ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Tragédias naturais, Estado e mercado livre


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Depois que voltou a energia elétrica, 46 horas depois de uma das tempestades mais violentas que presenciei, os comentários nas redes sociais ainda estavam fervendo. Das duas, uma: um grupo lembrava que na periferia da capital a ausência de água e luz é cotidiana; outro grupo apontava os defeitos do poder público em remediar a situação.

Por aqui, estive refletindo sobre como ocorrências trágicas tipo a de sexta-feira podem nos tentar a encontrar a origem dos nossos problemas sociais somente em um lado da moeda. No nosso caso, tendo o Estado como alvo. Não que eu veja no Estado o baluarte das virtudes brasileiras. Longe disso, afinal, o Estado, em grande parte das vezes, ratifica privilégios e se mostra uma instituição que auxilia a reprodução das estruturas de desigualdade de oportunidades.

Ora, é verdade que o poder público é (i)responsável pela estrutura precária dos nossos centros urbanos. Também parece ser verídico o fato de que, quando problemas de abastecimento de água e luz afetam as classes médias e altas, o Estado se dedica mais para resolvê-los, na comparação com problemas semelhantes nos bairros de classes populares. Disso alguns retiram a posição extrema de que seria, portanto, um passo em busca de soluções reduzir o Estado ao mínimo, privatizar o que for possível e fomentar uma sociedade em que o mercado livre organize as relações sociais de maneira voluntária e, assim, eficaz.

Demonizar o Estado e vangloriar o mercado, “eficiente por natureza”, acaba parecendo um argumento irresistível. Será? Tudo isso me faz lembrar uma história contada pelo filósofo Michael Sandel numa de suas interessantes obras*. Sandel provoca os defensores do mercado absoluto e das pretensas trocas livres retomando os efeitos de um tornado no sul dos EUA. Uma semana após a devastação da região, comerciantes da vizinhança migraram provisoriamente para o local devastado, oferecendo os seus serviços. Só que, defensores da “livre troca”, passaram a cobrar preços exorbitantes. Oferta e demanda. A lei invisível. Pague quem quiser/puder.

É isso, então? Cobrar de pessoas que estão sem energia quatro ou cinco vezes mais pelos sacos de gelo é o caminho para uma sociedade próspera? Isso significa liberdade? Alguns podem até achar que sim. Creio, no entanto, que alguma instância institucional de regulação é indispensável. Não o Leviatã hobbesiano. Nem um Frankstein de competência duvidosa, vestindo a camisa verde e amarela. A arquitetura prática dessa instituição é um dos desafios do nosso século, do qual depende a sobrevivência das democracias.

* "Justiça: o que é fazer a coisa certa?", publicado no Brasil pela Civilização Brasileira.

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