ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 16

América do Sul, Brasil,

terça-feira, 23 de maio de 2017

Rawls e o liberalismo igualitário

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Entre protestos, retiradas de direitos e crises diversas, uma coisa que sempre acaba gerando discussão é a questão da justiça social. É preciso elaborar formas de distribuição de oportunidades, recursos e poder, igualando condições para a competição da vida em sociedade? É preciso deixar as pessoas livres de todos os constrangimentos coletivos possíveis para que elas desenvolvam por completo seus talentos e habilidades?

Uma leitura que ajuda a conversar com pessoas que pensam diferente de mim está na obra do filósofo estadunidense John Rawls¹. Para ele, as pessoas podem ganhar e se beneficiar de sua boa sorte, dos frutos da sua individualidade, mas somente se colaborarem para aqueles que são menos favorecidos. De certa forma, a ideia de uma tributação justa sobre a riqueza, o patrimônio e a renda, fazendo com que quem ganha mais, contribua mais, pode ser um exemplo operacional. O orçamento público teria como prioridade equilibrar as oportunidades de acesso aos bens e recursos, ajudando quem mais precisa.

Três objeções costumam aparecer quando se defende que o Estado fomente políticas públicas em prol da igualdade. A primeira delas diz respeito aos incentivos para as pessoas fazerem as atividades que sabem fazer. Dizem: se os impostos forem muito altos para o grande craque do futebol, a maravilhosa atriz da novela, o barítono do grupo de sertanejo universitário da vez, se forem taxas que distribuam mais da metade das suas rendas para políticas de igualdade, então ninguém mais vai querer jogar bola, cantar ou atuar.

O ponto que esse olhar não percebe é a possibilidade real de se elaborar um sistema tributário equilibrado, que permita a existência dos incentivos, que faça valer a pena exercer os talentos individuais, mas que lembre os indivíduos de contribuir proporcionalmente ao conjunto da sociedade. Os favorecidos na largada não devem lucrar apenas porque são mais talentosos ou habilidosos, mas, sim, para cobrir todos os seus custos de treinamento e instrução, fazendo com que suas habilidades se desenvolvam.

A segunda objeção vem dos liberais extremistas, por vezes conhecidos como “libertários”. A crítica tem a ver com a afirmação da noção de autopropriedade. Será que uma sociedade voltada para a igualdade, ao tratar nossos talentos e dons naturais como bens comuns, não viola a ideia de que somos donos de nós mesmos? Esse argumento diz que a vida não é justa. Que é tentador acreditar que o governo pode consertar aquilo que a natureza criou, mas que essa é a estrada para a tirania e, portanto, para a injustiça.

O fato é que a “distribuição natural" de talentos e habilidades não é justa nem injusta, como não é injusto que os indivíduos nasçam em determinadas posições, diferenciadas nas hierarquias sociais. São simples acontecimentos, derivações de processos históricos. O que é injusto é a forma como as instituições lidam com isso. E disso podemos cuidar por meio de políticas que busquem equilibrar as desigualdades.

No entanto, a objeção libertária mais interessante não é a dos economistas tipo Milton Friedman. O argumento sobre a autopropriedade desenvolvido em Robert Nozick² dá mais discussão. Para o autor, podemos pensar que é bom criar cursos e escolas públicas para que todos estudem com qualidade e comecem a corrida do mesmo ponto da largada. Porém, cobrar impostos das pessoas para criar escolas públicas contra a vontade delas seria uma forma de coagi-las. Seria coerção. Isso porque devemos pensar que somos donos de nossos talentos e habilidades, porque senão acabamos marionetes usadas pela coletividade.

Aqui acredito que é necessário entender que nós não somos donos de nós mesmos por completo. É claro que isso não significa que o Estado seja meu proprietário, no sentido de que ele pode comandar a minha vida. Queremos ser livres, falar o que pensamos, acreditar nos deuses que bem quisermos, viver a nossa autenticidade, procurar as relações que nos confortem, lutar pelos nossos ideais. Somos indivíduos com autonomia. Só que eu estou errado quando penso que sou dono de mim mesmo, se penso que tenho direito privilegiado sobre os benefícios que vêm dos meus talentos numa economia de mercado capitalista.

Podemos defender os direitos, respeitar o indivíduo e fortalecer a dignidade humana sem aceitar a ideia de autopropriedade total. Mas há ainda a arguição dos defensores da meritocracia. Seu argumento está presente em muitos momentos: e o esforço? E os vagabundos que não se esforçam? E as pessoas que ralam para ter direito ao que ganham, porque mereceram e batalharam por aquilo? O esforço estaria ligado a um merecimento moral. Quem se esforça merece as coisas; quem não se esforça, que se foda.

Ora, será mesmo? Vamos pensar em dois trabalhadores da construção civil. Um é forte e consegue levantar quatro paredes numa hora, com um nível normal de esforço. O outro trabalhador é magrelo e desengonçado, levanta só uma parede em três dias, mas se esforça até o seu limite. Acredito que os defensores da meritocracia não querem que o operário magrelo ganhe mais, pelo seu esforço, do que o trabalhador mais forte. Então não é o esforço que está em jogo.

O que parece estar em jogo é a contribuição. O quanto cada um contribui. Mas a contribuição nos leva aos talentos e capacidades que não controlamos por completo, não leva apenas ao esforço. Somos responsáveis em parte pela forma como adquirimos os nossos talentos. No fundo, justiça social na distribuição dos bens e oportunidades não está associada a merecimento moral. Temos direito legítimo às recompensas das expectativas que a sociedade alimenta em função das nossas habilidades e talentos, mas não temos merecimento moral.

Por fim, a gente tem que considerar a contingência da nossa sociedade e quais os talentos que ela valoriza. Mesmo que pudéssemos alegar crédito total sobre nossos talentos e esforços, ainda assim os benefícios que ganhamos ao exercer esses talentos dependem de variáveis arbitrárias do ponto de vista moral. Nossos talentos dependem daquilo que outras pessoas querem ou gostam. Isso não depende somente de mim ou de você. Depende das qualidades que esta ou aquela sociedade valoriza. O que estamos valorizando? A boa vida para a humanidade e o planeta?

Nota 

¹ Vale conferir a principal obra do autor: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

² Conferir sobre os dois autores: FRIEDMAN, Milton. Liberdade de escolher. Rio de Janeiro: Record, 1980; NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. São Paulo: WMF, 2011.

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