ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

terça-feira, 25 de outubro de 2011

O Estado no seu lugar de Estado





Bernardo Caprara


Sociólogo e Jornalista




O sociólogo francês Guy Hermet, doutor honoris causa pela Universidade Complutense de Madrid, introduz suas considerações sobre a relação das novas democracias com as grandes agências internacionais de todo o tipo, referindo o objetivo geral do artigo intitulado “A democratização dos países emergentes e as relações entre o Estado, as OIGs e as ONGs”.





Para o autor, tais organismos internacionais (ONU, ONGs, instituições financeiras) precisam frear suas contribuições para “[...] a implementação de uma governança planetária que faça pouco caso do papel a reservar, neste âmbito, a jovens Estados recém-democratizados, devido às suas imperfeições e seu desempenho discutíveis” (HERMET, 2002, p. 33). Nos seus horizontes, quatro tópicos foram desenvolvidos no desenrolar do texto: 1) as democratizações recentes não trouxeram muitas mudanças no que concerne ao envolvimento cívico das suas populações; 2) a ideia de que nessas nações as melhorias na economia, na política e na própria sociedade só poderão derivar dos recursos das próprias nações; 3) as agências externas, não obstante, não devem deixar o Estado em segundo plano, distribuindo suas atribuições entre ONGs ou para a iniciativa privada, tidas como mais seguras do que ele; 4) e, por fim, justamente ao inverso, os agentes de fora podem interpelar o Estado a concretizar suas funções e portar-se realmente como um Estado.





Guy Hermet entende que é importante, na atualidade, salientar que nas democracias emergentes (na América Latina em particular) a tentação militarista se dissipou, e o regime político consolida-se sob as rédeas de civis. Por este prisma ele também concebe como uma mudança capital a tendência dos povos dessas regiões a demonstrarem preferência pela democracia. No entanto, em contraste, preocupa pensar que os novos governos democráticos não conseguem resolver suas mazelas e tampouco legitimar sua autoridade por intermédio de ações eficazes. É certo que eles tiveram que “[...] enfrentar o desafio suplementar de não dispor dos instrumentos políticos e administrativos que poderiam assisti-los nessa tarefa” (HERMET, 2002, p. 36).





Na medida em que os resultados insatisfatórios das democracias emergentes se apresentam, é possível compreender uma espécie de volatilidade das vitórias nas eleições latino-americanas. De pleito em pleito, as coisas recomeçam do princípio, e na visão de Hermet, as maiorias reaplicam suas confianças nos líderes heroicos vigentes no momento. Após os fracassos, as massas os rejeitam, numa atitude impulsiva. A tudo isso, soma-se “[...] um declínio pronunciado das estruturas associativas voluntárias que se tinham desenvolvido à margem dos partidos na época dos regimes militares” (HERMET, 2002, 37).







Os Estados, por sua vez, não devem ser assimilados como atores deficientes por completo, e assim nada confiáveis na comparação com os demais atores da governança global, as organizações internacionais ou intergovernamentais e as ONGs. Se os Estados se comportarem dessa maneira, o risco de doutrinas e procedimentos tão paternalistas quanto autoritárias (mais até do que aqueles do funcionalismo estatal) se instalarem seria pelo menos considerável. Essa possibilidade cresce com a observação de que as grandes agências internacionais tendem a cooptar os responsáveis pelas mais poderosas organizações não governamentais destinadas à proteção dos ecossistemas.







De fato, o fortalecimento das democracias em conjunto com as melhorias econômicas, sociais e culturais, principalmente na América Latina, depende do reconhecimento do lugar do Estado, sem pretensões demasiadas nem minimizadas.





Mais do que isso, elas recomendam sacudi-lo um pouco para impeli-lo a assumir seu papel de maneira apropriada ao invés de deixa-lo despojar-se de muitos de seus atributos sob o pretexto de diminuir sua carga para sobreviver. Seja onde for, de resto, o Estado não deve abster-se a ponto de se debilitar de modo irreversível, já que sua presença como parte ativa, eficiente e autônoma, impõe-se na relação triangular com as organizações internacionais e as ONGs de envergadura mundial (HERMET, 2002, p. 39).





Muitas vezes, nas recentes democracias, os promovedores estrangeiros dos grandes projetos de desenvolvimento produzem mecanismos dissimulados e inéditos de poder que reduzem a autoridade do Estado. Passam a deixá-lo de lado, e acabam agindo contrariamente à própria governabilidade dos países que pretendem prestar auxílio – ainda ferindo as suas soberanias. O exercício que se mostra evidente é complexo e desafiador, num contexto de reaprendizagem da forma democrática de governo. É imperativa a ausência das retóricas populistas, dos aparelhamentos na máquina estatal, além da presença de uma perspectiva racional e prospectiva.





De acordo com o sociólogo francês, é preciso incitar o Estado a ser Estado. Inclusive em Estados cujas feições democráticas são bastante indagáveis, com exceção das tiranias explícitas, cabe não condená-los ao ostracismo profundo, mas sim tentar reordená-los de modo a que cumpram um papel que convenha razoavelmente com suas prerrogativas.





Independente das circunstâncias, os Estados têm que preservar até um momento indeterminado o “[...] estatuto que os autoriza a reger a intervenção prática dos regimes internacionais e a propor as emendas visando a que eles não se transformem em jugos para as regiões menos avançadas do planeta” (HERMET, 2002, p. 46).



REFERÊNCIAS



HERMET, Guy. A democratização dos países emergentes e as relações com o Estado, as OIGs e as ONGs. In: MILANI, Carlos; ARTURI, Carlos; SOLINIS, Gérman (organizadores). Democracia e governança mundial. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS e UNESCO, 2002. Páginas 33-46.


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