ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 1 (16)

América do Sul, Brasil,

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Há algo além do dinheiro

Bernardo Caprara
Sociólogo e Jornalista

Viver em dias em que a competição e o dinheiro empolgam tanto, a ponto de se naturalizarem como expressão das relações sociais básicas, não é uma aventura fácil de embarcar. Parece que existe um espectro a rondar os corações e as mentes das sociedades ocidentais capitalistas contemporâneas: a sede incessante pelo lucro, pela vitória, pelo sucesso, pela fama e por todos os atributos antagônicos à derrota. Sem aprofundar essa possibilidade de interpretação da realidade social, nesse cenário o enriquecimento pode aparecer como uma fórmula mágica para a felicidade. No Brasil e em boa parte do planeta, o futebol é um esporte de competição que oferece alternativas de “sucesso” e é muito apreciado pela juventude.

Surge uma incursão pretensiosamente sociológica, embora ensaística e não fruto de pesquisa científica, com o intuito de pensar a posição de um jogador de futebol consagrado perante uma proposta milionária de um clube qualquer dos mercados secundários. Peço que reflita se é vantajoso, inteligente leitor, abandonar toda uma relação estabelecida com uma cidade, uma torcida, um clube, seus funcionários, colegas de trabalho, colegas de escola dos filhos, vizinhos, enfim, além da proximidade da sua terra natal, uma gama de qualidades para se atirar numa cruzada em território desconhecido? Os ganhos econômicos superam o reconhecimento, a liderança e veneração que o atleta inspira nos fãs, as alegrias decorrentes desse capital simbólico?

Imediatamente levantarão os que bradam por guerrear pelo “competir” incorporado enquanto sentimento social, para sentenciar que o futuro dos filhos do sujeito estará garantido com o seu enriquecimento exacerbado. Gritarão que não se pode deixar de considerar os benefícios do direito de herança, porquanto o argumento esteja fincado no futuro da prole, sob a pena de se arrepender dos fardos pecados de ensinar os seus a respeitar o outro, trabalhar pelos seus desejos ou cultivar a firmeza de caráter – com ou sem excesso material. Falo das questões da subjetividade de cada um de nós, ou do próprio jogador de futebol consagrado, em vias de tomar uma decisão importante sobre a sua vida e carreira. Essa história de pensar no futuro dos filhos, para um jogador de futebol “vitorioso”, cujo salário mensal ultrapassa os trezentos mil reais, com passagens por equipes europeias, não é senão uma defesa mascarada da acumulação, do poder econômico concentrado, da distinção e do valorizar demais uma das coisas que ajuda na conquista da felicidade, não a única. É detestável, ainda que hegemônico, o modo de pensar que insinua óbvia, diante o atleta de uma proposta milionária, já vivendo uma realidade de conto de fadas num mundo extremamente desigual, a resposta fatalista de aceitação sem nenhuma crítica reflexiva, indagação e preocupação.

Os meios de comunicação de massa, cumprindo seu papel de irresponsabilidade discursiva, faceta dominante na atualidade, reproduzem como absoluta a citada aceitação fatalista em nome do famoso “pé de meia”. Comentaristas, repórteres e jornalistas, em geral, baixam a cabeça para uma das linhas interpretativas da situação, excluindo a existência de seres humanos que, acomodados economicamente, possam selecionar uma estrada repleta de outros valores contrapostos aos mandamentos do “ficar rico, muito rico, totalmente rico”. Eis a era da desinformação. Eis a disseminação institucional dos mapas para um precipício sem volta.

Se estivermos dispostos a construir um lugar mais agradável para vivermos, não creio que o mais interessante seja endeusar o dinheiro, o lucro, a acumulação, a riqueza pela riqueza. Com isso não estou defendendo qualquer forma de abandono das relações de troca, tampouco felicitando a pobreza material. Isso está fora de cogitação. É necessário ganhar dinheiro para sobreviver numa sociedade capitalista, portanto assim o façamos. Ambicionemos justiça econômica no globo. Mas a situação que apontei como base de pretensiosa reflexão, a decisão a ser tomada pelo jogador de futebol consagrado, não contém os elementos falta de dinheiro, dificuldades de sobrevivência ou variantes disso. A pessoa em xeque está resolvida economicamente, sejamos francos e realistas. Também resolveu o futuro dos seus filhos, se fizer deles pessoas que não colocam o dinheiro num altar e se submetem aos seus ditames inapeláveis. No fundo, trata-se de uma decisão tangenciada por uma escolha de vida, de um caminho a seguir, de uma interpretação da realidade que nos cerca e contribui na nossa constituição singular e coletiva.

O mínimo que irão vociferar aqueles que sequer deixam a chance de ser possível a perspectiva aqui proposta, em resumo, é que essa abordagem do assunto é utópica e fora do seu tempo (quase ingênua!). Pode ser que seja verdade. Particularmente, gosto da palavra utopia. Ela não me passa uma sensação de que jamais vou conseguir algo; pelo contrário, ela sugere que tentar é importante, porque há esperança, sempre há esperança de fazer aquilo que acreditamos. Mesmo que esteja bastante longe. Mesmo que tudo pareça ingenuidade, está explícito que ainda vale acreditar na existência de algo importante além do dinheiro.