ABORDAGEM ARTESANAL, CRÍTICA E PLURAL / ANO 1 (16)

América do Sul, Brasil,

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Suco de Brasil

Bernardo Caprara
Sociólogo e Professor

Era só para ser uma ida habitual até a rodoviária. Lá chegando, eu embarcaria num ônibus que, apesar de caro, anda bem precarizado. Mas isso é assunto para outro dia. O fato de se pagar um quarto de milha para não ter um ponto de recarga da bateria do celular no ônibus eu não vou criticar hoje. Dessa vez, foi o trajeto até começar a viagem que me assombrou.

No transporte por aplicativo, após aparentar certa dúvida se aceitaria a corrida, o motorista apontou no horizonte da rua. Observei que ele parou há uns 500 metros da minha casa. Fiquei acenando de longe. Nada. Mandei mensagem pelo celular e ele rabiscou um "ok". Ficou mais um pouco parado. Eu acenava de longe e ele nada. Mais um pouco e nada. Quando achei que desistiria, ele arrancou na minha direção.

Entrei meio contrariado no carro, mas cumprimentei o rapaz com educação. Ele respondeu também educado e disse que havia parado ali antes para anotar o telefone de uma casa que estava para alugar. Isso porque o proprietário da casa em que ele vive, duas quadras ali para trás, segundo ele, tinha anunciado o aumento de 400 reais no aluguel. "400 reais!", esbravejou, completando: "Como eu vou fazer pra pagar isso?!".

Eu olhei para ele e disse que isso era foda, que há poucos meses o meu aluguel também havia aumentado, ainda que menos que o dele, e que isso fodia o cara. Também contei que ontem mesmo um amigo reclamava da mesma coisa: o aumento abusivo dos aluguéis. O homem foi ganhando uma eloquência desanimada e manifestando as dificuldades que teria dali para frente. Dizia que a mulher pensava em voltar para o interior, de onde eles haviam vindo. Que ali naquela região era bom porque a escola estadual em que o filho estudava era perto e a firma dos trampos deles também. Que ali podiam de vez em quando pegar uma praia e ter alguma qualidade de vida. Que quando chegou na Ilha morou no morro da Costeira, e que tinha uma vista animal. Mas que era um perrengue só. E que era foda que a família, quando veio visitar eles, ficou dizendo que aquilo era um barraco e que eles estavam na merda: "Isso machuca, né!".

Eu fui concordando e mais ouvindo do que falando qualquer coisa. A minha vontade era dizer que essa bosta desse país tomado por milicianos genocidas só faz é foder a vida da classe trabalhadora e que para quem vive de rendas e dividendos a coisa tá uma Disney. Não foi preciso. Ele começou a falar do dono do imóvel que ele e a família vivem. "Todos os oito apartamentinhos ali são dele, e também mais oito perto da Lagoa e mais uma casa avaliada em 10 milhões bem pro sul da Ilha". Arrematou dizendo: "E o cara vem me dizer que se ele não aumentar 400 reais vai ficar ruim pra ele! Pra ele! Que é militar reformado e ganha mais de 30 mil por mês e tem tudo isso aí que eu falei!".

É foda. Isso aqui virou uma festa da galera que tem tudo, e o purgatório de quem tá na correria. Quando desci na rodoviária e fui tirar a passagem impressa, a atendente me lembrou de outro problema dessa nação cujo projeto de arcaísmo concentrador de oportunidades não cansa de dar certo. Com a minha identidade nas mãos, ela não conseguia achar a passagem no sistema. Fiquei preocupado, num primeiro momento. Depois percebi que ela não conseguia escrever meu primeiro nome corretamente, por isso não o achava na lista dos passageiros. Quando achou, procurando nome por nome na lista geral, errou por diversas vezes o código da minha vaga no busão. Havia ali uma dificuldade muito grande em lidar com o universo letrado, marca de uma sociedade que despreza a educação.

Já quase na hora de embarcar, pedi um café para dois jovens de um dos bares da rodoviária. Enquanto serviam, um dizia que o outro não poderia deixar a filha "se crescer pra cima dele", e que era melhor ele tomar conta da situação agora do que "tomar na cara depois". Fiquei ouvindo sem demonstrar interesse. O jovem que dava a entender uma grande experiência de vida, incompatível com sua nítida pouca idade, agora perguntava se o outro sabia que existia uma "bosta de uma lei ridícula que não deixa mais os pais baterem nos filhos". Ao que emendava, indignado: "não pode bater nos próprios filhos! Nos próprios filhos!". Eu só posso dizer que esse puro suco dessa máquina de moer gentes que é o Brasil me desceu quadrado antes de ir trabalhar.