ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

quarta-feira, 8 de junho de 2011

A África sob o olhar de Paulo Visentini

Imagem retirada do sítio http://mybelojardim.com/wp-content/uploads/2009/08/Luanda-capital-de-Angola.jpg Luanda, capital de Angola, durante a noite

Resenha por Raquel B. Figueiró*

O texto de Paulo Visentini, da obra Breve História da África, que vai das páginas 141 até 157, faz parte do capítulo IV do livro A África frente à globalização, no qual foram estudados os dois primeiros subcapítulos, denominados 10. A marginalização: Conflitos, epidemias e pobreza e 11. A Reafirmação: O NEPAD, a União Africana e a Nova África do Sul. Nesse texto, o autor irá explicar, em linhas gerais e a partir de regiões da África, os principais problemas e crises que marcaram o continente no período pós-Guerra Fria e as possibilidades de afirmação e desenvolvimento do continente na atualidade.

No subcapítulo 10 o autor explica que o fim da Guerra Fria e a globalização distorceram a política africana, tanto externa como internamente, uma vez que uma série de fatores consolidou o “afropessimismo” como um conceito universal. Visentini inicia sua explicação dizendo que no norte da África o fundamentalismo islâmico avançou no Egito, Líbia, Marrocos e Argélia, se detendo na explicação desse fundamentalismo nesse último país. Ele ainda exemplifica que a instabilidade no continente também afetou os Estados do Golfo da Guiné, de modo que a Nigéria passou por vários golpes militares e ocorreram guerras civis em vários países da região (Senegal, Libéria, Serra Leoa e a guerra entre Mali, Niger, Mauritânia e Argélia contra os Tuaregues do deserto). Além disso, muitos regimes autoritários estão voltando ao poder na África, após uma breve redemocratização.

Para exemplificar esse período pós-guerra fria o autor explica os casos do fim do Apartheid e dos conflitos na África Central. Visentini elucida que os conflitos internos referentes ao fim do Apartheid se refletem ainda hoje em problemas não resolvidos, tais como: as minas terrestres, a infra-estrutura destruída e os problemas sociais da maioria negra. Entretanto, uma nova área de integração em torno da África do Sul esboça “uma maior estabilidade social e diplomática, bem como uma inserção internacional menos onerosa dessa área no movimento de globalização econômica em curso” (VISENTINI, 2007: 144).

Quanto aos Conflitos identitários e geopolítica na África Central, Visentini relembra os embates entre tutsis e hutus em Ruanda e Burundi, na região dos Lagos, que se estenderam pelo início da década de 1990, resultando num massacre de tutsis e hutus moderados em 1994. Tal processo, que foi mostrado pela mídia como um tribalismo tradicional, na verdade foi decorrência das disputas entre os dois grupos identitários referentes à organização do Estado moderno independente.

A referida disputa na região dos Lagos teve influência na queda de Mobuto e na Guerra civil do Congo/Zaire, já que o massacre de 1994 gerou um êxodo de quatro milhões de refugiados, a maioria em direção ao Zaire, país que estava fragilizado após mal sucedidas tentativas de democratização. Em 1996, ocorreu o avanço sobre o país da milícia Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo-Zaire, composta principalmente por tutsis do Zaire. Essa milícia era liderada por Laurent Kabila, negociante de marfim e ouro e associado a meios empresariais norte-americanos. Ambos fatores aliados ao não recebimento de apoio dos antigos protetores, França e Bélgica, derrocaram na queda do governo de Mobuto.

Dessa forma, o conflito na região dos lagos acabou reorganizando a correlação de forças da região. Durante a Guerra Fria, o principal país europeu a exercer influência sobre o continente era a França. Com o fim do mundo bipolar, os países que eram aliados da URSS passaram a buscar apoio nos EUA, para se posicionarem contrários a França. Em meados da década de 1990, os EUA se interessaram pelo continente africano, visando a mais um modo de pressionar a Europa a abrir espaço para as companhias americanas. Os americanos passam a exercer influência direta sobre a Etiópia, a Eritréia, Uganda, Angola e Moçambique. Após o conflito tutsi e hutu, também exerceram influência em Ruanda, Burundi e leste do Zaire e passou a haver uma nova correlação de forças e zonas de influência no continente africano entre EUA e França.

No outro subcapítulo analisado, 11. A reafirmação: o NEPAD, a União Africana e a Nova África do Sul, o autor traça um panorama sobre as atuais formas de organização e integração existentes no continente, analisando quatro aspectos. No primeiro, denominado Conflitos africanos com soluções africanas, ele traça uma análise de como vários conflitos estão se desencadeando tendo como protagonistas os próprios governos africanos, a partir de quatro “soluções africanizadas”. Primeiro, principalmente, nos Estados do Golfo da Guiné e da África Ocidental os conflitos se mantém, como nos casos de Guiné-Bissau, Libéria, Serra Leoa e Nigéria. Todos esses conflitos agravam as tensões locais e causam “uma espécie de ‘privatização’ da política e da violência armada, em meio a todo o tipo de tráfico, particularmente o de drogas, que tem crescido na África” (VISENTINI, 2007: 148).

A segunda “solução africanizada” seria um retrocesso da implantação do processo democrático que se iniciou com a queda do muro de Berlim e o retorno de regimes autoritários de esquerda ao poder. Países como República Democrática do Congo e Zimbábue passariam por esse processo. Outra “solução” seria uma trégua em diversos conflitos, como os que ocorriam em: Eritréia e Etiópia, Somália, Burundi, Saara Ocidental, Angola e República Democrática do Congo. A quarta “solução” apontada pelo autor seria a emergência da África do Sul como nova liderança africana.

Um segundo aspecto relativo às formas de organização e integração do continente africano consistiria n'A rearticulação da África Austral, a União Africana e o NEPAD. A África Austral organiza-se desde 1992 em torna da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC). Essa organização, assim como a União Africana e o NEPAD, tem a África do Sul como importante presença para o seu funcionamento. A Nova Parceria Econômica para o Desenvolvimento (NEPAD) é um programa que visa dar base material para as políticas da União Africana e para integração do continente. Com efeito, apesar dos problemas de ordem econômica e social e do avanço de epidemias devastadoras, “a África, lentamente, vai se reafirmando e recuperando certo poder de barganha [...]. A liderança sul-africana e o retorno da Líbia ao cenário regional são elementos importantes, ao lado da afirmação das organizações multilaterais regionais e continentais” (VISENTINI, 2007: 153).

Outro aspecto importante de salientar é denominado O esboço de uma inserção autônoma da África globalizada. China e França tem se feito mais presentes no continente africano por razões econômicas e diplomáticas. Não obstante, laços são estabelecidos com o MERCOSUL, a Ásia e a União Européia. Dentro dos países africanos, a África do Sul apresenta uma posição privilegiada, o que a projeta, por exemplo, como pólo integrador da África austral e como país que pode reivindicar um assento permanente na ONU.

O último elemento analisado nesse subcapítulo é uma conclusão sobre a situação atual dos Estados nacionais no continente. É necessário atentar para as peculiaridades do processo de formação dos Estados nacionais pelo qual passam os países africanos, “um processo semelhante ao atravessado por outras regiões do mundo” (VISENTINI, 2007: 154) em outras épocas da história, os quais também foram marcados por guerras. No caso da África essa violência é agravada pela herança do tráfico colonial e do colonialismo imperialista.

Conforme o autor, a descolonização da África aconteceu de modo peculiar e tardio. Peculiar, pois foi administrada pela metrópole, apesar da existência de conflitos em alguns lugares. Quando ocorreram as independências, “as contradições internas ainda não estavam suficientemente amadurecidas, em decorrência da referida herança do tráfico e do colonialismo imperialista sobre as estruturas sociais do continente” (VISENTINI, 2007: 155). É nesse cenário instável que se iniciaram recentemente as construções dos Estados nacionais no continente negro. Soma-se a isso o fato desse processo histórico ser distorcido pelo neocolonialismo e, por vezes, pela implantação de Estados inviáveis econômica e politicamente.

Mesmo com a afirmação do neocolonialismo no continente, os países se dividiram em Estados progressistas e conservadores, tanto no plano externo quanto interno, o que reflete projetos político-econômicos e alianças internacionais antagônicas. Essas divergências mantiveram-se dentro de certos limites até a permanência dos últimos bastiões brancos na década de 1970, resultando em lutas de libertação nacionais radicais. A década de 1980 foi catastrófica para as sociedades africanas. Juntou-se a isso o fim da Guerra Fria, a globalização e o reordenamento mundial, fazendo a África deixar de ser estratégica para as relações internacionais. Porém, uma nova afirmação do continente surge na década de 1990 com a redemocratização da África do Sul e o colapso do “protetorado” francês, mesmo que a “afirmação da influência americana, pela primeira vez a África está logrando certa autonomia para reorganizar-se com base numa correlação de forças regionais” (VISENTINI, 2007: 156). A reafirmação internacional do continente se dá no mesmo momento em que o mundo passa por uma transição e uma reorganização estrutural.

O texto de Paulo Visentini vem ao encontro do texto de Saraiva, quando esse afirma as possibilidades de integração setorial do continente no atual momento histórico. Indo além, apresenta uma visão diferente de Chaliand, na medida em que diferentemente do autor ele nos passa uma visão menos negativa do continente em relação às perspectivas futuras, enquanto Chaliand nos deixa a impressão da África ser um continente perdido e sem perspectivas. Talvez isso aconteça em razão do próprio momento histórico em que cada autor escreveu o seu texto.

Por fim, a partir da leitura do texto foi possível pensar em algumas problematizações sobre a temática. Em primeiro lugar, quanto às problematizações levantadas pelo próprio autor, cabe ressaltar a reorganização da zona de influências pós-Guerra Fria e o aumento da influência dos Estados Unidos em diversos países africanos no decorrer da década de 1990. Os interesses na África desse período acontecem através de uma perspectiva de disputas entre EUA e Europa. Após uma perda de interesse na África no período imediato ao fim da guerra fria, ela volta a ganhar importância no tabuleiro de disputa de interesses internacionais, embora não de forma tão relevante quanto antes do fim do mundo bipolar.

Outra problemática pensada a partir da leitura do texto de Visentini diz respeito ao viés teórico que ele lança sobre a história. O autor compara o período atual dos Estados nacionais africanos com o período de formação dos Estados nacionais na Europa do século XVI e XVII, ou nas Américas do século XIX, transparecendo uma linha evolucionista de pensamento. Por aí questiona-se se é mesmo possível traçar essa comparação de viés evolucionista.

Entretanto, por mais que nos pareça contraditório, ao mesmo tempo em que o autor pode transparecer esse olhar evolutivo sobre a história das nações, a leitura também nos faz compreender os problemas e conflitos do continente a partir do entendimento das vicissitudes do seu processo histórico, do seu contexto interno e da sua relação com o contexto externo, atentando para a diversidade continental. É possível entender os processos históricos das diferentes regiões da África sem um olhar preconceituoso que o olhar ocidentalizante enseja. Em razão disso, creio não ser possível lançar esse olhar evolucionista sobre a história dos estados africanos e causa estranhamento conseguir perceber ambas as visões num texto de um mesmo autor. Os escritos de Paulo Visentini mostram de forma factual as fragilidades, conflitos e dificuldades da África, mas não de modo a reforçar o “afropessimismo”. Pelo contrário, o autor se mostra, por vezes, otimista frente às possibilidades de desenvolvimento futuro do continente negro.

REFERÊNCIAS

CHALIAND, Gerard. A luta pela África: estratégias das grandes potências. São Paulo: Brasiliense, 1982.

PEREIRA, Ana Lúcia Danilevicz; RIBEIRO, Luiz Dario Teixeira & VISENTINI, Paulo G. Fagundes. Breve História da África. Porto Alegre: Leitura XXI, 2007. p.141-157.

SARAIVA, José Flávio Sombra. Cooperação e Integração no continente africano: dos sonhos pan-africanistas às frustrações do momento. Revista Brasileira de Política Internacional, n.36, 1993, p.28-45.

* Professora Estadual de História; Licenciada em História pela UFRGS; Cursando o último semestre da Especialização em História Africana e Afro-Brasileira pela FAPA.