geral e em princípio, é imperativo ressaltar. Só uma pesquisa de razoável densidade poderá concretizar com maior clareza a importância do capital cultural no desempenho estudantil médio, ou mesmo a amplitude das incontáveis violências simbólicas exercidas por todos os agentes aleatoriamente no dia a dia das instituições de ensino básico.

Todos os campos são campos de força e de disputa, e a posição ocupada por cada agente na estrutura da distribuição do capital específico de cada campo vai encaminhar as suas possibilidades de atuação. Assim, esses agentes se constituem enquanto agentes na medida em que, conforme Bourdieu, no ritmo peculiar da sua existência nos campos, constroem o habitus, isto é, suas disposições permanentes e duradouras, o sentido do jogo, as disposições incorporadas que orientarão as suas tomadas de decisão. Quando Bourdieu evoca o conceito de habitus, refere-se às “estruturas sociais de nossa subjetividade”, construídas em princípio na vivência das primeiras experiências sociais (habitus primário) e, posteriormente, da vida adulta (habitus secundário). Em síntese, ele é a maneira como as estruturas sociais se imprimem na racionalidade e no corpo dos agentes, por meio da interiorização da exterioridade, um “sistema de disposições duráveis e transponíveis”, em que as múltiplas respostas às variáveis situações são dadas a partir de um conjunto limitado de esquemas de ação e pensamento[4].

Longe de ser um reflexo das estruturas sociais, sempre essenciais e cujas formas apenas se modificariam; longe também de constituir um indivíduo racional ao extremo, indiferente às coerções exteriores, às influências estruturais, Wellington Menezes era um jovem que tinha o campo escolar marcando a sua trajetória, pois se evidenciou que se tratava de uma pessoa excluída, com poucos amigos, de socialização dificultosa, a todo o momento alvo de violência física e simbólica dos colegas. Imaginar o processo de construção do habitus, seus esquemas de ação e pensamento, além das disputas que ele travava no campo escolar, no qual foi um dos agentes “dominados” por longo período, não é justificar o crime, é desencadear um percurso que demonstra rejeição, tristeza, inconformidade e, enfim, descontrole. Há mais a dizer.

Noutro pólo, uma análise da sociedade em que o assassino estava vinculado, em linhas gerais, encontrará a força dos modernos meios de comunicação de massa, sobretudo da indústria do entretenimento. Ao pensar o campo cinematográfico, ou o “campo do entretenimento”, numa expressão de quem vos escreve, sob o prisma dos conteúdos e dos significados culturais que estes disseminam, será imediata a referência a muito sangue, tiroteios, perseguições e serial killers, tudo isso travestido de filmes, novelas ou programas televisivos, jogos de vídeo-game e seus genéricos. Operariam os mass media espelhando uma espécie de “dispositivo pedagógico[5]”, participando da subjetivação dos agentes, emoldurado pela sociedade ocidental contemporânea capitalista? Quem diz, com robustez de alcance, o que é esteticamente belo ou feio, sem considerar as complexidades da recepção da mensagem, nos tempos atuais? De fato, naqueles que nada fazem além de consumir as mercadorias, a saber, de qualquer que for o viés, material ou simbólico, as implicações, seqüelas ou decorrências dos espetáculos midiáticos regados à violência poderão ser medidas unicamente se problematizadas pelas ciências sociais, com método e intensidade teórica.

Malgrado este ensaio nada tenha de ciência, quem sabe resquícios de pretensões sociológicas, por aqui estiveram esboços de reflexão, recheados da ambição de driblar as contingências da doxa, do conhecimento tácito – um pouco, que seja. A tragédia de Realengo pode ser vista com as lentes alheias, pode ser fruto das ações ou das estruturas, só não pode (e nem deve) originar sentimentos coletivos em favor de práticas que, está na história, contribuíram como exemplos repugnantes de intolerância fascista.

NOTAS

[1] Cf. WEBER, Max. A “objetividade” das ciências sociais. In: COHN, Gabriel. Weber (Coleção Grandes Cientistas Sociais). São Paulo: Editora Ática, 2005.

[2] Cf. BOURDIEU, Pierre. Os Usos Sociais da Ciência. São Paulo: UNESP, 2004.

[3] Cf. BOURDIEU, Pierre. A Reprodução. Rio de Janeiro: F. Alves, 1982; BOURDIEU, Pierre. Los Herederos: Los Estudiantes y La Cultura. Buenos Aires: 2002.

[4] Cf. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010; BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas. São Paulo: Papirus, 1996; BOURDIEU, Pierre. A Distinção. Porto Alegre: Zouk, 2008; CORCUFF, Philippe. As novas sociologias: construções da realidade social. São Paulo: Edusc, 2001.

[5] Cf. FISCHER, Rosa Maria Bueno. O dispositivo pedagógico da mídia: modos de educar na (e pela) TV. Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 151-162, jan./jun. 2002.

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sexta-feira, 1 de abril de 2011

Sobre uma difícil despedida parcial

Quando nascemos, não temos a menor noção do que vai acontecer nas nossas trajetórias. Ao menos de minha parte, a vida sempre foi assim, até que chegasse o momento em que tivesse de optar por uma forma de se manter vivo no mundo, ou seja, trabalhar.

Nesse instante, que para alguns chega antes, para outros depois, me dei conta de que não sabia o que me daria prazer, não fazia ideia de qual ofício me satisfaria e realizaria meus anseios mais pessoais. No entanto, havia mesmo assim a necessidade de caminhar por algum caminho, sob o risco das dificuldades baterem de uma vez por todas à minha porta.

Sempre tive muitas oportunidades na vida. Meus pais se dedicaram, estudaram e se tornaram trabalhadores qualificados, com curso superior. Eles não eram, nem são, e creio que nem virão a ser proprietários de algum negócio, patrões no sentido popular dado ao posto que estou me referindo. Embora durante algum período meu pai tenha tentado a sorte criando uma microempresa de reformas e construções, o desenrolar dos acontecimentos o fez retornar ao assalariamento.

No colégio, não era muito afeito aos estudos, da quinta série ao terceiro ano, pelo menos. A escola em que estudei oferecia uma bela estrutura material, bons professores, além de regalias que poucas pessoas podem obter. Meus pais gastavam o que tinham e o que não tinham na minha educação, endividando-se com frequência, porém sempre esperançosos que meu futuro seria pródigo, feliz.

Então a escolha profissional passou a me pressionar, já no meio da faculdade de Jornalismo, pois a convicção de que trabalhar em jornais, televisões ou coisas do gênero não era a minha praia estava consolidada. Mas fazer o quê para sobreviver?

Certo dia, no tradicional percurso da linha de ônibus T8, retornando para casa depois de uma aula de Sociologia Clássica, comecei a pensar em ser professor. Será que esse caminho poderia ser interessante? Será que eu teria capacidade para lidar com turmas de estudantes eufóricos, desmotivados, atormentados pela vida capitalista (sabendo ou não disso)? As dúvidas eram infinitamente maiores do que as respostas.

Acreditando muito no potencial da educação, certo de que o papel do professor ainda possui um valor e um significado enorme para uma vida social mais justa e fraterna, passei a me dedicar aos estudos sobre a temática. Mudei a ênfase da minha segunda faculdade para a Licenciatura, e entrei de cabeça nos debates acadêmicos sobre a educação.

Teorias, leituras, discussões, teses e ideias. Por aí as coisas foram se fortalecendo na minha cabeça, a importância da docência se tornando uma realidade, mesmo que ainda simbólica, e até certo ponto ilusória, pois não tinha nada de prática, era puramente especulativa. Os amigos mais próximos, notando minha dedicação, minha vontade, sempre incentivaram e disseram que eu ia ser bom, que eu poderia ajudar a construir algum conhecimento em conjunto com muitos estudantes. Eles, os amigos, acreditaram em mim – talvez, inclusive, mais do que eu mesmo.

O mundo das ideias é importante, entretanto sem a vida real, nesse caso a prática docente, pouco eu poderia fazer para me realizar profissionalmente e para canalizar uma ambição particular: exercer um ofício que ajude as pessoas, seja como for possível. Comecei a caçar as vagas para estagiários de docência, os famigerados contratos temporários, qualquer possibilidade de entrar numa sala de aula na figura de professor.

Nem sempre o esforço leva aos resultados que pretendemos, na medida em que as sociedades capitalistas contemporâneas possuem traços de desigualdade difíceis de serem combatidos apenas com a iniciativa individual. Por outro lado, sem dedicação tudo se mostra mais complexo e complicado, tudo vira quase impossível.

Nesse percurso, me classifiquei, pela primeira vez na vida, em primeiro lugar num processo seletivo. Fiquei liderando a lista dos que buscavam uma vaga para professor contratado emergencialmente no Estado para os municípios de Eldorado do Sul e Barra do Ribeiro durante uns bons 6 meses. Lindo, maravilhoso, excelente. Mas ninguém nunca me ligava dizendo: “venha, vamos trabalhar, venha ser professor!”.

Numa noite cotidiana, pensando sobre a vida com a minha linda namorada, companheira de anos, um número estranho fez tocar meu telefone celular. Ao atender, dialoguei e recebi a tão esperada notícia. Estavam, enfim, me dando uma oportunidade de experimentar todas as minhas teorias e convicções, de me tornar professor.

Não pensei duas vezes, apesar da referida ligação ter me chamado para a cidade mais distante entre as quais eu havia me classificado. Seriam 15h semanais, para ministrar Geografia e História, em duas escolas, na Barra do Ribeiro. “Dane-se”, pensei, vou aceitar sem nenhuma restrição. Pro diabo o salário baixo, os pedágios caros, a ausência de ônibus para voltar para casa, o desconhecimento completo do meu novo local de trabalho.

Me atirei de cabeça, mais uma vez. No primeiro dia, conhecendo a escola em que teria mais horas de trabalho, os olhares desconfiados dos servidores e dos próprios estudantes pareciam dizer: “não acredito, esse mané vai ser o professor tão aguardado?”. Aguardado, pois cheguei no dia 4 de maio de 2009, e várias turmas precisavam do meu trabalho.

Como sempre, vestia calças largas, camisetas compridas, permanecia de barba e tudo mais que constitui a minha pessoa, características as quais jamais fiz a mínima questão de ocultar. Tampouco minha postura ideológica e teórica no campo das análises sociológicas, jamais escondi. Nunca vou esquecer do dia em que entrei na sala de aula lá de baixo, para ministrar a primeira aula de História de 2009 para a turma T6 do EJA. Era minha primeira experiência docente, e será sempre inesquecível.

Aos poucos, fomos estabelecendo uma rotina, alunos, servidores e eu, mais novo professor do planeta. Com 24 anos de idade, havia me tornado um trabalhador em educação. Certo dia, aproximadamente um mês depois de já estar trabalhando, me telefonaram da coordenadoria de educação me oferecendo 30h semanais em Eldorado do Sul. Ganharia o dobro, não pagaria pedágio, estaria a 15min de casa.

Meus amigos, a vida não é feita só de dinheiro, racionalidade ou pragmatismo. Eu já fazia parte da Barra, ela já estava dentro de mim, e por óbvio, neguei a oferta. Permaneci na Barra até o dia primeiro de abril de 2011, fatídica e triste data em que me despeço, espero que temporariamente.

Nesse espaço de tempo, fiz mais do que verdadeiros amigos, tive mais do que excelentes “chefes” e colegas de trabalho. Nesses dois anos letivos, aprendi a ser professor. Aprendi a amar a educação na prática, no dia a dia desgastante e pouco reconhecido do professor de escola pública. Enfim, concretizei um sonho, e um anseio se tornou realidade.

Hoje, saio da Barra oficialmente, mas deixo uma parte fundamental da minha história. Vocês todos me fizeram professor, me fizeram acreditar que os sonhos são possíveis e devem sim ser postos na prática. Educar pode e vai, um dia, dar certo. Educar é a base de uma sociedade mais interessante, mesmo que não seja a única coisa a se fazer. Por favor, nunca desistam dos seus sonhos. Vocês me ensinaram isso. Todos vocês. Não demora, nos reencontraremos. Tâmo junto até o fim!