ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A corrupção como sistema

Por Muniz Sodré (jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro). Reproduzido do Observatório da Imprensa, edição 666.

Uma pequena história real e exemplar: o personagem é um antigo militante político, intelectual de peso, grande conhecedor da política e da economia nacionais, que sempre se recusou a pedir bolsa-ditadura sob a digna justificativa de que o povo não deveria pagar pelas opções ideológicas que o levaram à clandestinidade no passado. Dois terços de seus magros rendimentos mensais vão para um plano de saúde. Esta semana, internado de urgência num hospital paulista, acompanhou do leito as chicanas dos administradores do plano para não pagar despesas médicas. Apelou para um dos atuais próceres da República, ex-companheiro de militância, que resolveu o problema com um telefonema para os chicanistas.

Este é um tipo de história que não chega aos jornais, mas que, bem examinada, pode servir de material explicativo para assuntos de interesse público cujas repercussões vivem ocupando a mídia. O primeiro ponto a se destacar é do espectro amplo da mafialização, que se espalha não apenas pelos nervos do Estado, mas também pelo corpo institucionalizado da nação.

O contrato que o cidadão assina com os gestores de um plano de saúde é publicamente definido como algo moderno, com obrigações mútuas a serem cumpridas nos instantes precisos (pagamento mensal e prestação eventual de serviços), mas a hora da urgência é a mesma da regressão, em que o sistema de gestão se transforma em sistema espertalhão (wise guy, em inglês americano, é tanto espertalhão quanto mafioso), para tentar evitar a prestação do serviço. A “modernidade” cede então lugar ao processo semifeudal, arcaico, do jeitinho, das relações pessoais ou de prestígio.

Uma teia que se expande

O que um caso tão particular tem a ver com o que atualmente movimenta manchetes, noticiário de jornais e revistas, flashes televisivos e redes sociais sob a rubrica “corrupção”?

É que os dois fenômenos – mafialização e corrupção – estão visceralmente ligados, embora a conexão não esteja visível no derramamento de fraudes, que a mídia trata como incidências anômicas (crimes ou transgressões pontuais, com culpados e inocentes) no interior dos aparatos de Estado ou em suas relações com setores e indivíduos da chamada sociedade civil.

O comportamento mafializado, indutor de corrupção, faz-se presente em ínfima e magna escala no funcionamento do cotidiano nacional – e em tal intensidade que parece tornar-se “pedagógica” para o saber-viver no meio urbano. O cidadão está exposto, sem maior defesa, ao flanelinha que arranha o carro se não se aceita a extorsão, ao guarda municipal que aplica a multa indevida apenas para preencher sua cota diária, ao peeme capaz de assaltar e matar, ao gestor espertalhão do plano de saúde, ao contratante voraz da empresa de telefonia, ao licitante desonesto, ao pilantra legislativo, ao déspota executivo.

A lista antirrepublicana é infindável: os exemplos parecem coisas diferentes, mas na realidade fazem parte de uma teia que se expande em metástase, ao mesmo tempo em que a vida social parece hipermodernizar-se por efeito da comunicação eletrônica e de todos os seus gadgets, louvados por publicidade e governos.

“Desenvolvimento derivado”

É aqui aplicável, por analogia, o raciocínio do famoso prefeito de Nova York, Ralph Giuliani, quando se dispôs a combater seriamente a criminalidade naquela megalópole. Ele percebeu que o pequeno delito (depredar um equipamento público, por exemplo) de algum modo era subsidiário do grande crime. O pequeno comportamento mafializado pertence à atmosfera emocional (o ethos, dizem os sociólogos) do grande e funciona como uma epidemia.

A imprensa não se furta geralmente a noticiar os dois tipos de comportamento transgressivo, o pequeno e o grande. Mas embalada por seu próprio moralismo denuncista (e, às vezes, por obscuros interesses corporativos), não raro se emaranha na profusão dos fatos e passa ao largo das conexões sistêmicas do fenômeno, ou seja, fica cega para as causas sociopolíticas e econômicas do fato corruptivo.

Seria, assim, socialmente instrutivo se a imprensa se dispusesse a expor, ao lado das denúncias pontuais, as consequências sociais e éticas de um modelo de desenvolvimento orientado para a financeirização improdutiva (poder dos bancos) e predominantemente para o consumo, em vez de produção e oferta (modelo schumpeteriano). É aquilo que alguns economistas chamam de “desenvolvimento derivado”, isto é, derivado das inovações realizadas em outros lugares.

Denúncias duvidosas

Não falta quem veja nessa orientação predominante para a demanda o principal traço de diferenciação entre os países menos desenvolvidos e aqueles geralmente referidos como Primeiro Mundo. Mas o que importa aqui é assinalar que essa diferença afeta o espírito que anima a economia, produzindo valores sociais específicos, como (no caso da economia produtiva e inovadora) a aprovação concedida à austeridade, à igualdade de renda, ao bem-estar social etc. Esses valores não surgem romanticamente da boa vontade de empresários ou industriais, mas de reformas modernizadoras realizadas pelo Estado.

O atual momento da modernização brasileira pode louvar-se de miraculosa estabilidade econômica e institucional, embora convivendo com anacronismos como a centralização excessiva do poder da União, que precisa do sistema financeiro (dos caixas bancários) para cooptar a classe política e manter a sua discutível “governabilidade”. Os valores ligados à austeridade são praticados apenas sobre instâncias essenciais à modernização emergente, como educação e saúde. Para o resto se abrem as comportas dos gastos públicos sobre um solo social mafializado, por falta de reformas de modernização, e totalmente vulnerável à corrupção.

É contra essa realidade sistêmica que a imprensa deveria voltar as suas baterias. Pode-se derrubar um ou mais outro ministro, e nada mudará. A sucessão das denúncias é eticamente tão duvidosa quanto a tampa de um bueiro da Light na rua.