Por Daniel Andrade
Sociologia FGV/São Paulo
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O neoliberalismo é um conceito polêmico. Desde o Colóquio Walter Lippmann (1938) e da primeira reunião da Sociedade de Mont Pèlerin (1947), a formulação designou, entre seus partidários, mais um campo de debate do que propriamente um consenso. Ordoliberais de Freiburg, Escola Austríaca, Escola de Chicago e representantes da London School of Economics e da Manchester School compartilhavam a mesma utopia de livre mercado e a mesma posição contrária ao intervencionismo econômico e ao planejamento estatal centralizado (keynesiano, socialista ou desenvolvimentista), mas não tinham opinião comum sobre o papel legítimo do Estado, sobre as diretrizes de política econômica ou sobre a experiência fracassada do laissez-faire do século XIX (Peck, 2010). A dimensão polêmica do termo ganhou nova roupagem com as reformas liberalizantes de Pinochet no Chile em 1978. A partir de então, o conceito passou a ser adotado quase que exclusivamente por seus críticos para designar pejorativamente a onda de desregulamentação dos mercados, de privatização e de desmonte do Estado de bem-estar ao redor do mundo (Boas & Gans-Morse, 2009; Venugopal, 2015). Diante da virada infamante, seus adeptos abandonaram a designação no mesmo momento em que a visão neoclássica se convertia na nova ortodoxia econômica, não havendo mais a necessidade estratégica de nomear a própria posição, mas de naturalizá-la (Hilgers, 2011; Boas & Gans-Morse, 2009).
Na década de 1990, o conceito depreciativo se estendeu para além de um modelo de política econômica, passando a designar uma ampla série de fenômenos políticos, ideológicos, culturais e espaciais e, por fim, a própria época, convertendo-se no termo pelo qual a sociedade contemporânea se apresenta a si mesma (Venugopal, 2015; Haber, 2013: 127). Sua difusão estendeu-se aos movimentos sociais e às lutas anticapitalistas, como os Zapatistas, os Gatherings for Humanity and Against Neoliberalism, as greves francesas de 1995 e os movimentos altermundialistas, tornando-se popular entre a militância internacionalmente (Brenner & Theodore, 2002: 352). É assim que o termo deixou de designar um debate entre economistas para ser utilizado apenas por seus críticos, muitos não economistas nem acadêmicos, ganhando um uso cada vez mais amplo e vago.
Foi somente a partir dos anos 2000 que a polêmica ao redor do neoliberalismo se requalificou academicamente, com cientistas sociais de diferentes especialidades se esforçando por oferecer definições mais precisas. Além das contribuições de Pierre Bourdieu, Loïc Wacquant e David Harvey, o debate se renovou com a publicação póstuma do curso de Michel Foucault intitulado Naissance de la biopolitique (2004). A partir de então, mesmo mantendo uma postura crítica, todo um trabalho foi realizado no sentido de definir o conceito ou por relação à sua doutrina teórica, enfatizando as principais escolas e pensadores, a proveniência e a trajetória das ideias e o contexto e as circunstâncias em que emergiram (Mirowski & Plehwe, 2009; Peck, 2008), ou por relação ao chamado “actually existing neoliberalism”, destacando sua implementação prática, seus fenômenos, suas estratégias, suas esferas de atuação e dinâmicas (Brenner & Theodore, 2002; Dardot & Laval, 2009; Wacquant, 2012). Por fim, o último impulso veio com a crise financeira de 2008, que recolocou politicamente a questão dos limites, da continuidade e das alternativas ao neoliberalismo (Duménil & Lévy, 2014; Peck, Theodore & Brenner, 2012a; 2012b; Mirowsky, 2013; Davies, 2014; Dardot & Laval, 2014).
O objetivo deste artigo é apresentar esse recente debate das ciências sociais sobre a pertinência e a definição de neoliberalismo. As questões sobre a validade do conceito, de seu embasamento teórico, do nível adequado de análise e dos fenômenos que ele designa estão no centro dessa disputa ao mesmo tempo acadêmica e política. Defendo a reabilitação do conceito pelas ciências sociais brasileiras devido à sua importância como saber estratégico. Ele tem o potencial de desfazer o isolamento acadêmico, pois atravessa diferentes disciplinas (sociologia, antropologia, ciência política, economia, geografia, história e filosofia), e de dialogar com as lutas sociais, sendo um termo utilizado por movimentos e atores políticos para identificar seus alvos.
Ainda que o tema do neoliberalismo interesse a diferentes disciplinas, retoma-se aqui o debate reagrupando-o a partir da perspectiva das principais teorias sociológicas. Não há a pretensão de esgotar a bibliografia recente, até mesmo pela impossibilidade resultante de sua profusão. Busca-se apenas apresentar os textos mais centrais no cenário atual.
O artigo se estrutura do seguinte modo. Na primeira parte, expõe-se a polêmica a respeito da validade do conceito, procurando apresentar e responder aos principais argumentos contrários ao seu uso pelas ciências sociais. Na segunda parte, apresentam-se os dois principais eixos de análise. Primeiro eixo, aquele que oferece definições da “essência” do neoliberalismo, ou seja, os elementos centrais que o caracterizam do ponto de vista teórico e dos fenômenos designados. A exposição é agrupada conforme as teorias sociológicas que tratam do tema: foucaultiana, marxista, bourdieusiana e weberiana. Segundo eixo, as discussões a respeito da existência não de um, mas de múltiplos neoliberalismos, que deslocam o nível de análise ao enfatizar a irredutibilidade geográfica e histórica de seus processos. As abordagens teóricas aqui também são diversas: o pós-colonialismo, o neorregulacionismo e o hibridismo governamental. Na conclusão, retoma-se o argumento em favor da utilização estratégica do conceito, sem ignorar as divergências políticas que as diferentes teorias implicam.
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Foi somente a partir dos anos 2000 que a polêmica ao redor do neoliberalismo se requalificou academicamente, com cientistas sociais de diferentes especialidades se esforçando por oferecer definições mais precisas. Além das contribuições de Pierre Bourdieu, Loïc Wacquant e David Harvey, o debate se renovou com a publicação póstuma do curso de Michel Foucault intitulado Naissance de la biopolitique (2004). A partir de então, mesmo mantendo uma postura crítica, todo um trabalho foi realizado no sentido de definir o conceito ou por relação à sua doutrina teórica, enfatizando as principais escolas e pensadores, a proveniência e a trajetória das ideias e o contexto e as circunstâncias em que emergiram (Mirowski & Plehwe, 2009; Peck, 2008), ou por relação ao chamado “actually existing neoliberalism”, destacando sua implementação prática, seus fenômenos, suas estratégias, suas esferas de atuação e dinâmicas (Brenner & Theodore, 2002; Dardot & Laval, 2009; Wacquant, 2012). Por fim, o último impulso veio com a crise financeira de 2008, que recolocou politicamente a questão dos limites, da continuidade e das alternativas ao neoliberalismo (Duménil & Lévy, 2014; Peck, Theodore & Brenner, 2012a; 2012b; Mirowsky, 2013; Davies, 2014; Dardot & Laval, 2014).
O objetivo deste artigo é apresentar esse recente debate das ciências sociais sobre a pertinência e a definição de neoliberalismo. As questões sobre a validade do conceito, de seu embasamento teórico, do nível adequado de análise e dos fenômenos que ele designa estão no centro dessa disputa ao mesmo tempo acadêmica e política. Defendo a reabilitação do conceito pelas ciências sociais brasileiras devido à sua importância como saber estratégico. Ele tem o potencial de desfazer o isolamento acadêmico, pois atravessa diferentes disciplinas (sociologia, antropologia, ciência política, economia, geografia, história e filosofia), e de dialogar com as lutas sociais, sendo um termo utilizado por movimentos e atores políticos para identificar seus alvos.
Ainda que o tema do neoliberalismo interesse a diferentes disciplinas, retoma-se aqui o debate reagrupando-o a partir da perspectiva das principais teorias sociológicas. Não há a pretensão de esgotar a bibliografia recente, até mesmo pela impossibilidade resultante de sua profusão. Busca-se apenas apresentar os textos mais centrais no cenário atual.
O artigo se estrutura do seguinte modo. Na primeira parte, expõe-se a polêmica a respeito da validade do conceito, procurando apresentar e responder aos principais argumentos contrários ao seu uso pelas ciências sociais. Na segunda parte, apresentam-se os dois principais eixos de análise. Primeiro eixo, aquele que oferece definições da “essência” do neoliberalismo, ou seja, os elementos centrais que o caracterizam do ponto de vista teórico e dos fenômenos designados. A exposição é agrupada conforme as teorias sociológicas que tratam do tema: foucaultiana, marxista, bourdieusiana e weberiana. Segundo eixo, as discussões a respeito da existência não de um, mas de múltiplos neoliberalismos, que deslocam o nível de análise ao enfatizar a irredutibilidade geográfica e histórica de seus processos. As abordagens teóricas aqui também são diversas: o pós-colonialismo, o neorregulacionismo e o hibridismo governamental. Na conclusão, retoma-se o argumento em favor da utilização estratégica do conceito, sem ignorar as divergências políticas que as diferentes teorias implicam.
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