O escritor russo Fiódor Dostoievski, confesso, mexe comigo. Desde a leitura de “Crime e Castigo”, passando por “Memórias do Subsolo” até chegar ao livro “Recordações da Casa dos Mortos”, o despertar do perpétuo movimento da dúvida ganhou fôlego dentro de mim. O talento dele faz com que minhas certezas se defrontem com a realidade imaginária das suas palavras, enredadas na astúcia de uma leitura profunda da vida humana individual e coletiva. Na última obra que referi acima, Dostoievski remonta sentimentos e histórias sob o ponto de vista de um prisioneiro na Sibéria. Ele mesmo foi preso e esteve por lá.
DOSTOIEVSKI, Fiódor. Recordações da Casa dos Mortos. Página 15 – Já declarei que no correr de muitos anos não presenciei entre tais homens arrependimento ou quaisquer ideias de rebate de remorsos, eles em geral cuidado de modo tácito haver agido errado. E isso de modo categórico. Sem dúvida deve concorrer para isso a desfaçatez que então paradoxalmente se transforma em brio. Será, mesmo? Quem há capaz de sondar direito tais almas; de descobrir o fundo mistério lôbrego do arbítrio por este universo afora? Aparentemente, todavia, minha atenção, nesse sentido, jamais em todo esse tempo lobrigou uma fresta de desespero ou de sofrimento que pudesse clarear nesses corações um compartimento de perplexidade, quando não de horror ao passado. Naturalmente meu julgamento a tal respeito é superficial, já que um criminoso tem sempre ensejo de reforçar a incomunicabilidade de sua consciência, mercê de uma filosofia de cinismo ou apatia. Os presídios, mesmo com trabalhos forçados, de primeira, segunda ou terceira categoria, isto é, em minas, em pavimentações, em artesanato e em degredo temporário ou perpétuo, longe estão de reformar o delinquente; são locais puramente de castigo, garantindo teoricamente a sociedade de renovação de atentados outros por parte de tais indivíduos que por isso são segregados dela. O encarceramento, o trabalho pesado, só hipertrofiam no recluso o ódio, a sede de instintos, sendo que complementarmente acarretam indiferença e marasmo espiritual. Não resta dúvida que o tão gabado regime de penitenciária oferece resultados falsos, meramente aparentes. Esgotada a capacidade humana, desfibra a alma, avilta, caleja e só oficiosamente faz do detento “remido” um modelo de sistemas regeneradores. Na verdade esse “reajustado” não é senão um ex-vivente, um despojo, um casulo murcho e inibido. Está-se a ver que o delinquente exacerba cada vez mais sua rebeldia que se organiza em potencial de rancor. Para ele a sociedade errou e ele quis castigá-la. Ou, quando não, o castigo que ele, sim, teve, uma vez cumprido é automaticamente uma absolvição, antes mesmo do termo já se considerando ele de contas feitas com a sociedade. Ora, desde as eras antes do direito em ordenações, se sabe que aqui ou alhures no mundo isso de crime é crime deveras, tal conceito permanecendo enquanto houver humanidade viva. No presídio, então, por que é que a gente ouve por entre risadas irresponsáveis alusões aos atos mais hediondos, monstruosos e infames?
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