ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

sábado, 2 de julho de 2016

Democracia em debate

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Uma vez, um estudante me perguntou: o que é democracia? Essa pergunta dá o que falar. Diante da situação política no Brasil, tenho tentado pensar a partir de três pontos sobre isso. Primeiro, como as pessoas avaliam a democracia, entre a população em geral. Depois, o que a teoria política diz acerca da democracia e pode ser considerado um consenso mínimo, olhando para o século XXI. Por fim, quem são os apoiadores e os inimigos de governos democráticos e qual o futuro da democracia.

Há variadas pesquisas sobre a percepção e avaliação da democracia em todo o mundo. A ONG Latinobarómetro publica dados anuais sobre diversas temáticas, frutos de investigações em diversos países. Os dados sobre a democracia, no Brasil, não são, digamos, muito entusiasmantes. Em 2015, pouco mais da metade dos brasileiros defenderiam a democracia sempre, independente das circunstâncias. Existe, portanto, uma boa parcela da sociedade que não teme regimes autoritários, seja num contexto especial ou em qualquer situação. Além disso, é possível perceber uma espécie de polarização entre acreditar em líderes salvacionistas autoritários e acreditar na participação das pessoas organizadas como forma de solucionar os problemas da vida coletiva. De fato, a democracia de hoje não parece dar conta daquilo que as pessoas acreditam ser preciso para melhorar as suas vidas.

Do ponto de vista da teoria política, uma premissa democrática é que o poder emana do povo. Além disso, costuma-se falar em eleições regulares, livres e competitivas, voto secreto, sufrágio universal, competição partidária, acesso e reconhecimento de associações e grupos de interesse e prestação de contas dos representantes aos eleitores. Robert Dahl, célebre cientista político estadunidense, categorizou uma forma de avaliar o quão democráticos são os governos, com a noção de poliarquia. Quanto maior for a inclusão da população nos processos políticos e mais ampla e competitiva for a busca pelo poder político, mais democrática é a sociedade. Essa visão se apoia nas ideias do austríaco Joseph Schumpeter, também cientista político, desde uma noção procedimental de democracia, em que a manutenção de um desenho institucional que delimita as regras para a participação nos processos políticos, para as escolhas dos governantes e quais as formas de disputar o poder político caracteriza a possibilidade de definir uma democracia.

Penso na democracia como algo mais ousado. Talvez pense na democracia enquanto uma utopia, por fazer, que ajuda a caminhar e que, no caminhar, vai sendo feita. Penso na democracia como igualdade/equidade de condições para exercer a liberdade de negociar o poder e os rumos da vida em sociedade. No capitalismo, as relações desiguais entre as classes sociais e o acesso aos bens e recursos escassos envolvem negociações e exercício de poder. Em sociedades patriarcais, as relações entre homens e mulheres, desiguais, envolvem exercício e negociação de poder. Em sociedades colonizadas, marcadamente escravocratas, as relações desiguais entre populações tradicionais, negros e minorias étnicas com os descendentes de europeus, envolvem poder, conflitos e negociações. Há equidade nas condições para o exercício do poder, na vida cotidiana, no dia a dia do Brasil profundo? Há equidade de oportunidades para acesso aos bens e recursos escassos? A resposta negativa é uma obviedade.

Jacques Rancière, filósofo francês, diz que o ódio à democracia existe e sempre existiu entre aqueles que não querem ver o outro como um igual em possibilidades políticas. O que chama de Estado Oligárquico de Direito dá o tom da organização política que institucionaliza esse ódio na atualidade. Os oligarcas mandam, acham que representam. O povo obedece, finge que escolhe, e vai passando a fingir que obedece. A geração de jovens que ocupa escolas, ocupa as ruas, ocupa a vida com o amanhã feito agora, no presente, ousa sedimentar uma democracia de escolhas práticas, reais e diretas, que se auto-organiza e não parece se conectar com facilidade aos ditames oligárquicos. Nessa gurizada eu boto fé. Talvez esteja aí o futuro da democracia.

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