ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 1 (16)

América do Sul, Brasil,

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Bourdieu pensando Foucault


Texto: Um pensador livre: “Não me pergunte quem sou eu”
Autor: Pierre Bourdieu / Publicação: Revista Tempo Social

A proximidade objetiva não predispõe à percepção e à apreciação objetivas: não estou tão seguro de que, em matéria de conhecimento, haja um privilégio do compatriota, do contemporâneo, do condiscípulo e do colega. Francês, aluno da Escola Normal nos idos de 1945 no apogeu do existencialismo, professor de filosofia, Michel Foucault deve a esse enraizamento histórico seus pontos de partida, de referência, de ruptura, suas pegadas, seus faróis e fobias, tudo aquilo que contribui para constituir um projeto intelectual. A despeito de certa distância temporal, tenho em comum com ele todas essas propriedades determinantes e muitas outras que se seguem, notadamente na visão acerca do mundo intelectual. Não é por acaso que estivemos tantas vezes no mesmo lado, ou seja, aliados em face dos mesmos adversários e por vezes confundidos pelos mesmos inimigos. Também minha tentativa de contribuir para a justa compreensão de Michel Foucault e de sua obra, ao esboçar uma história intelectual do universo no qual e contra o qual seu pensamento se formou, expõe-se ao perigo da assimilação ou da dissimilação fictícias que, no caso de um pensador célebre, oferecem, uma e outra, importantes ganhos simbólicos.

(…)

O projeto crítico, genealogia histórica do "sujeito" assujeitado, é inseparavelmente um projeto científico e político: o conhecimento antropológico é sem dúvida a única chance que temos de nos livrar do "sono antropológico" e de todas as formas de autocomplacência nascidas do cuidado de si, de nos liberar dos limites inerentes à ilusão do pensamento sem limites históricos, do pensamento sem impensado, de produzir, em uma palavra, um sujeito de que seríamos por pouco que seja os sujeitos. A teoria, essa visão que desvela, que põe a nu o poder, é uma prática, e uma prática política. Ela não pretende dizer o todo, a verdade total sobre o todo. Ela desentoca o poder de onde ele está, por vezes muito bem-escondido, nos nadas mais insignificantes da ordem ordinária, aceito como evidente. Ao romper com a representação - característica do homo academicus e notadamente do filósofo universitário - que leva a segmentar a vida em duas partes, aquela do conhecimento, investida pelo rigor, e aquela da política investida pela paixão, de preferência generosa, Michel Foucault concebeu a atividade intelectual como a forma por excelência de um empreendimento político de libertação: a política da verdade, que é a função própria do intelectual, se realiza num trabalho para descobrir e declarar a verdade da política. Isso é o que faz do desejo (perverso) de saber a verdade do poder um adversário irredutível do desejo de poder.

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