Bernardo Caprara*
Janine Prandini Silveira**
Nem sempre garfos foram utilizados à mesa na sociedade ocidental. O lenço difundiu-se com vasta abrangência pelos diferentes estratos da sociedade somente por volta do século XVIII. Até então, como os indivíduos faziam para limpar bocas e narizes? E como eram suas condutas à mesa? Dessas e outras questões aparentemente irrelevantes, o sociólogo alemão Norbert Elias consegue extrair sentido, ao abordá-las sob um enfoque analítico longitudinal, procurando as minúcias dos hábitos cotidianos no curso da História do Ocidente. O problema de que trata Elias em “O processo civilizador”, cuja primeira edição data de 1939, parte da percepção de que os indivíduos ocidentais nem sempre se comportaram da maneira que chamamos de “civilizada”. Por que aconteceu essa transformação nas condutas dos seres humanos? Sobre o que versa esse tal processo civilizador? Como ele acontece? Nesse livro, Elias nos fornece algumas respostas a essas questões.
A obra é divida em dois volumes. O primeiro volume, do qual falaremos nessa resenha, recupera a percepção da existência de um processo de mudança na maneira como o indivíduo se comporta e se sente após a Idade Média. O segundo volume aborda, conforme consta no prefácio da primeira edição e no prefácio da edição de 1968 (apêndice da publicação brasileira), as causas do processo civilizador, das transformações ocorridas em longo prazo na estrutura da sociedade ocidental, focando o desenvolvimento dos Estados nacionais e o seu efeito na mudança da estrutura psíquica do ser humano ocidental. Este volume também contém o “Esboço de uma teoria da civilização”, no qual o autor formula explicitamente o que já tinha sido sugerido pelo estudo de documentos históricos feito no decorrer do livro, de que há “[...] possíveis ligações entre a mudança a longo prazo nas estruturas da personalidade no rumo da consolidação e diferenciação dos controles emocionais, e a mudança a longo prazo na estrutura social com vistas a um nível mais alto de diferenciação e integração...” (p. 216).
No primeiro volume, Elias utilizou um extenso material documental (livros de etiqueta, tratados de boas maneiras), do século XIII ao século XIX, relevantes para observar as mudanças ocorridas no padrão do que a sociedade exige e proíbe no tocante à conduta dos indivíduos, para demonstrar o caráter processual, historicamente construído do que hoje denominamos de comportamento civilizado. A relevância da análise destes livros para o estudo de Elias está, portanto, no que eles revelam sobre o que eram consideradas boas maneiras, ou seja, as regras ligadas ao padrão de conduta que esses livros tinham a intenção de cultivar – já que eles próprios eram instrumentos de condicionamento –, e no que revelam sobre as maneiras socialmente aceitas em outras épocas, mas então condenadas por eles.
Logo no capítulo 1, Elias consegue mostrar as conexões existentes entre a estrutura social e os costumes dos indivíduos de determinadas configurações sociais, explicitando o que chama de sociogênese dos conceitos de “civilização” e “cultura”, e os significados expressados por esses termos na Alemanha e na França. Explora, ainda, a diferença que o conceito de civilização adquire para franceses e ingleses, por um lado, e para alemães, por outro. Enquanto para os primeiros, os franceses, o termo civilização expressa o orgulho que possuem do desenvolvimento de suas nações (referentes a fatos políticos, econômicos, científicos, sociais, à “civilização” das maneiras e dos costumes), e por seu papel para o progresso da humanidade, para os alemães, o significado de civilização está vinculado a ideias de superficialidade, de aparência externa dos seres humanos. Na Alemanha, é o conceito kultur que expressa o orgulho dos alemães por suas realizações, pelo valor daquilo que produzem em matéria de arte, filosofia, literatura. O conceito de kultur expressa a individualidade de um povo, delimita as diferenças, a identidade nacional de uma nação; em contrapartida, o de civilização minimiza as diferenças entre povos, porque é tomado como algo comum aos seres humanos. Nesse sentido, o termo kultur expressa as peculiaridades histórico-políticas da Alemanha, isto é, a necessidade de estar incessantemente construindo um sentido político e espiritual, uma identidade nacional, em decorrência de uma tardia unificação política e consolidação de fronteiras. Já nações como Inglaterra e França, que tiveram suas identidades nacionais estabelecidas há mais tempo, encontraram, no lema da civilização, a justificativa para sua tendência expansionista e colonialista.
Para demonstrar a origem das discussões que propõe, Elias analisa trechos de obras da literatura alemã evidenciando as diferenças existentes nos costumes, nos gostos, na vida afetiva, nos ideais e aspirações da aristocracia cortesã e da intelligentsia de classe média na Alemanha. Entre essas obras, está a de Frederico, o Grande, rei da Prússia, em que fica evidenciado o olhar crítico de um representante da aristocracia, que como marca de distinção falava francês e não alemão. Entretanto, é dos livros de representantes da burguesia do século XVIII (Goethe, Schiller, Lessing), a intelligentsia de classe média, que Elias retira a maior parte dos exemplos deste capítulo, por ilustrarem como esse pequeno estrato da sociedade alemã via as diferenças da estrutura e da vida da classe média e da classe superior cortesã. Nesses livros, aparece a autoimagem da intelligentsia, que falava e escrevia em alemão, o seu orgulho pela erudição, pela formação intelectual, pelo enriquecimento interno individual. Essa autoimagem se contrapunha a imagem que tinham sobre a vida da aristocracia cortesã, sua etiqueta, seu decoro, o controle das emoções, vistos como superficialidade, falsidade, polidez de fachada. Conforme Elias, dessa tensão entre a intelligentsia alemã e a aristocracia cortesã, sobretudo no que diz respeito a questões comportamentais, surgiria uma antítese entre os conceitos de kultur e zivilisation, já que as ideias expressas pelo conceito de kultur refletiam a autoimagem da intelligentsia alemã em contraste com a imagem que faziam da aristocracia de corte.
O prosseguimento do texto expõe a sociogênese do conceito de civilisation na França. Diferente do que aconteceu na Alemanha, onde a aristocracia era bastante fechada ao acesso de outros grupos, e a intelligentsia excluída das questões políticas, a intelligentsia francesa e outros grupos da classe média foram relativamente atraídos para os círculos da corte e para a vida política. O contato com o meio cortesão possibilitou muito cedo na França uma identificação dos costumes dos grupos burgueses e da aristocracia cortesã. O conceito de civilisation gestado pela intelligentsia francesa não expressa, como o conceito de kultur na Alemanha, um ataque às características humanas da classe superior, mas se refere às ideias e as aspirações da intelligentsia francesa de promover uma reforma política, econômica e social na França. O conceito de civilisation vai, portanto, além dos termos politesse e civilité, então utilizados pelos membros da corte, que expressavam o refinamento de maneiras e distinguiam a corte do restante da população. Civilisation expressa a ideia de um processo em andamento, de que uma reforma era necessária para que a “falsa civilização” se transformasse numa autêntica. Nessa linha, quando o antigo regime foi derrubado, os costumes e os hábitos cortesãos, incorporados pela intelligentsia e por outros grupos burgueses se mantiveram.
Tanto na Alemanha quanto na França, os termos kultur e civilisation, respectivamente, que em um primeiro momento eram expressão das ideias burguesas frente à aristocracia no conflito social interno, passaram a sintetizar a imagem nacional dessas duas nações quando da transformação desses grupos burgueses em classes dominantes. Kultur passa a expressar uma identidade nacional, as especificidades, a individualidade do povo alemão em contraste com outras nações. O conceito civilisation, por sua vez, é usado pelos franceses como justificativa às suas aspirações de expansão nacional e colonização, perdendo um pouco seu caráter de processo, para expressar uma característica intrínseca do povo francês, um “povo civilizado” e, por isso, superior a outras nações as quais teriam a missão de transmitir a “civilização”.
É no segundo capítulo do livro que Elias mostra, com a exposição de uma série de exemplos retirados de documentos de experiência histórica, a transformação do comportamento humano, a elevação do patamar de vergonha e embaraço, na direção de um maior controle das emoções, ocorrido na sociedade ocidental a partir da Idade Média. Elias faz referência principalmente ao tratado para a educação de crianças “De civilitate morum puerilium” (Da civilidade em crianças), de Erasmo de Rotterdam, como um indicador do processo civilizador em andamento, por ter sido escrito em 1530, uma época de declínio da nobreza guerreira do feudalismo e da formação de uma nova aristocracia das cortes absolutistas. Em outras palavras, era um momento em que se dava a formação de um novo espaço social, com uma nova estrutura de relações entre os indivíduos e grupos no sentido de uma maior interdependência e que, portanto, exigia um novo padrão de conduta, uma nova modulação das estruturas de personalidade.
Norbert Elias passa a expor como as estruturas das relações sociais na Idade Média não compeliam os indivíduos a controlar suas emoções, sua agressividade ou a abster-se de suas funções corporais na frente de outras pessoas. Não obstante, é válido salientar que o autor traça um cenário do medievo em que reinam a incerteza e a insegurança, embora as explosões de violência e agressividade aparecessem repentinamente, quando sorrisos e diversões dariam lugar a frases mal colocadas, originando o estopim de um subseqüente conflito físico. No entanto, os padrões de comportamento vigentes não excluíam do convívio social (nem ao menos no nível simbólico) os sujeitos que assim procediam, assertiva que oferece calçamento ao já explicado, constituindo a crueldade e a violência dimensões da vida social corriqueiras. Com a centralização do poder nas monarquias absolutistas, e uma vida de maior interdependência entre os elementos das cortes, a moderação e o controle dos impulsos tornaram-se necessários para convivência, bem como um sinal de distinção dessa elite social. Nesta época, a restrição dos impulsos encerrava uma razão social, já que ela somente era recomendada na presença de indivíduos com posição superior ou igual na hierarquia social, e a justificativa dada a essa forma de conduta era por ela ser “fina”, ou “cortês” até aproximadamente o século XVI, e por consideração social (não causar embaraços às outras pessoas) como sinal de “civilidade” a partir do século XVI até aproximadamente o século XVIII. Com a flexibilização da hierarquia social, e a elevação da interdependência social, por volta do século XIX, uma vergonha que antes era sentida apenas na presença de indivíduos de posição superior ou igual, vai perdendo essa referência social e começa a ser sentida como um autocontrole natural, manifestando-se até mesmo na ausência de outras pessoas. O controle das emoções instigado por razões sociais pelas estruturas da vida social na corte, e que acaba se difundindo pela sociedade como um todo, condiciona o comportamento a tal ponto que ocorre uma mudança nas estruturas de personalidade dos indivíduos, elevando o patamar de vergonha e embaraço e transformando o controle exercido, anteriormente por coação externa, em uma espécie de autocontrole. Quando a classe burguesa torna-se governante, a família nuclear passa a ser a principal instituição de controle e condicionamento das crianças ao padrão socialmente aceito.
Na verdade, [a limitação dos instintos] é cultivada desde tenra idade no indivíduo, como autocontrole habitual, pela estrutura da vida social, pela pressão das instituições em geral, e por certos órgãos executivos da sociedade (acima de tudo, pela família) em particular. Por conseguinte, as injunções e proibições sociais tornam-se cada vez mais partes do ser, de um superego estritamente regulado (p. 186-187).
Séries de exemplos, retirados de livro de boas maneiras, ilustram e evidenciam o que é chamado pelo autor de “curva de civilização” e elevação do patamar de vergonha e repugnância. Num trecho do tratado de Erasmo para a civilidade de crianças, do século XVI, são evidentes as mudanças ocorridas nas atitudes em relação às funções corporais, quando, em uma época em que era costume as pessoas urinarem ou defecarem na presença de outras, caracterizava-se como um sinal de delicadeza não conversar e não cumprimentar as pessoas que estivessem nessa situação. Com relação ao hábito de assoar-se, o livro nos traz a informação de que, na sociedade medieval, era comum limpar o nariz com as mãos, bem como usar as mãos para comer numa travessa em comum com outras pessoas. Assim, por consideração aos outros com quem se estava comendo, ao embaraço e ao sentimento desagradável que podia lhes causar, passou a ser recomendado, como sinal de cortesia, que se limpasse o nariz com uma mão e pegasse a carne com outra. O tratado de Erasmo já faz referência ao uso de um pano para limpar o nariz e orienta para virar-se para o lado na presença de pessoas de posição social superior. O lenço, nessa época, assim como o garfo, era artigo de luxo, indicador de prestígio social e marca de distinção. Segundo Elias, foi apenas no século XVIII que o uso do lenço tornou-se generalizado na sociedade ocidental, e, por conseguinte, o uso das mãos para limpar o nariz passou a provocar sentimentos de nojo, sendo considerado sinal de má educação. As mudanças no modo como a carne é servida também são exploradas por Elias para mostrar a transformação no padrão de nojo. Nas classes superiores medievais, os animais eram levados à mesa inteiros. Por isso, até mais ou menos o século XVII, os livros de boas maneiras traziam sugestões e regras de como fazer o trinchamento da carne corretamente. O desaparecimento deste costume é explicado por razões de caráter social (refeições realizadas na família nuclear e diminuição do número de membros da mesma, especialização de atividades profissionais como açougueiros, abatedouros) e razões de caráter psicológicos: elevação do padrão de nojo e repugnância.
A partir de um padrão de sentimentos segundo o qual a vista e trincho de uma animal morto à mesa eram coisas realmente agradáveis, ou pelo menos não desagradáveis, o desenvolvimento levou a outro padrão pelo qual a lembrança de que o prato de carne tem algo a ver com o sacrifício animal é evitada a todo custo. [...] O ato de trinchar, conforme demonstram os exemplos, outrora constituiu parte importante da vida social da classe alta. Depois, o espetáculo passou a ser julgado crescentemente repugnante (p. 127-128).
Dessa forma, o repugnante, as funções corporais e também a sexualidade são removidas para o fundo da vida social. Trata-se de uma tendência do processo civilizador privatizar, tornar íntimas, pelo inculcamento de sentimentos de vergonha, nojo, medo e culpas, condutas que outrora publicamente eram aceitas.
Com o processo civilizador, a discrepância entre o padrão de conduta de crianças e adultos torna-se maior. Se, na Idade Média, as crianças participavam da mesma esfera social que adultos e o que era exigido dos adultos não divergia muito daquilo que as crianças faziam; no início do século XX (época da elaboração deste livro), as crianças “[...] têm no espaço de alguns anos que atingir o nível avançado de vergonha e nojo que demorou séculos para se desenvolver” (p. 145). Portanto, para Elias, a educação, a socialização das crianças é o próprio processo sócio-histórico (sociogênese) de séculos acontecendo na vida de cada ser humano individual (psicogênese).
Com efeito, processo civilizador seria, sobretudo, uma transformação de estruturas individuais, o que está em perfeita consonância com sua concepção de sociedade como “sociedade dos indivíduos”. Em seu prefácio para a edição de 1968, Elias critica a forma como esses conceitos (indivíduo e sociedade) foram tratados pelas ciências sociais seja pela concepção de sociedade como a simples soma de indivíduos, seja pela explicação da sociedade como uma totalidade para além dos indivíduos, pois essas definições acabam separando aquilo que ele julga aspectos inseparáveis dos seres humanos. A sociedade seria uma configuração (de caráter flexível, dinâmico e mutável), uma rede de interdependências que liga os seres humanos. O indivíduo, portanto, cumpriria o papel de um ser que tem a sua vida orientada para e pelas outras pessoas, estando longe de ser soberano, independente, auto-suficiente, pois no decorrer do processo civilizador as estruturas dos seres humanos individuais são mudadas em uma determinada direção. No livro “O Processo Civilizador: uma história dos costumes”, Elias consegue mostrar, pela análise de documentos da experiência histórica (portanto, com evidência empírica) que as estruturas de personalidade e as estruturas sociais se desenvolvem em uma “inter-relação indissolúvel”, que as mudanças nas estruturas de personalidade ocorre em conjunto com as mudanças nas configurações sociais. Fica a curiosidade de entender como Elias explica as causas das mudanças na estrutura da sociedade ocidental e sua influência na transformação dos padrões de comportamento e constituição psíquica dos povos do ocidente, assim como seu “Esboço de uma teoria de civilização”, aspectos abordados no segundo volume do livro.
* Bernardo Caprara é Sociólogo e Professor.
** Janine Prandini Silveira é Socióloga e Professora.
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** Janine Prandini Silveira é Socióloga e Professora.
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