ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Sobre uma difícil despedida parcial

Quando nascemos, não temos a menor noção do que vai acontecer nas nossas trajetórias. Ao menos de minha parte, a vida sempre foi assim, até que chegasse o momento em que tivesse de optar por uma forma de se manter vivo no mundo, ou seja, trabalhar.

Nesse instante, que para alguns chega antes, para outros depois, me dei conta de que não sabia o que me daria prazer, não fazia ideia de qual ofício me satisfaria e realizaria meus anseios mais pessoais. No entanto, havia mesmo assim a necessidade de caminhar por algum caminho, sob o risco das dificuldades baterem de uma vez por todas à minha porta.

Sempre tive muitas oportunidades na vida. Meus pais se dedicaram, estudaram e se tornaram trabalhadores qualificados, com curso superior. Eles não eram, nem são, e creio que nem virão a ser proprietários de algum negócio, patrões no sentido popular dado ao posto que estou me referindo. Embora durante algum período meu pai tenha tentado a sorte criando uma microempresa de reformas e construções, o desenrolar dos acontecimentos o fez retornar ao assalariamento.

No colégio, não era muito afeito aos estudos, da quinta série ao terceiro ano, pelo menos. A escola em que estudei oferecia uma bela estrutura material, bons professores, além de regalias que poucas pessoas podem obter. Meus pais gastavam o que tinham e o que não tinham na minha educação, endividando-se com frequência, porém sempre esperançosos que meu futuro seria pródigo, feliz.

Então a escolha profissional passou a me pressionar, já no meio da faculdade de Jornalismo, pois a convicção de que trabalhar em jornais, televisões ou coisas do gênero não era a minha praia estava consolidada. Mas fazer o quê para sobreviver?

Certo dia, no tradicional percurso da linha de ônibus T8, retornando para casa depois de uma aula de Sociologia Clássica, comecei a pensar em ser professor. Será que esse caminho poderia ser interessante? Será que eu teria capacidade para lidar com turmas de estudantes eufóricos, desmotivados, atormentados pela vida capitalista (sabendo ou não disso)? As dúvidas eram infinitamente maiores do que as respostas.

Acreditando muito no potencial da educação, certo de que o papel do professor ainda possui um valor e um significado enorme para uma vida social mais justa e fraterna, passei a me dedicar aos estudos sobre a temática. Mudei a ênfase da minha segunda faculdade para a Licenciatura, e entrei de cabeça nos debates acadêmicos sobre a educação.

Teorias, leituras, discussões, teses e ideias. Por aí as coisas foram se fortalecendo na minha cabeça, a importância da docência se tornando uma realidade, mesmo que ainda simbólica, e até certo ponto ilusória, pois não tinha nada de prática, era puramente especulativa. Os amigos mais próximos, notando minha dedicação, minha vontade, sempre incentivaram e disseram que eu ia ser bom, que eu poderia ajudar a construir algum conhecimento em conjunto com muitos estudantes. Eles, os amigos, acreditaram em mim – talvez, inclusive, mais do que eu mesmo.

O mundo das ideias é importante, entretanto sem a vida real, nesse caso a prática docente, pouco eu poderia fazer para me realizar profissionalmente e para canalizar uma ambição particular: exercer um ofício que ajude as pessoas, seja como for possível. Comecei a caçar as vagas para estagiários de docência, os famigerados contratos temporários, qualquer possibilidade de entrar numa sala de aula na figura de professor.

Nem sempre o esforço leva aos resultados que pretendemos, na medida em que as sociedades capitalistas contemporâneas possuem traços de desigualdade difíceis de serem combatidos apenas com a iniciativa individual. Por outro lado, sem dedicação tudo se mostra mais complexo e complicado, tudo vira quase impossível.

Nesse percurso, me classifiquei, pela primeira vez na vida, em primeiro lugar num processo seletivo. Fiquei liderando a lista dos que buscavam uma vaga para professor contratado emergencialmente no Estado para os municípios de Eldorado do Sul e Barra do Ribeiro durante uns bons 6 meses. Lindo, maravilhoso, excelente. Mas ninguém nunca me ligava dizendo: “venha, vamos trabalhar, venha ser professor!”.

Numa noite cotidiana, pensando sobre a vida com a minha linda namorada, companheira de anos, um número estranho fez tocar meu telefone celular. Ao atender, dialoguei e recebi a tão esperada notícia. Estavam, enfim, me dando uma oportunidade de experimentar todas as minhas teorias e convicções, de me tornar professor.

Não pensei duas vezes, apesar da referida ligação ter me chamado para a cidade mais distante entre as quais eu havia me classificado. Seriam 15h semanais, para ministrar Geografia e História, em duas escolas, na Barra do Ribeiro. “Dane-se”, pensei, vou aceitar sem nenhuma restrição. Pro diabo o salário baixo, os pedágios caros, a ausência de ônibus para voltar para casa, o desconhecimento completo do meu novo local de trabalho.

Me atirei de cabeça, mais uma vez. No primeiro dia, conhecendo a escola em que teria mais horas de trabalho, os olhares desconfiados dos servidores e dos próprios estudantes pareciam dizer: “não acredito, esse mané vai ser o professor tão aguardado?”. Aguardado, pois cheguei no dia 4 de maio de 2009, e várias turmas precisavam do meu trabalho.

Como sempre, vestia calças largas, camisetas compridas, permanecia de barba e tudo mais que constitui a minha pessoa, características as quais jamais fiz a mínima questão de ocultar. Tampouco minha postura ideológica e teórica no campo das análises sociológicas, jamais escondi. Nunca vou esquecer do dia em que entrei na sala de aula lá de baixo, para ministrar a primeira aula de História de 2009 para a turma T6 do EJA. Era minha primeira experiência docente, e será sempre inesquecível.

Aos poucos, fomos estabelecendo uma rotina, alunos, servidores e eu, mais novo professor do planeta. Com 24 anos de idade, havia me tornado um trabalhador em educação. Certo dia, aproximadamente um mês depois de já estar trabalhando, me telefonaram da coordenadoria de educação me oferecendo 30h semanais em Eldorado do Sul. Ganharia o dobro, não pagaria pedágio, estaria a 15min de casa.

Meus amigos, a vida não é feita só de dinheiro, racionalidade ou pragmatismo. Eu já fazia parte da Barra, ela já estava dentro de mim, e por óbvio, neguei a oferta. Permaneci na Barra até o dia primeiro de abril de 2011, fatídica e triste data em que me despeço, espero que temporariamente.

Nesse espaço de tempo, fiz mais do que verdadeiros amigos, tive mais do que excelentes “chefes” e colegas de trabalho. Nesses dois anos letivos, aprendi a ser professor. Aprendi a amar a educação na prática, no dia a dia desgastante e pouco reconhecido do professor de escola pública. Enfim, concretizei um sonho, e um anseio se tornou realidade.

Hoje, saio da Barra oficialmente, mas deixo uma parte fundamental da minha história. Vocês todos me fizeram professor, me fizeram acreditar que os sonhos são possíveis e devem sim ser postos na prática. Educar pode e vai, um dia, dar certo. Educar é a base de uma sociedade mais interessante, mesmo que não seja a única coisa a se fazer. Por favor, nunca desistam dos seus sonhos. Vocês me ensinaram isso. Todos vocês. Não demora, nos reencontraremos. Tâmo junto até o fim!