Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor
“Há algo de podre no Reino da Dinamarca”, diz a sentinela enquanto
Hamlet encontra o fantasma de seu falecido pai. “Há algo de podre na
sociedade brasileira”, eu penso enquanto um raio de Sol me abraça em
pleno inverno e as páginas de William Shakespeare fazem meu coração
disparar. Assim é a literatura. Afeta os nossos horizontes e nos faz
abrir a caixa de ferramentas da imaginação (e da crítica social,
talvez?).
Alguns dos livros que andei lendo, neste semestre,
fomentaram reflexões sobre o momento conturbado do Brasil. “Submissão”,
do francês Michel Houellebecq, cutucou meus pensamentos já em janeiro.
Fez-me refletir sobre todas as pequenas submissões às quais nós vamos
cedendo no cotidiano. Coisas que parecem pequenas, como achar normal
trabalhar um milhão de horas semanais e quase não ter vida, achar normal
opressões e desigualdades, ou mesmo, como no livro, ir passo a passo se
submetendo a uma “cultura alheia” que vai se impondo e dominando as
nossas vidas.
Depois, foi a vez de me deparar com a formação
religiosa extremamente endurecida, marcante nas personagens de
Chimamanda Adichie, em “Hibisco Roxo”. A ânsia de mergulhar na vastidão
deste mundo e na sua veia dionisíaca enfrenta o universo de experiências
deixadas para trás por uma moral conservadora até o talo. A sanha
religiosa do “chefe de família” narrado pela nigeriana contrasta com as
práticas de violência física punitiva a qualquer ato "diferente" dos
filhos e com diversas contradições entre o que as pessoas são e o que
uma doutrina religiosa totalizadora acredita que as pessoas deveriam
ser. A cara do Brasil e dos asseclas fundamentalistas, alguém diria.
“Casei com um comunista”, do estadunidense Philip Roth, mostra bem o
teor da velha perseguição ao outro político, à ideologia rival
transformada em inimigo interno. Demonstra uma senil caçada
institucional ao comunismo, muito atual no cenário brasileiro
contemporâneo – por incrível que isso possa parecer. Ora, vamos nos
submetendo cotidianamente a uma vida estranha e desumana, em que a “vida
em si” fica em segundo plano; vamos convivendo e sendo afetados por
fundamentalismos variados, sobretudo religiosos, que não se sustentam no
confronto entre doutrina e prática, mas fazem grandes estragos na
dinâmica social; e vamos, também, observando cada vez mais qualquer
coisa que não seja a “tradição do homem de bem e suas propriedades” ser
colocada na prateleira da monstruosidade comunista. Ira Ringold,
personagem de Roth, hora dessas pode aparecer, com outra roupagem, numa
condução coercitiva sob os holofotes das grandes empresas de
comunicação.
O texto que me desestabilizou mais, “Os Mandarins”,
de Simone de Beauvoir, é uma autêntica “pedrada existencialista”. Um
grupo de intelectuais de grande porte se debate na França do pós-Segunda
Guerra sobre o seu papel nos rumos políticos do planeta. Como os
antigos funcionários públicos chineses, a impressão inconsciente é que
os habitantes do “mundo do conhecimento” vão perdendo, dia após dia, o
seu lugar de influência nas arenas políticas e, portanto, na definição
do futuro da vida em sociedade. A angústia e a melancolia de pessoas que
tem muito a dizer, e poucos que as escutem, prenunciam uma era dominada
por uma racionalidade instrumental, ao mesmo tempo em que feita de
chavões e apelos publicitários. Hoje, os memes, as aparentes verdades
simplificadoras e a violência como resposta primeira tendem a reinar
onde o conhecimento é mais do que desvalorizado.
Por fim, Milan
Kundera resume o meu sentimento nesse semestre que termina. “A
insustentável leveza do ser” me jogou, de cabeça, no conflito entre o
peso e a leveza no arrastar do tempo que vai passando, como numa espiral
entre o velho e o novo, conquistas e atrasos. O evidente peso do
contexto político nacional, de usurpação do poder e acirramento da
barbárie, de ataques reiterados a direitos constitucionais e liberdades
individuais, interage sem parar com a leveza dos avanços micropolíticos
de igualdade e solidariedade que, sim, renovam-se por toda a parte. Mas,
atenção, Kundera nos desperta: pode o peso se fazer leve, por vezes, e a
leveza pesar tanto quanto o peso. Acho que a gente segue tentando
descobrir onde vive o equilíbrio.
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