ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

sábado, 23 de julho de 2016

Entre o peso, a leveza e o equilíbrio


Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

“Há algo de podre no Reino da Dinamarca”, diz a sentinela enquanto Hamlet encontra o fantasma de seu falecido pai. “Há algo de podre na sociedade brasileira”, eu penso enquanto um raio de Sol me abraça em pleno inverno e as páginas de William Shakespeare fazem meu coração disparar. Assim é a literatura. Afeta os nossos horizontes e nos faz abrir a caixa de ferramentas da imaginação (e da crítica social, talvez?).

Alguns dos livros que andei lendo, neste semestre, fomentaram reflexões sobre o momento conturbado do Brasil. “Submissão”, do francês Michel Houellebecq, cutucou meus pensamentos já em janeiro. Fez-me refletir sobre todas as pequenas submissões às quais nós vamos cedendo no cotidiano. Coisas que parecem pequenas, como achar normal trabalhar um milhão de horas semanais e quase não ter vida, achar normal opressões e desigualdades, ou mesmo, como no livro, ir passo a passo se submetendo a uma “cultura alheia” que vai se impondo e dominando as nossas vidas.

Depois, foi a vez de me deparar com a formação religiosa extremamente endurecida, marcante nas personagens de Chimamanda Adichie, em “Hibisco Roxo”. A ânsia de mergulhar na vastidão deste mundo e na sua veia dionisíaca enfrenta o universo de experiências deixadas para trás por uma moral conservadora até o talo. A sanha religiosa do “chefe de família” narrado pela nigeriana contrasta com as práticas de violência física punitiva a qualquer ato "diferente" dos filhos e com diversas contradições entre o que as pessoas são e o que uma doutrina religiosa totalizadora acredita que as pessoas deveriam ser. A cara do Brasil e dos asseclas fundamentalistas, alguém diria.

“Casei com um comunista”, do estadunidense Philip Roth, mostra bem o teor da velha perseguição ao outro político, à ideologia rival transformada em inimigo interno. Demonstra uma senil caçada institucional ao comunismo, muito atual no cenário brasileiro contemporâneo – por incrível que isso possa parecer. Ora, vamos nos submetendo cotidianamente a uma vida estranha e desumana, em que a “vida em si” fica em segundo plano; vamos convivendo e sendo afetados por fundamentalismos variados, sobretudo religiosos, que não se sustentam no confronto entre doutrina e prática, mas fazem grandes estragos na dinâmica social; e vamos, também, observando cada vez mais qualquer coisa que não seja a “tradição do homem de bem e suas propriedades” ser colocada na prateleira da monstruosidade comunista. Ira Ringold, personagem de Roth, hora dessas pode aparecer, com outra roupagem, numa condução coercitiva sob os holofotes das grandes empresas de comunicação.

O texto que me desestabilizou mais, “Os Mandarins”, de Simone de Beauvoir, é uma autêntica “pedrada existencialista”. Um grupo de intelectuais de grande porte se debate na França do pós-Segunda Guerra sobre o seu papel nos rumos políticos do planeta. Como os antigos funcionários públicos chineses, a impressão inconsciente é que os habitantes do “mundo do conhecimento” vão perdendo, dia após dia, o seu lugar de influência nas arenas políticas e, portanto, na definição do futuro da vida em sociedade. A angústia e a melancolia de pessoas que tem muito a dizer, e poucos que as escutem, prenunciam uma era dominada por uma racionalidade instrumental, ao mesmo tempo em que feita de chavões e apelos publicitários. Hoje, os memes, as aparentes verdades simplificadoras e a violência como resposta primeira tendem a reinar onde o conhecimento é mais do que desvalorizado.

Por fim, Milan Kundera resume o meu sentimento nesse semestre que termina. “A insustentável leveza do ser” me jogou, de cabeça, no conflito entre o peso e a leveza no arrastar do tempo que vai passando, como numa espiral entre o velho e o novo, conquistas e atrasos. O evidente peso do contexto político nacional, de usurpação do poder e acirramento da barbárie, de ataques reiterados a direitos constitucionais e liberdades individuais, interage sem parar com a leveza dos avanços micropolíticos de igualdade e solidariedade que, sim, renovam-se por toda a parte. Mas, atenção, Kundera nos desperta: pode o peso se fazer leve, por vezes, e a leveza pesar tanto quanto o peso. Acho que a gente segue tentando descobrir onde vive o equilíbrio.

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