ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

quarta-feira, 1 de junho de 2011

“Terra Sonâmbula”, de Mia Couto


Raquel Braun Figueiró*
Historiadora e Professora

Ela se deslocava, seguindo de paisagem em paisagem. A estrada me descaminhou. O destino o que é senão um embriagado conduzido por um cego? Fui sendo levado sem conta nem tempo (COUTO, 2007: 203).

Introdução

A literatura é uma forma de expressão de um povo através da qual podemos entender a sua cultura e sua história. Nesse sentido, o presente trabalho visa apontar algumas das principais problemáticas relativas às literaturas africanas de língua portuguesa da pós-independência. Num segundo momento, realizar-se-á uma análise do livro Terra Sonâmbula, do autor moçambicano Mia Couto. Nele estão duas histórias distintas que se unem através da leitura dos cadernos de Kindzu por Muidinga. Apenas ao final, entendemos não serem histórias tão distintas, uma vez que Muidinga era Gaspar, o filho de Farida tão procurado por Kindzu. A narrativa de Muidinga e Tuahir é feita por Mia Couto, enquanto os cadernos de Kindzu são narrados pelo próprio Kindzu.

Apontamentos sobre as literaturas africanas

As literaturas africanas são recentes e normalmente escritas na língua do antigo colonizador. Esse último fato não exclui a originalidade dessas literaturas e a originalidade da literatura de cada país africano. Entretanto, muitos debates e problemáticas surgem acerca disso. Uma primeira problemática que destacamos seria quais os elementos que denotam originalidade nas literaturas africanas e quais denotam cópia da literatura do colonizador. Quanto a isso, Ana Mafalda Leite explica que:

Se, antes das independências, as obras e os autores são enquadrados dentro do sistema literário da metrópole, posteriormente, muitas das leituras tendem a situá-las intertextualmente devedoras de obras e movimentos literários europeus, tendo em conta o espaço matriz de colonização, o que, naturalmente é necessário fazer, mas não unicamente. A autonomização dos processos literários africanos, de língua portuguesa por exemplo, partilha diversas heranças intertextuais além da literatura portuguesa (literatura latino e hispano-americana, literaturas africanas em outras línguas e os intertextos da tradição oral) que são igualmente importantes para a caracterização dos aspectos especificamente regionais e nacionais diferenciadores. (LEITE: 1998, 13).

Sob a afirmação da autora entendemos que antes das independências havia textos que pretendiam seguir os moldes da literatura do colonizador, mas que após esse processo histórico as literaturas africanas (nesse caso aquelas escritas em português) ganham autonomia e originalidade ao mesclar os elementos de diferentes tradições literárias, sejam eles latino-americanos, africanos ou procedentes da tradição oral. Com isso, a mesma autora também nos explica que “o termo proposto de literatura neo-africana recobre um corpus específico de textos produzidos pelos africanos em línguas européias, e distinguem-se por uma unidade fundamental de referência e de visão do mundo” (LEITE, 1998: 16).

Aqui se torna necessário fazer uma ressalva quanto à oralidade na tradição africana, uma vez que o fato da oralidade ter importância na tradição africana não significa que ela seja “inata” aos africanos assim como a escrita é “inata” aos europeus. Tal cuidado é necessário para não interpretarmos um acontecimento acidental como um acontecimento essencial. Como salienta Leite:

A predominância da oralidade em África é resultante de condições materiais e históricas e não uma resultante da “natureza” africana; mas muitas vezes este facto é confusamente analisado, e muitos críticos partem do princípio de que há algo de ontologicamente oral em África, e que a escrita é um acontecimento disjuntivo e alienígeno para os africanos. (1998: 17)

Outra indagação importante ao tentarmos entender a literatura africana consiste em saber se a utilização da língua do antigo colonizador seria um produto neocolonial ou não. Quanto a isso há, inclusive, escritores africanos que reivindicam a utilização da língua africana anterior ao colonizador para a escrita literária. Porém, tal visão fundamentalista desconsideraria todo o processo histórico vivenciado por esses povos, responsável por fazer quase impossível a manutenção de uma escrita literária utilizando tais línguas. Conforme Mafalda Leite:

É ainda um principio nostálgico, idealista e essencialista, pensar em termos estáticos na recuperação de uma mundividência pré-colonial, não levando em linha de conta as transformações sofridas nestas sociedades com o colonialismo, as independências e a modernização.

Insistir numa visão monolítica e indiferenciada de uma estética africana é uma forma também de negar a heterogeneidade e complexidade do universo cultural africano. É talvez ainda a manifestação de uma visão neo-panafricana, que encara o continente como indiferenciada totalidade, neste final do século, quando diferentes nações africanas constroem há várias décadas o seu percurso literário próprio e diferenciado. (1998, 24).

Para complementar as reflexões de Leite, outra estudiosa, Rita Chavez, ao investigar a literatura angolana, coloca-nos uma problemática importante para pensar essa questão da utilização da língua do colonizador, ao perguntar-se: “como exprimir uma cultura nova, identificada com a libertação, através de um código que foi também instrumento de dominação?” (2005: 71). Afinal, a língua do colonizador é um instrumento de dominação, mesmo sendo apropriada pelo povo colonizado, não deixa de remeter ao passado em que uma sociedade foi subjugada. Por aí a resposta que a autora dará vai ao encontro da conclusão exposta por Mafalda Leite, ao passo que, para ela,

considerando a língua como um fator de cultura, que reflete e produz, a um só tempo, um conjunto de condicionamentos internos e externos, o artista procura recursos que lhe permitam utilizar o português sem que um tal uso implique a perda de identidade de seu projeto sócio-político-cultural (CHAVES, 2005: 72).

Além disso, para essa autora um ponto para consolidar esse processo de angolanização da língua portuguesa seria a incorporação de marcas da oralidade nos textos escritos (no caso da literatura angolana).

Relacionada à problemática acima exposta segue-se outra, em que devemos considerar que ao estudar literatura africana outra ponderação muito presente é aquela referente à nacionalidade da literatura e como a produção dessa literatura influenciou no processo nacional. Não obstante, muitos dos textos de literatura africana produzidos hoje são escritos na língua do antigo colonizador. Para Pires Laranjeira, a literatura africana representa processos técnicos de escrita que se erguem contra os modismos europeus. É no processo de ruptura com o modelo de literatura do colonizador e na inovação proposta pelos autores da literatura africana que reside a libertação dessas literaturas (LARANJEIRA, 1992: 10). Esse processo de ruptura inicia-se na década de 1940.

Contra a “escrita flutuante”, passível de ser apropriada por colonialistas ou portugueses de má fé, se erigiram todos os movimentos literários africanos, de maior ou menor envergadura, com ou sem conseguimento. Tornar a escrita irrecuperável pelo poder das metrópoles ou do neo-colonialismo, eis o propósito de alguns dos maiores escritores africanos. A literatura, na sua perspectiva, é sempre política, ou pelo menos fortemente politizada, ainda que não explicitamente. (LARANJEIRA, 1992: 12).

Ainda que utilizando a língua do colonizador, a literatura africana ganha originalidade ao se apropriar do signo colonial e utilizá-lo como ferramenta de luta e de expressão de uma cultura.

Quanto à denominação da literatura em cada parte da África o mesmo pensador salienta as dificuldades de usarmos, no caso da literatura aqui estudada, o termo “literatura africana de expressão portuguesa”. O uso desse termo visa agrupar e delimitar as literaturas dos países africanos com língua portuguesa. Entretanto, ele apresenta o problema de

[...] imediatamente, a partir da classificação, se fica com o preconceito de que as literaturas, em quantidade, são tão irrisórias que não merecem tratamento apartado. Conseqüência: assuntos e autores que mereciam ampla e minuciosa abordagem ficam sujeitos [...] a simplificações, mutilações, incompletudes e desvirtuações (LARANJEIRA, 1992: 17).

No que se refere a essa denominação também Ana Mafalda Leite faz uma ressalva ao sublinhar que elas traçam generalizações que nos fazem perder de vista as particularidades nacionais. Nas suas palavras:

As designações abrangentes, ainda hoje usadas, do tipo, “literaturas africanas de língua portuguesa”, “literaturas lusófonas”, “literaturas anglófonas e francófonas”, são em si portadoras de uma significação ideológica obtusa, que permite a indefinição nacional, e leva a uma generalização do particular em favor de traços apenas comuns pelo uso e um mesmo instrumento lingüístico, e processos temáticos de contestação similares durante o período colonial. (1998: 13).

Portanto, as literaturas africanas apresentam originalidade e particularidades conforme o processo histórico que aconteceu em cada país. Ana Mafalda Leite nos explica:

Cada literatura nacional africana tem as suas características próprias e desenvolve-se segundo moldes estáticos e lingüísticos, cuja distintividade resulta não só das diferenças culturais étnicas de base, mas também das diferenças lingüístico-culturais que a colonização lhes acrescentou. É praticamente insustentável qualquer generalização que conduza a elaborações teóricas que não levem em linha de conta as especificidades regionais e nacionais africanas. (1998: 27).

As literaturas africanas de língua portuguesa dialogam com as “tradições” cada uma da sua maneira e conforme o seu contexto histórico específico. Mafalda Leite relata que os escritores africanos fazem essa apropriação da língua do colonizador, “nativizando-a”.

Nas literaturas africanas de língua portuguesa, tendo em conta a especificidade de colonização que favoreceu a indigenização do colono e a aculturação do colonizado, em graus mais ou menos extremados e substancialmente diferentes das outras colonizações, a relação com as tradições orais e com a oratura, começam por manifestar-se exactamente pelas diferentes “falas” com que os escritores africanos se assenhorearam da “língua”. A “pilhagem” ou “roubo” da língua portuguesa pelo colonizado mostra que a “africanização”, perversamente, se institui e processa no interior do instrumento comunicativo, num processo transformativo e nativizante. (LEITE: 1998, 33).

A maioria dos escritores das literaturas africanas de língua portuguesa são assimilados, uma parte significativas de ascendência européia, quase todos de origem urbana, sem contato directo com o campo, e não dominam, salvo raras exepções, as línguas africanas. Esse facto não é comum nos outros países africanos, onde a ligação com o “terroir” se mantém desde a infância e os escritores geralmente são, pelo menos, bilingues. (LEITE: 1998, 30).

Segundo a autora, Mia Couto poderia ser enquadrado como um autor que realiza a “modelação da língua, instrumento privilegiado da contaminação, mestiçagem e entrosamento das culturas, orais e escritas” (LEITE: 1998, 32).

Terra Sonâmbula

O livro Terra Sonâmbula de Mia Couto discorre sobre duas histórias que a princípio parecem distintas, mas que ao final do texto se ligam. O texto se divide em Capítulos e em Cadernos de Kindzu, sendo que está estruturado de forma que após cada Capítulo inicia-se um Caderno de Kindzu. Assim, essa parte do texto será dividida entre reflexões sobre os capítulos e, posteriormente sobre os Cadernos de Kindzu.

Os capítulos do livro tratam sobre a história das personagens Tuahir e Muidinga e sobre o seu cotidiano em uma “estrada morta”, ou seja, uma estrada sem movimento. Tuahir é um velho e Muidinga um menino que deve ter em torno de 11 anos. O pequeno é chamado de miúdo pelo velho. Tuahir e Muidinga são dois desabrigados que vagam pela Moçambique da pós-independência tentando sobreviver. Fácil é perceber a partir da leitura do texto o deslocamento causado pela guerra civil que se instalou no país após a independência. Durante esse deslocamento eles encontram um machimbombo (ônibus) queimado e instalam-se nele. Dentro desse ônibus há pessoas mortas e uma delas carrega uma mala, na qual estavam guardadas comida e alguns escritos denominados Cadernos de Kindzu. Os cadernos são lidos por Muidinga para os dois, visando preencher seus dias e noites solitários.

Na medida em que a leitura se desenrola, as personagens penetram cada vez mais na história e, sentindo a necessidade da leitura dela, de modo que o próprio Tuahir chega a afirmar, ao final do quinto capítulo, que “Esse fidamãe desse Kindzu já vive quase conosco” (2007: p.90). Ao fim desse capítulo vê-se a importância da contação de histórias em Terra Sonâmbula, que provavelmente expressa a importância dessa prática na cultura moçambicana. Cabe salientar que a contação das histórias de Kindzu ocupa metade do livro.

Um elemento importante levantado a partir do ato de contar a história nesse livro é o fato de ser o jovem Muidinga que conta a história e não o idoso Tuahir, como sempre imaginamos ao pensar na figura do griô. Isso acontece porque a contação da história de Kindzu ocorre através do domínio da leitura, que é um conhecimento das gerações mais novas. Quando, no quarto capítulo Siqueleto solta ambos e morre depois do menino escrever seu nome numa árvore também nota-se o domínio desse signo pelas novas gerações. O fato não exclui, porém, o respeito que o menino tem pelo mais velho, expresso, por exemplo, na confiança que o miúdo deposita em Tuahir quanto ao conhecimento do caminho de volta para o ônibus, quando parecem perdidos.

Um último elemento da contação de histórias é percebido quando, no início do quinto capítulo, o narrador chama o machimbombo de moradia e ao fim Tuahir revela a importância que as histórias de Kindzu têm para eles. Isso nos permite pensar que a contação de histórias inclusive estabelece um laço de moradia com o lugar onde ela é contada, estabelecendo uma ligação entre o Machimbombo queimado e os dois personagens.

Enfim, o que prende Muidinga e Tuahir no machimbombo? Na primeira vez que Tuahir sai do machimbombo, Muidinga diz que são os Cadernos de Kindzu que despertam a vontade de voltar ao abrigo. Já quando Muidinga quis sair dali, Tuahir usa a desculpa de que ali ninguém apareceria e ali estariam protegidos, pois o país estando em guerra era melhor que ninguém os encontrasse. A partir do quarto capítulo (o da morte de siqueleto), quando os personagens parecem estar estabelecidos no machimbombo, eles começam andar em círculos ao redor de onde ele se encontrava. Nesse momento é que Tuahir e Muidinga começam a conhecer o entorno e passam a acontecer coisas ao seu redor. No quinto capítulo o ônibus já é designado como moradia pelo narrador. Com efeito, ao longo de todo livro eles saem do machimbombo apenas para andar em círculos, somente no final da história eles se despedem de vez do lugar, para encontrar o mar.

Outro ponto interessante para refletirmos é a constante mudança de paisagem. Ao longo da obra a paisagem vai mudando. O que significa a mudança constante da paisagem da estrada? Não seria a leitura que os faz ver as coisas de forma diferente?

Por outro prisma, a relação fraternal entre os dois personagens também é uma constante no livro, sobretudo porque ambos acolhem-se como pai e filho – ou tio e sobrinho. Em meio a essa relação Muidinga busca sempre por suas raízes, descobre que o velho o tirou de uma vala de um campo de desabrigados onde jogavam crianças mortas. Ao ver que o menino estava vivo, Tuahir o salva. Todavia, ele não se lembra de nada disso, pois o velho o levou em um feiticeiro para que ele esquecesse o seu passado, o que acaba por não funcionar no momento em que o pequeno termina de ler os cadernos de Kindzu e descobre a sua origem.

No que se refere aos cadernos lidos por Tuahir e Muidinga em seu cotidiano solitário e faminto, Kindzu é escritor e protagonistas dessa história, narrada em forma de diário. Dentre os principais temas tratados, destacaria, em primeiro lugar, o desenraizamento do lugar de origem. Kindzu, ao ver o seu mundo tradicional se desestruturar com a guerra civil, sente-se perdido e quer procurar novos lugares. A conseqüência disso é um desprendimento de sua terra natal.

Esse desprendimento não vai ser bem compreendido pelo seu pai, mesmo esse estando morto. Aí partimos para um segundo tema recorrente no romance: relação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Uma ideia que pode parecer estranha à ocidentais cristãos, mas demonstra o modo de pensar a vida e a morte na tradição moçambicana, visto que o contato entre os dois mundos ocorre sem estranheza. Os exemplos disso são muitos ao longo do livro. Entre eles há um no Segundo Caderno de Kindzu, quando Kindzu conversa com seu pai falecido através de um sonho. Nesse exemplo também se percebe um terceiro tema recorrente na obra: a importância dos sonhos na tradição moçambicana. Nos Cadernos de Kindzu nota-se a importância dos sonhos constantemente para a organização dos caminhos a serem seguidos. Kindzu afirma que “O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos” (2007: 17);

Um quarto aspecto, a partir da leitura de “Terra Sonâmbula”, está associado à podermos visualizar a importância da relação entre pai e filho, porquanto nos cadernos de Kindzu o pai aparece como uma figura importante e presente. Tanto assim, que Kindzu apenas começa a se sentir perdido em sua terra natal após a morte de seu pai, já que Kindzu considerava sobre si mesmo que: “Minha alma era um rio parado, nenhum vento me enluava a vela dos meus sonhos. Desde a morte de meu pai me derivo sozinho, órfão como uma onda, irmão das coisas sem nome” (COUTO, 2007: 22).

Outro importante tema tratado nos cadernos de Kindzu é o da sociedade racializada. Várias vezes é possível perceber as diferenciações raciais existentes na sociedade moçambicana. Um excerto que ilustra isso bem é quando Kindzu faz referência “aos perigos” dele se relacionar com um indiano. O narrador explica:

Surendra sabia que minha gente não perdoava aquela convivência. Mas ele não podia compreender a razão. Problema não era ele nem a raça dele. Problema era eu. Minha família receava que eu me afastasse de meu mundo original. Tinham seus motivos. Primeiro, era a escola. Ou antes: minha amizade com meu mestre o professor. [...] Pior, pior era Surendra Valá. Com o indiano minha alma arriscava se mulatar, em mestiçagem de baixa qualidade (COUTO, 2007: 24-25).

A partir dessa relação de Kindzu com o indiano Surendra Valá também percebemos a influência da cultura muçulmana e indiana na região, resultando nas tradições suailis.

Um sexto tema importante dos cadernos é a presença das mulheres e as possibilidades de atuação feminina em um contexto machista. Essa atuação pode ser percebida, por exemplo, quando Carolinda faz uso de sua posição para tentar matar sua irmã, Farinda.

Por fim, quanto aos Cadernos de Kindzu, é extremamente importante fazer referência ao contexto histórico ao qual a história se desenvolve. Esse contexto também pode ser percebido nos capítulos, mas fica muito mais explícito na história de Kindzu. A rigor, os temas históricos que aparecem no romance seriam: a independência (expresso na figura de Junhito); a guerra civil; os campos de refugiados; os bandos armados; a corrupção (exemplificada na cidade de Matimati e na personagem Assane); o contexto ideológico influenciado pelo marxismo (administrador); e a figura do colonizador (Romão Pinto).

Ao fazer referência a corrupção que ocorria em seu país durante o contexto de guerra, Kindzu escreve em seu sexto caderno que Farida queria conhecer mais, saber o motivo da guerra, a razão daquele desfile de infinitos lutos. Relata que lembrou as palavras de Surendra, que diziam que tinha que haver guerra, tinha que haver morte.

E tudo era para quê? Para autorizar o roubo. Porque hoje nenhuma riqueza podia nascer do trabalho. Só o saque dava acesso às propriedades. Era preciso haver morte para que as leis fossem esquecidas. Agora que a desordem era total, tudo estava autorizado. Os culpados seriam sempre outros.

Com esse excerto fica compreensível o modo como a guerra facilita a ação de um governo desorganizado e corrupto em um país. Nesse sentido, outro personagem que ilustra a ação corrupta em um país em estado de guerra é Assane, já que exemplifica as possibilidades de corrupção que isso permite aos funcionários. O próprio machimbombo onde Kindzu estava se deslocando quando morre queimado era fruto de uma empresa de Assene que prosperou com esse contexto. Sabemos do advento desse tipo de negócio através das seguintes palavras do último caderno de Kindzu: “Fingi nem reparar. Nossa empresa? Então, o negócio já se expandira? Afinal, em guerra se pode prosperar mais rápido que em normais tempos de paz” (COUTO, 2007: 199). No que concerne à figura do colonizador, há a personificação do mesmo na personagem de Romão Pinto, o qual mesmo morto quer influenciar e ter parte nos negócios da nação.

O livro demonstra a desorganização e miséria pelo qual passava Moçambique após a descolonização. Para ilustrar isso o autor utiliza uma metáfora através do pensamento de Kindzu, quando a personagem afirma que “Agora, eu via o meu país como uma dessas baleias que vêm agonizar na praia. A morte nem sucedera e já as facas lhe roubavam pedaços, cada um tentando o mais para si. Como se aquele fosse o último animal, a derradeira oportunidade de ganhar uma porção” (2007:23).

A obra retrata a impressão de um contexto histórico em que chega ao fim um mundo, uma sociedade e suas tradições específicas, sem dar grandes projeções de um novo mundo próspero. Apenas o que se tem são esperanças de alguns dos viventes desses tempos de guerra. Farida e Kindzu podem ser pensados como analogias de uma geração perdida entre a tradição moçambicana e a cultura imposta pela dominação colonial (Farida) ou entre a tradição moçambicana e o novo país que se estrutura com a independência (Kindzu). Ambos estariam perdidos entre esses mundos e tentando se encontrar após a dominação colonial. No seu Quinto caderno, Kindzu escreve:

Entendia o que me unia àquela mulher: Pensava sobre as semelhanças entre mim e Farida. Nós dois estávamos divididos entre dois mundos. A nossa memória se povoava de fantasmas da nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em nossas línguas indígenas. Mas nós já só sabíamos sonhar em português. E já não havia aldeias no desenho do nosso futuro. Culpa da Missão, culpa do Pastor Afonso, de Vírginia, de Surendra. E sobretudo, culpa nossa. Ambos queríamos partir. Ela queria sair para um novo mundo, ela queria desembarcar numa outra vida. Farida queria sair da África, eu queria encontrar um outro continente dentro da África. Mas uma diferenças nos marcava: eu não tinha a força que ela ainda guardava. Não seria nunca capaz de me retirar, virar costas. Eu tinha a doenças da baleia que morre na praia, com os olhos postos no mar. (COUTO, 2007: 92).

Quanto às características que perpassam toda a obra (tanto os Capítulos, quanto os Cadernos de Kindzu), destacaríamos duas. A primeira delas seria a interligação e, por vezes, indissociação entre o ser humano e os elementos da natureza. Vemos isso quando Junhito vira galinha, quando Kindzu fica com escamas entre as mãos para poder remar, ele “se peixava”, ou ainda quando o homem que captura Tuahir e Muidinga vira semente. E nada disso que, para nós pode parecer estranho, ganha conotação de algo irreal ou impossível no livro. Exemplos como esses se repetem muitas vezes durante a obra, tanto nos capítulos sobre a “estrada morta” quando nos Cadernos de Kindzu.

A segunda característica que perpassa toda a obra e que é uma característica do autor é o uso de neologismo. Mia Couto escreve muitos neologismos em seu texto. Ao longo de todo o livro lemos novas palavras que se encaixam perfeitamente para explicar o relato de Mia Couto. Por exemplo, na página 59 há duas frases onde aparecem três palavras novas: “A canoa se ondeava, adormentada em águas perdidas. Meu peito bumbumbava, acelerado” (COUTO, 2007: 59). São muitas as palavras que aparecem ao longo da obra para darem sentido ao texto e possibilitar que imaginemos o cenário com maior nitidez. Assim, também são exemplos de neologismos que aparecem ao longo do texto: palavraram, esperantes, troteondeando, peixava, alicatéia, xicalamidades, africandade, pirilampejava, invencionices, vagueandear, aguou, abismalham, pontapina, anichavam, doidoendo, pensageiro, calcorrear, sozinhidão, saltinhadores, convinvência, gesticalada, palmando, anjonautas, desarrascava, cabedaloso, esbarrigados, espalhafarto, boquiaberturas, abismaravilhado, abichado, desandarilho, desenrasca, arreliação, matraquear, Carolinda, inutensílio, nuventa, exactamesmo, calafriorento, choraminguante, cambalinhando, deslocalizara, infanciando, inaposento, desbotura, desencostadas, passarinhando, saltinhador, timiudamente, dormitoso, pernalteava, cantarinhar, lamentochão, desmeiada, escãozelada, nenhures, direitamento, facocherando, miraginações, administraidor, descaminhei, desexistir, descaminhou.

Conclusão

O título do Livro Terra Sonâmbula ganha um sentido importante ao longo da obra. É aquela terra que não está nem dormindo e nem acordada, ela sonha em um ambiente onde o marasmo, a esperança do fim da guerra e a miséria própria da guerra se fazem presentes, assim resta aos habitantes sobreviverem. É nesse cenário de guerra que aparecem pessoas que vagam famintas e onde a leitura de uma história pode ser um alento para sua sobrevivência. A partir da obra também podemos entender um pouco da história do Moçambique após a sua independência e das questões que são colocadas para um novo país e, porque não, para uma nova literatura que também pretende se libertar do julgo do colonizador.

Referências

CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: Experiência colonial e territórios literários. São Paulo:Ateliê Editorial, 2005.

COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

LARANJEIRA, Pires. De letra em riste: Identidade e outras questões nas literaturas de Angola, Cabo Verde, Moçambique e S. Tomé e Príncipe. Porto: Edições Afrontamento, 1992.

LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & Escritas nas literaturas africanas. Lisboa: Edições Colibri, 1998.

* Raquel Braun Figueiró é Professora de História no Colégio Estadual Inácio Montanha; Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Especialista em História da África pela Faculdade Porto-Alegrense (FAPA); Licenciada e Bacharela em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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