ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Gabriel Tarde, monadologia e sociologia


(…) Desde o início de Monadologia e sociologia, a surpresa é inevitável: em vez de fazer a sociologia surgir de uma ruptura radical com a filosofia, Tarde busca na filosofia os princípios ontológicos de um "ponto de vista sociológico universal" (p. 58). Para tanto, ele convoca uma intrincada noção: "as mônadas, filhas de Leibniz" (p. 19). Em Leibniz (1714), as mônadas são as partículas elementares, as substâncias simples de que os compostos são feitos. Elas são, portanto, diferenciadas (dotadas de qualidades que as singularizam umas em relação às outras) e diferenciantes (animadas por uma potência imanente de mudança contínua ou de diferenciação). Além disso, ou por isso mesmo, elas dizem respeito às nuances ao infinitamente pequeno, ao infinitesimal que constitui toda (a) diferença. A hipótese das mônadas implica, portanto, a afirmação da diferença como fundamento da existência e, conseqüentemente, a renúncia ao dualismo cartesiano entre matéria e espírito e àqueles que lhe são correlatos – particularmente o dualismo natureza/sociedade tão caro a Durkheim, que lhe confere proporções ontológicas no postulado do homo duplex.

O que Tarde propõe, no entanto, é uma "monadologia renovada" (p. 46), vale dizer, uma teoria social que retenha, de Leibniz, o princípio da continuidade (que fundamenta o cálculo infinitesimal) e o dos indiscerníveis (ou da diferença imanente), e que abra mão dos princípios da clausura e da razão suficiente (em suma, da hipótese de Deus) em que Leibniz havia encerrado as mônadas. Nem absolutamente espirituais, nem integralmente materiais, em Tarde as mônadas não são, como em Leibniz, as substâncias simples que entram nos compostos: "esses elementos últimos aos quais toda ciência chega – o indivíduo social, a célula viva, o átomo químico – somente são últimos ao olhar de sua ciência particular", afirma Tarde (p. 23), "eles mesmos são compostos", compostos até o infinitesimal. Tarde rompe a clausura das mônadas leibnizianas da mesma forma que os cientistas haviam quebrado o átomo: se os átomos são turbilhões, as entidades finitas não constituem totalidades sui generis, mas integrações de diferenças infinitesimais, no sentido emprestado ao termo pelo cálculo infinitesimal (pp. 23-24). As mônadas são composições elementares infinitesimais, o que faz de "todo fenômeno [...] uma nebulosa de ações emanadas de uma multiplicidade de agentes que são como pequenos deuses invisíveis e inumeráveis" (p. 55). Para Tarde, portanto, os "verdadeiros agentes seriam [...] esses pequenos seres que dizemos ser infinitesimais, e as verdadeiras ações seriam essas pequenas variações que dizemos ser infinitesimais" (p. 27, g.a.). Surpreendentemente, é em pleno desenvolvimento da ciência que Tarde vai encontrar esses pequenos deuses se atualizando, pois, para ele, o que a ciência tem feito, "a despeito dos próprios cientistas" (p. 19), não é exorcizar as mônadas, mas acolhê-las em seu âmago, procurando por toda parte no pequeno a resposta para o grande, vale dizer, pulverizando o universo e multiplicando indefinidamente os agentes infinitesimais do mundo (p. 31).

(…) Enfim, o que Tarde propõe é que levemos a sério a noção de infinitesimal e o que ela implica: considerar a diferença como relação (e vice-versa) e não como termo (ou unidade discreta), como dinamismo de uma potência e não como atributo de uma essência. Trata-se, com Tarde, de cultivar a possibilidade de uma teoria social que ponha em suspensão (e suspeição) a antinomia entre o contínuo uniforme e o descontínuo pontual ou, mais precisamente, que pense as entidades finitas como casos particulares de processos infinitos, as situações estáticas como bloqueios de movimento, os estados permanentes como agenciamentos transitórios de processos em devir (e não o contrário), com bem notou Milet (1970, pp. 158-159).

VARGAS, Eduardo Viana. Multiplicando os agentes do mundo: Gabriel Tarde e a sociologia infinitesimal. Revista Brasileira de Ciências Sociais, volume 19, número 55, São Paulo, 2004.

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