ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Sem doutrinação

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

O Enem 2015 deixa um rastro de chorume pela internet. O foco do esgoto verbal se divide em dois: a prova de Ciências Humanas e o tema da redação. Afirma-se que se tratam de evidências cabais do comunismo do MEC/PT/Foro de SP.

A doutrinação do marxismo petista começaria pela prova de Humanas. Aliás, no fundo, o pessoal do chorume considera as Ciências Humanas em si uma doutrinação petralha. Para eles, Lula inventou essas matérias para, junto com Obama, consolidar o comunismo interplanetário. Vai vendo, dizem em tom profético.

Na real, a prova de Humanas tem, sim, um perfil crítico à esquerda. O que é muito diferente de ser uma cartilha socialista. Max Weber, David Hume, Karl Mannheim e Sérgio Buarque de Holanda, para citar só uns exemplos, jamais poderão ser alocados no grupo dos revolucionários esquerdistas. Chega a ser cômico tentar enquadrá-los nesse rótulo.

Poderia se objetar que a prova teria que ser mais "equilibrada" politicamente. Ok, poderia. Só que, outra vez, isso difere bastante do brado contra um "comunismo explícito" do MEC. O que me parece estar por trás dessa verborragia toda é mais um ataque à possibilidade de que um perfil crítico à esquerda possa estar presente numa avaliação educacional. Um ataque à pluralidade em nome da pluralidade.

O chorume fica ainda mais regorgitante nas críticas à Simone de Beauvoir e ao tema da redação. O fato é que, se abordar a necessidade de direitos iguais entre homens e mulheres representa uma posição esquerdista, assim como o fim da violência de gênero, isso diz muito mais da direita do que da esquerda. Isso deveria envergonhar os liberais autênticos, mas no Brasil muitos deles costumam se juntar às fileiras do pessoal do esgoto verbal.

Por fim, embora aparentemente democrático, por tentar valorizar competências e habilidades, o Enem parece enganar mais do que transformar o acesso à Universidade. Sobretudo pelo fato destacado há anos pelo pesquisador Simon Schwartzman: segue a hierarquização escolar e a sua relação com os resultados do exame e não há modificação significativa na estrutura das desigualdades de oportunidades educacionais - estudantes com melhores condições socioeconômicas tendem a pegar as melhores vagas, inclusive longe de casa.

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