ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Casamento Real a ferro e fogo

Imagem retirada do sítio http://farm4.static.flickr.com/3114/2340382922_f62bbed72a.jpgAssim a monarquia britânica tratava seus súditos: a ferro e fogo

Nas últimas semanas, ao ligar a televisão, acessar os principais portais da internet, ou mesmo abrir as páginas de um jornal, tive a sensação de viver no século XV, guardadas todas as aberrações que um anacronismo como esse pode gerar. Há de convir, ilustre leitor, tamanha a referência (ou seria reverência?) dos grandes meios de comunicação ao famigerado (que ousadia!) casamento entre um descendente da monarquia britânica e uma plebeia, abstraindo um pouco, seria possível sentir-se entre castelos, cavaleiros e todos os requintes dos períodos áureos das realezas europeias.

Pois bem, quanta bobagem. Tais espúrias considerações que lancei acima carregam, entretanto, uma ponderação importante, que está diretamente vinculada à qualidade dos veículos de comunicação e percorre o fato de que esses estão mais preocupados em oferecer aos seus consumidores um entretenimento sem conteúdo do que qualquer outra coisa. Se bem que, a rigor, não se encontram grandes elementos de diversão num evento como o referido casório – a não ser nos noivos, por obviedade.

Creio ser mais relevante problematizar a inexistente faceta reflexiva da imprensa, em tempos de um jornalismo pautado pela velocidade, pelos ganhos econômicos e pela concorrência declarada. Já que não se faz nada (ou quase, para não ser injusto) de reflexão, proponho pensar um pouco sobre a realidade britânica atual e sobre o próprio caráter da sua monarquia. Do passado para o presente, assim estarão estruturados os próximos parágrafos.

É sabido que vivemos em sociedades organizadas economicamente através de relações capitalistas de produção, ou seja, nas quais existe o conflito entre capital e trabalho, além de inúmeras outras decorrências. Nos confins do século XIV, na Inglaterra, a servidão estava praticamente desaparecida, e grande parte da população vivia cultivando suas próprias terras, “[...] quaisquer que fossem os títulos feudais com os quais protegiam os seus direitos de posse”[1]. No processo de acumulação primitiva de capital, esses camponeses livres foram, gradualmente, vendo suas terras serem expropriadas, e seu modo de ganhar a vida transformado radicalmente. Não obstante, os anais da Economia Política parecem demonstrar uma caminhada tranquila, sem violência, com traços idílicos, parafraseando Marx. Quando nos debruçamos sobre a história, não é bem dessa forma que os fatos aparecem.

Para se ater ao mundo britânico, a expropriação dos cultivadores e a modificação da produção em suas terras, que se tornavam pastos e atiravam grupos de pessoas à busca pela sobrevivência (nas cidades, nas fábricas que surgiriam, vejam só!), foi acompanhada por legislações verdadeiramente sanguinárias voltadas contra os próprios expropriados. Uma pequena citação cai bem nesse momento, sintetizando alguns argumentos:

Os despojos dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do Estado, a pilhagem dos terrenos comunais, a transformação usurpadora e terrorista da propriedade feudal e mesmo a patriarcal, em propriedade privada moderna, a guerra às cabanas, foram os processos idílicos da acumulação primitiva. Conquistaram a terra para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e entregaram à indústria das cidades os braços dóceis de um proletariado sem lar nem pão[2].

Os indivíduos não se adaptaram com facilidade aos novos rumos impostos às suas vidas, ao fato de terem sido destronados das suas ocupações normais, e assim apareciam grupos de ladrões, vagabundos e mendigos. Surgiam então legislações para determinar suas novas vidas, na Inglaterra a partir de Henrique VII (opa, eis a monarquia britânica!). Essas leis começaram “suaves”, mas em Henrique VIII o cerco se fechava, e à “[...] primeira reincidência o vagabundo deve ser açoitado novamente, devendo-se-lhe cortar meia orelha; à segunda reincidência é tratado como traidor e executado como inimigo do Estado”[3]. Bastante carinho, atenção e preocupação da monarquia e seu parlamento para com seus súditos, expropriados das suas terras. Difícil entender, mas as pessoas que foram destituídas das suas terras, ao não se adequarem aos padrões forçosamente recém estabelecidos, eram julgadas pelos intitulados “Juízes de Paz” (proprietários de terras, fabricantes, pastores protestantes, todos eles investidos de jurisdição criminal) como vadios, mendigos. “A legislação os tratou como criminosos voluntários, supondo que dependia de seu livre arbítrio o continuar trabalhando como no passado e como se não tivesse sobrevindo nenhuma mudança em sua condição de existência”[4].

Vamos ao reinado de Elizabeth, 1572: mendigos deveriam ser açoitados e marcados com ferro em brasa na orelha esquerda (quão dócil!), isso se nenhum cidadão os quisesse como serviçais durante dois anos. Segue:

Sob o reinado tão maternal quão virginal de Queen Bees, enforcavam-se os vagabundos às fornadas, arrumados em longas fileiras. Não se passava nenhum ano sem que houvesse 300 ou 400 enforcados num ou noutro lugar, diz Strype em seus Anais; segundo ele, só no condado de Somersetshire contaram-se num ano quarenta executados, trinta e cinco marcados com ferro em brasa, trinta e sete açoitados e cento e trinta e oito “folgazões incorrigíveis” postos em liberdade[5].

Ora, vistas as feições delicadas da realeza britânica, por quê não comentar vagamente a situação da Inglaterra nos dias de hoje? O pós-guerra contra o nazifascismo emergiu, sob o ponto de vista econômico, permeado de contestações ao Estado de bem-estar social, aos direitos conquistados pelos trabalhadores e aos mecanismos sociais de proteção. De Hayek a Friedman, até chegar a Reagan e Thatcher, a cortina de ferro soviética era sempre apontada como o equívoco do sistema planificado, o antagonismo absurdo dos prazeres do capitalismo. Na Inglaterra, a responsável por desmontar o conjunto de sustentações do Estado aos seus cidadãos – desmonte justificado por intermédio de sentenças economicistas pouco compreensíveis à maioria da população – chamava-se Margaret Thatcher, a dama de ferro. Há tempos a monarquia não manda nada, vive às custas do povo, ostentando uma simbologia atrasada e por completo desnecessária. Thatcher implantou o neoliberalismo no seu país, atribuiu à iniciativa privada setores que outrora cabiam ao Estado e apostou no individualismo crescente como “filosofia do ser” dos habitantes contemporâneos.

Na sociologia, Anthony Giddens, respeitável intelectual, diz-se pai de uma espécie de “terceira via” entre a direita e a esquerda, deveras questionável sob os mais distintos ângulos. Tenta também resolver as querelas sociológicas que dizem respeito à preponderância do indivíduo ou da sociedade, da ação ou das estruturas, defendendo uma posição um tanto mais próxima da ação, na medida em que se foca na “reflexividade” dos agentes e na sua teoria da estruturação.

Talvez tudo isso não sirva para nada, é cabível. No entanto, tenho convicção que o “casamento real” mais apropriado para o momento da humanidade poderia advir de uma relação profunda da mídia com a reflexão. Toda sorte de parâmetros que a pautam na sociedade ocidental capitalista contemporânea, porém, destroem qualquer utopia acerca dessa possibilidade. Entretenimento como meio e fim, cada vez mais desqualificado, eis o retrato das empresas responsáveis por informar, em pleno século XXI.

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

NOTAS

1 Cf. MARX, Karl. A origem do capital – A acumulação primitiva (Coleção Bases, Economia, n. 3). São Paulo: Global Editora, 1977. Página 19.

2 Idem, página 55.

3 Idem, página 58.

4 Idem, página 57.

5 Idem, página 62.

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