O escritor moçambicano Mia Couto (saiba mais), habilidoso com as palavras e muito fértil com a imaginação, também possui uma sensibilidade grande relacionada aos acontecimentos da vida cotidiana. A reflexão abaixo pode despertar bons questionamentos, boas críticas e, ainda, boas problematizações acerca da construção e da consolidação de uma espécie de sentido imaginário hegemônico do medo.
O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demónios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem, servindo como agentes da segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.