ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Só mais um Silva? (Parte 1)

Imagem retirada do sítio https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiJdxh74sU4NnUcx3vjc4qPTf2qP500kT2IPpFC125MLIyG6CasdyVlIj0yoSeHMlArXAFFgJQEZBB_y03orYqwSr2I9zoLS4CDKXMBfvNqwufgLu3uajdPqGbXe3wyOBG_QNdOU7V4VhM/s400/multid%C3%A3o.bmp No meio do caos e da multidão, ele era só mais um Silva?

Ele era um rapaz bastante normal para a sua idade. Gostava muito de futebol, das aventuras com as meninas, da vida agitada com os amigos e, inclusive, da batalha para vencer os desafios escolares. Não seria um episódio como aquele que o faria desistir de levantar de todos os dias, buscar um sorriso no rosto ao visualizar o sol brilhante. Não um episódio nefasto como aquele. Era chegada a hora de mudar o rumo de sua vida com uma decisão, uma ação que não poderia esperar.

Silva vivera até aquele momento numa cidade pequena, às margens do estuário Guaíba, região metropolitana de Porto Alegre. Na verdade, às margens de um rio que banha a capital do Rio Grande do Sul, pois assim o local foi e permanece definido no imaginário característico do gaúcho. Do outro lado do vasto aglomerado de águas, cujo deleite do sol deitando-se diariamente proporciona um espetáculo tão belo como as mais belas expressões da natureza. Lá nascera e crescera Silva, o protagonista da situação encardida daquele momento crucial. Tinha a sensação de se confrontar consigo mesmo, com as suas mais íntimas intenções.

Com 18 anos, ele conhecia bem a capital, mantinha boas relações com uma rapaziada de diversas quebradas daquela selva de pedras. Viu e viveu uma realidade que retrata uma considerável parcela dos jovens brasileiros, imersos nas dificuldades financeiras, numa vida em que os prazeres mundanos se confundem com a violência própria das sociedades contemporâneas. Sempre traçava comparações entre a vida na metrópole e a sua vida, nas longas viagens de ônibus, pelas quais chegava e saía da capital, lembrando-se das noites às margens do Guaíba, do vento cortante que se entrelaça ao frio peculiar da região sul. Desta vez, precisava pensar bem antes de tomar qualquer atitude.

Silva dormiu e acordou sobressaltado. A cena daquela criança, verdadeiro homem, não lhe abandonava os pensamentos. Como poderia um indivíduo como aquele, um homem que não tinha uma dezena de idade, agir de uma maneira em que se poderia afirmar a presença da deterioração incontestável do ser humano? Seria aquela uma prática espontânea, derivada dos impulsos “naturais”, trazidos por aquele menino na sua base genética e/ou biológica? Seria ele fruto de uma sociedade que vangloria a competição, os discursos de uma moral caduca, descontextualizada?

Era preciso descer do ônibus e conversar com alguém, dividir a tensão da necessidade que sentia em não deixar passar aquela oportunidade de ajudar uma pessoa. Ele sabia que o menino não iria gostar da sua ideia, tampouco da materialização dela, mergulhado que estava nas ondulações da realidade diária, desconcertado pelos caminhos da rua. Jogado nas agruras da eterna briga pela sobrevivência, pela comida do dia, pelo abrigo da chuva e do frio, aquele moleque de cabeça raspada e feições de homem feito possuía personalidade, uma identidade marcada. Não seria nada fácil convencê-lo.

Silva abriu a porta de casa, beijou sua mulher e sentou-se ofegante no sofá da sala. Maria Joana sentiu na chegada daquele homem com quem dividia sua vida uma energia estranha, diferente da rotina a qual ambos estavam acostumados. Silva estava nervoso, seu semblante transparecia isso. Mari, como a chamava Silva no carinho do cotidiano, aproximou-se e com um olhar de quem sabia o que estava falando, perguntou de maneira simples:

– Conta, meu grande amigo. O que te aflige?

– Eu não sei o que fazer Mari, hoje estive a ponto de perder a compostura com uma visão que tive lá na capital. – Disse Silva.

Maria Joana foi até a cozinha e colocou uma chaleira com água para esquentar. Voltou para a sala, observando Silva jogado no sofá, de olhos fechados notadamente obscurecidos por alguma brutalidade da realidade social do século XXI. Apertou alguns botões, retirou de uma estante hermeticamente organizada um velho disco de uma música caribenha que é capaz de mexer com qualquer sujeito transtornado pela carga de sentimentos do mundo urbano mal resolvido. Pôs o objeto musical para tocar e voltou à cozinha, a fim de finalizar a preparação do mate. Sentou-se no sofá, abraçou Silva e ficaram ali, durante dois quartos de hora apreciando o mate e a serenidade da música que abduzia seus espíritos numa maré de tranquilidade.

A noite se impôs sem piedade.